domingo, 27 de fevereiro de 2011

(do Livro dos Cacos)

À tarde, sem saber, eu tinha me entregado. Havia vento morno e cheiro de mar. Bebíamos bebidas coloridas, vestíamos roupas leves, os tons do pôr-do-sol refletiam-se nos nossos óculos escuros, nós ríamos, falávamos, a felicidade espreitava, éramos tudo e todos parte da beleza à nossa volta.
(...)
Às 3 horas da madrugada eu acordei. Sozinho. A milhares de quilômetros de onde tinha me deitado. O resto do lado escuro do planeta dormia. Eu era a única testemunha da insônia naquele lugar desconhecido. Da janela os fios de alta tensão dividiam o céu refletindo a luz cor de cobre da iluminação da rua.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

(do Livro dos Cacos)

tirar meus olhos de mim.
(...)
ancoradouro para o corpo.
(...)
a lua crescente. velas ardem ao pé da parede até se desfazerem. ou desfazerem a noite.
(...)
riso de sangue enquanto você dança.

(do Livro dos Cacos)

arroto de uma terra erupta magma primordial antenas que prescrutam entre os dinossauros os ictiossauros os plesiossauros em friíssimas grutas terremotos soterrando os monstros vagidos os líquidos fósseis gosto de barro ainda na boca
(...)
arco-íris céu azul cobalto sombras retalhadas no calçamento formigas pretas papéis brancos voam espinhos ao alcance da mão

Quintal da casa nova




segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Download très romantique - ah, l'adolescence!

Márcia


Eu posso cantar? Não? Ué, disseram que servia qualquer coisa criativa. Tudo bem. Então eu vou só explicar. Eu adoro música. Desde pequena. Com 4 anos eu sabia de cor tudo quanto era música. Eu ia cantar uma música da Elis. É-pau-é-pedra-é-o-fim-do-caminho. Quando eu era criança eu já cantei na tevê. No programa do Titio Darlan. Você não deve se lembrar. Nem devia ter nascido. Ué, o tempo passa. Mais pra uns do que pra outros, mas sempre passa. Precisa dizer? Mais de 30. Não-confie-em-ninguém-com-mais-de-30. Outra coisa que eu amo de paixão é dançar. Meu sonho era ser bailarina. Do Fantástico. Tinha uma que virava luz. Outra saltava um abismo em grand-jetê Outra saía da água em port-de-bras na quarta posição. Todo mundo ou cantava ou dançava no Fantástico. Eu gostava do Ney Matogrosso. O pai não. O pai dizia que criança não podia ver aquele tipo de coisa. Que coisa? Ele não explicava. Com 7 anos eu ia lá saber? Só depois de velha eu fui entender. Ué, nenhum homem canta com aquela voz e dança requebrando daquele jeito. Não, não, nenhum preconceito. Tem gay em todo lugar. Eu até tenho uma amiga que o chefe dela é gay. Hoje é normal. Mas naquela época... Tinha também a Clara Nunes. Uma grande perda. Que morte estúpida! Eu tinha um certo medo porque ela cantava muita música de macumba. O pai também não gostava. Eu gostava das musicas dela. Mas ela dançando era fraquinha. Tinha uma música que em cada estrofe ela vestia uma roupa de orixá diferente. Cada uma mais linda que a outra. O Chico Buarque? Não. Ele nunca cantou no Fantástico. Ele tinha birra com o canal. O Chico era da esquerda radical e a Globo representava o sistema capitalista. O pai também não gostava do Chico. Comunista, ele dizia. Ah, felizmente as coisas mudaram. Quem te viu quem te vê. Ué, o comunismo acabou e a gente nem percebeu. O Chico nunca aparecia no Fantástico mas sempre tinha gente cantando música dele. Lembra do Lauro Corona e da Gloria Pires? Agora-eu-era-o-herói-e-o-meu-cavalo-só-falava-inglês. Guilherme Arantes? Amanhã-será-um-lindo-dia. Raul Seixas. Tinha uma que eu adorava: Eu-nasci-há-dez-mil-anos-atrás. Ué, posso? Me passa por favor o violão.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

(do Livro dos Cacos)


Nossos olhos não se cruzavam apesar de estarmos sempre nos olhando.

(…)

Não sei o que será de nós. Talvez os crocodilos nos devorem. Talvez vivamos muitos anos uma alegria quase diabólica.

(…)

A aridez do deserto da tua boca. Pressentimentos. Cuidados com o improvável. A contenção dos músculos. Os mares exteriores. Equinócios. O oceano subterrâneo. Os territórios da alma. As laranjas. Os planetas vermelhos. Estilhaços do castelo de vidro e espelhos.  Tempestades.

(…)

As palavras falsificam os momentos. Os momentos são indescritíveis. Incontáveis. Incontroláveis.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O reflexo (do Livro dos Cacos)

Aos poucos eu me adentro. Quando, saturado o olho, a imagem desfoca-se, apago a luz. Por uma fração mínima de tempo permaneço no vidro, mesmo após a claridade esvanecer. Antes das pupilas se adaptarem ao escuro acendo novamente o interruptor. Meu rosto salta do vidro até quase emergir na tridimensionalidade. Impedido apenas pela película cristalina que me duplica.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Leonardo

 A gente ia pra balada mais tarde. A Bárbara mora na pequepê e tava sem carro. No caminho me pediu pra levar umas coisinhas porque a geladeira dela tava zerada. Comprei cigarro, Halls, um pacote de cerveja, energético e duas Schweppes Citrus. A Bárbara tava meio down, cheia de ideias, voltar pra faculdade, mudar-se pro Rio, pegar alguém, comprar carro, arranjar emprego, pedir aumento da mesada, esse tipo de coisa. Eu mesmo só queria tomar uma bala e dançar e me jogar na naite, sair daquela deprê da casa da Bárbara. Aí eu tava lá, deitado na cama da Bárbara, abraçado no ursão que eu dei pra ela no aniversário, assistindo novela pra fazer hora e a Bárbara falando dos projetos dela. Daí sem mais nem menos a Bárbara perguntou: Leozinho, vamos abrir um negócio? Eu tava totalmente desantenado e entendi errado: o que você prefere? A Schweppes Citrus ou o Redbull? A Bárbara caiu na gargalhada. Não, seu burro. Abrir um escritório. Aí fui eu que morri de rir: escritório de quê, Bárbara, a gente só sabe é beber e reclamar da vida! Aí eu joguei o ursão na cara dela, fui na cozinha, abri duas cervejas e dei pra ela uma: taí o único negócio que a gente tem condição de abrir. A Bárbara ficou pê da vida. Só se for você, porque eu sei fazer muita coisa, seu medíocre. E se não souber, eu aprendo! Eu sou barraqueiro quando eu quero. Medíocre? Medíocre era ela, que precisava de mim até pra arranjar namorado! Nem vou contar o resto, porque o baixou o nível geral. A Bárbara desistiu de sair, eu fui embora da casa dela batendo a porta. A gente só fez as pazes na outra sexta porque a Bárbara me ligou chamando, Leozinho, eu tenho duas cortesias pra Fever, na Scorpion hoje, bora nessa?

(do Livro dos Cacos)

A lâmina enferrujada do olhar dele me atravessou enquanto eu me repartia em cenas.

(...)

Caio Fernando Abreu:
“Ou de novo como se seus olhos, os olhos escuros de Santiago, um pouco pesados nos cantos, cílios densos, fossem câmaras cinematográficas com lentes capazes de aproximar ou afastar as imagens, tornando às vezes mais definido o primeiro plano, agora a brasa que tornava a subir, para empastar em cores foscas, misturadas, indefinidas, as formas do fundo, cortadas por alguma súbita cintilação, lâmina externa, ou liquefazer então os dedos, esmaecendo o formato, a brasa que descia, mão suspensa encontrando mão pousada, vagos, obscuros, ressaltando vibrante, dinâmicos, mastigava adjetivos como quindins, algum reflexo do semáforo no meiofio da sarjeta transbordante da água suja dos bueiros, esgotos. Tossiu, menos por vontade que por confusão, para afastar um pouco aquela, era feito uma vertigem? Era feito uma tontura, teria sido o vinho, as lentes meio embaçadas dos óculos, a fome, a chuva no parabrisa, o piano lentíssimo, nota por nota, cada dedo do pianista depositado em infinito cuidado sobre cada uma das teclas, a brasa despencava devagar na altura da outra mão, porque era sábado, tinham programado sair, ou todas essas coisas juntas, afinal, porque ele também estava bastante cansado de semanas e histórias e trabalhos e pessoas e.”

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Penha


Olhe, diz-que Tia Bilinha conversou com gente morta. Acredita? Eu não. Mas a história é tão bem contada que a gente fica pensando. E olhe que Tia Bilinha sempre foi muito católica, de ir à missa, comungar, confessar, essas coisas. A morta? Não conheci. Ercila. Diz-que era amiga da Tia Bilinha. Do tempo do colégio das freiras. Olhe, elas ainda trabalharam juntas na escola. Depois cada uma seguiu sua vida. Por fim só se escreviam no natal. Diz-que um dia a Tia Bilinha estava em casa fazendo crochê quando bateram no portão. Olhe, e não era a Ercila? Tia Bilinha achou esquisito a Ercila aparecer assim, sem avisar. Diz-que conversaram a tarde toda. A Ercila estava de passagem e pediu pra Tia Bilinha avisar prum parente dela que ela ia viajar e que a chave do cofre estava em tal lugar, na casa da Ercila, em São Paulo. Tia Bilinha perguntou pra Ercila porque ela mesmo não avisava, diz-que a Ercila não podia, que estava com pressa, que tinha os seus motivos. Diz-que na hora de despedir a Ercila não deu nem abraço, nem beijo, só acenou e sumiu das vistas da Tia Bilinha. Olhe, mal a Ercila saiu Tia Bilinha ligou pro número que a Ercila tinha ditado, e mandou chamar o fulano-de-tal, diz-que era o sobrinho da Ercila. Tia Bilinha deu o recado de que a Ercila ia viajar, do jeito que combinaram. O fulano-de-tal pensou que era trote porque a Ercila tinha morrido fazia já uma semana, e ele tava justo indo pra missa de sétimo dia e ainda por cima nunca tinha ouvido falar na Tia Bilinha. Tia Bilinha quase teve um troço, mas ela era muito controlada, diz-que queria tirar a história a limpo. Perguntou se havia na casa da Ercila uma escrivaninha de tal e tal jeito, como a Ercila tinha descrito, e o fulano-de-tal disse que tinha sim. Diz-que Tia Bilinha mandou o fulano-de-tal ir até a casa da Ercila, que estava fechada desde o passamento e mandou o fulano-de-tal abrir a gaveta, e que no fundo, colado com fita crepe tinha uma chave. O fulano-de-tal disse que estava atrasado pra missa, que a Tia Bilinha devia ter sonhado. Mas Tia Bilinha insistiu e não é que convenceu o fulano-de-tal? E diz-que tinha mesmo a chave, e que a chave abriu o cofre escondido atrás do retrato da Ercila, cheio das joias da Ercila, e era tanto ouro que o tal fulano-de-tal enricou e ainda mandou pra Tia Bilinha uma medalhinha de São José como lembrança da finada Ercila, e o fulano-de-tal nem sabia que Tia Bilinha era devota de São José, tem base?

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Edu

A senhora com suas joias, o rapaz antes de mim com seus piercings e tatuagens, o guarda da portaria com seu mau-hálito, o supervisor com seus relatórios, a cantora que a garota falou agora pouco, todo mundo tem uma função, uma obrigação na existência, e a minha é essa. Achou engraçado? Eu acreditar na possibilidade de melhorar o mundo? Se quiser eu repito, e nem precisa de microfone. Eu creio no poder de canalizar a minha força, minha inteligência, minha capacidade, minha energia para o bem-estar coletivo. A senhora, por favor, anote aí na ficha. O candidato acredita que mudará o mundo. De louco, poeta e revolucionário todo mundo tem um pouco. Eu vou defender minhas ideias, seja à frente de uma sala de aula, sobre um palco ou diante de um pelotão de fuzilamento. A senhora deve ser daquelas pessoas que acredita que a arte, a cultura, a educação podem mudar o rumo da história. Eu lhe pergunto: de que adianta o bom gosto estético para quem não tem onde cair morto? De que adianta saber desenhar o nome em um pedaço de papel quando não se sabe o que encontrar no lixão para a única refeição do dia? A arte pode alimentar mais que um PF? O teatro pode aquecer mais que um cobertor? a literatura pode confortar mais que um teto de papelão? Deixa eu fazer só mais uma pergunta. Uma não, duas. Três: a senhora já sentiu fome? Fome mesmo, fome de saber que não achou nada pra comer no lixão? E frio? A senhora já levou porrada da polícia de madrugada para desocupar o viaduto? Então como a senhora pode dizer que nós somos iguais? A senhora deve se sentir aliviada quando joga moedinhas pela janela do carro acreditando que vai salvar a vida da criança que vende chiclete na sinaleira. Nós não somos iguais, não. Desculpe interromper, eu conheço essa: o beija-flor que tentava apagar o incêndio na floresta com aguinha no bico. Moral da história: cada um deve fazer a sua parte. É só pensar um pouquinho. Por mais bem-intencionado, o beija-flor agia individualmente. Como a senhora, com seu neoliberalismo. Então, fui bem? Deu um branco, tive que improvisar...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Elzinha

Minha mãe que escolheu. Era fã dela. Quis homenagear. Estranho, né? Nasci ouvindo ela. Sei a história dela de cabo a rabo. Tipo: perguntaram pra ela qual a idade, sabe o que ela respondeu? 24 horas, meu bem. My name is now! Caracas!, que maravilhosa! Quando era criança eu achava ela esquisita, sem noção. Mas depois comecei a entender. Ela se transformou em uma criatura de outro planeta. Tem uma história bem legal. Acho que ela contou no show. Vi na internet. Ela se inscreveu num programa de calouros, no rádio, com 12 anos. Naquela época acho que ainda não existia TV. Era o programa de um cara famoso, tipo Raul Gil. Pois é. Daí o cara esnobou ela na frente da plateia. A plateia ria daquela neguinha mal arrumada, de chinelo, tipo pobreza geral. Se fosse hoje era tipo funkeira. Acho que ela exagerou nessa parte, porque por mais fodida que fosse ela arranjava uma roupinha descolada pra se apresentar. Mesmo que fosse no rádio. Tudo bem. Aí o cara perguntou pra ela de qual planeta ela vinha. Ela respondeu: Venho do mesmo planeta que o senhor. O cara, todo engraçadinho, pra zoar com ela perguntou: E qual é o meu planeta, minha querida? O Planeta Fome. Dá pra acreditar? Com 12 anos? Calou a boca de todo mundo. Eu, com 19 nem em outra encarnação teria essa resposta na ponta da língua. Pois é. A mulher é fera. Passou o pão que o diabo amassou. Ah, lembrei de outra. A senhora conhece a gíria “dar a Elza”? Ela foi casada de um jogador famoso. O cara tinha ganhado uma grana legal jogando futebol mas perdeu tudo na cachaça. O povo na época era muito moralista, muito racista, muito preconceituoso, muito maldoso. Acusava ela de ter acabado com a vida do jogador. Acusavam ela de ter roubado o dinheiro dele. Que ela tinha dado o golpe do baú no jogador. Dado a Elza. Entendeu? A senhora sabia que o namorado dela nem tem 30 anos? Pô, deve ser esquisito transar com uma mulher de 80 anos.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A queda (do Livro dos Cacos)

“Meus cabelos são Noun; Meu rosto é Rá; Meus olhos são Hathor; Meus lábios são Anúbis; Meus molares são Ísis; Meu pescoço é Neith; Meu sexo é Osíris; Meu ventre e minha espinha dorsal são Sekhemet; Minhas nádegas são os olhos de Hórus; Minhas coxas e a barriga de minhas pernas são Nut; Minhas pernas são Ptah.”

(...)

“Eis-me junto ao Lago sagrado de Hórus, onde amarrei meus cães”.

(...)

Íbis sagradas me seguiram. Ofereço a Hátor areia, cinzas, ossos e miragens.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O Cláudio, o Hélio e o Paulinho



Foi na Dreepsy. Eu esperava o Flávio e a Thabitta voltarem do fumódromo quando o cara encostou a mão no meu ombro:
- Você não é o Cláudio? o fotógrafo? Hélio, muito prazer. Amei sua exposição. Caramba! Você ainda é mais bonito que na foto do catálogo!
Fiquei trifeliz. Por ser reconhecido por um fã. Por o fã me achar bonito. E por o fã ser um supergato. A gente conversou, dançou, se beijou. Hélio deu a ficha completa. Idade, profissão, endereço e celular. Amava Sebastião Salgado. 
O Flávio e a Thabitta me acenaram de longe. Também superfelizes por eu finalmente parecer ter desencalhado.
Quando vem o Paulinho. Todo sorridente na nossa direção. O Paulinho é supergenteboa. É o cara da produtora. Responsável pelo projeto do book de viagem. Abracei o Paulinho:
- E aê, Paulinho, já pegou alguém?
No abraço o Paulinho cochichou:
- Cuidado com esse cara. Ele já foi meu namorado.
Falou mais algo que não entendi. Sumiu na pista. Que história esquisita. O Paulinho é superprofissional, superdiscreto, superconfiável, super-reservado. Para ele falar uma coisa daquelas devia ser sério. O Hélio seria um psicopata?
Mesmo arriscando ser acorrentado em um porão úmido, assassinado com uma faca de cozinha, esquartejado com um serrote, congelado no freezer da churrasqueira e servido em bifes, eu fiquei com o Hélio. Só que diferente.
O Hélio percebeu. Confessou. Foi mesmo namorado o Paulinho. Separaram-se havia 2 meses. O Paulinho tinha aprontado demais. O Hélio queria começar uma história nova. Uma história legal. Com uma pessoa interessante. Tipo comigo.
Ficamos, eu, o Flávio e a Thabitta até as 9 da manhã. Meu plano era passar a ressaca para saber os detalhes da história com o Paulinho. Antes de planejar qualquer coisa com o Hélio.
O Paulinho ligou:
- Vamos tomar uma cerveja?
- Claro, cara. Que confusão a gente se meteu, hem?
O Paulinho desembuchou. Ele e o Hélio tinham só brigado. Lá na Dreepsy mesmo. A relação deles era aberta. O Paulinho até admitia o Hélio ficar com outros caras na frente dele. Só vetava gente conhecida. O Hélio tinha se aproximado de mim para fazer ciúme no Paulinho.
Putz! Ainda bem que eu não mandei a mensagem apaixonada pedindo o Hélio em namoro.
Só sendo muito otário para não perceber que os caras não jogavam limpo. Contornei com diplomacia de rinoceronte:
- Pô, Paulinho, quando o milagre é muito o santo desconfia, hehe. Eu só dei uns beijos no teu namorado, na maior inocência. Tu tem é muita sorte de dormir toda noite com um gato daquele.
Era sincero. Eu não estava a fim de estragar história de ninguém. Apesar da história entre eles já estar estragada. Mas isso eu não disse pro Paulinho.
Crente que o conto de fadas com o Hélio tinha acabado antes de começar, vem o Paulinho com outra pérola. Carta branca para pegar o Hélio:
- Fique à vontade, se te interessar. Pra você eu abro exceção.
Fiquei muito puto:
- Pirou, Paulinho? Que merda é essa? Nada a ver, cara. Eu quero mais é que vocês acertem os ponteiros.
O Paulinho devia estar muito maluco. Ainda completou:
- Eu já sei que não vai dar certo.
Era a décima vez que eles se separavam e voltavam. Eu devia ter perguntado qual é, Paulinho, se você sabe que não vai dar certo porque insiste? Mas eu já tava de saco cheio daquela história toda, vontade de sair fora, dar graças por ter escapado da super-roubada.
Por sorte a Thabitta ligou:
- Vem aqui pra vila, Claudinho. O samba tá pegando.
Chamei o Paulinho:
- Tou indo pra feijoada. Tá a fim?
Só mesmo por convidar. Eu não queria que ele fosse.
- Não, cara, vou me encontrar com o Hélio. De repente a gente aparece lá mais tarde.
Eu sabia que também era só formalidade. Tão cedo a gente não se veria de novo.

Ainda sobre a televisão

http://nopunhodarede.blogspot.com/2010/09/o-que-ja-falaram-sobre-televisao.html

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Sonja


Você tem que me cortar, porque quando me dão corda eu vou longe. Por favor, me avise quando faltarem 2 minutos. É, é, para eu ter tempo de concluir. Não pode? Posso deixar o cronômetro do celular ligado? Não? Certo, certo. Faz parte do processo, ok, ok. Posso? Assistir tevê me faz dar risadas. Humorista? Não, não, eu detesto programa humorístico. Detesto piada. Detesto graça da desgraça alheia. Detesto sátira, charge, caricatura, gag, pegadinha. Detesto gente que transforma a própria mediocridade em mediocridade universal. Não, não, pelo contrário, eu me considero uma pessoa super-hiper-bem-humorada. A tevê é engraçada porque é o espelho da condição humana. La televisione è lo specchio dove si riflette la sconfitta di tutto il nostro sistema culturale. Não, não é Umberto Eco. Eu vou além. Eu diria que a televisão espelha não só a derrota do sistema cultural, mas o próprio fracasso da nossa condição humana. Compreendeu? O que me faz morrer de rir na televisão é exatamente isso. A televisão faz refletir sobre o nosso ridículo existencial. Por falar nisso, eu me lembrei de Maugham. Sabe Maugham? A velha história do rapaz cheio de boas intenções que vê os ideais escoarem ralo abaixo por causa de um sentimento inferior? Por causa de uma paixão? É, é, novelinha, a nossa vidinha medíocre resumida em capítulos diários. Eu digo aos meus alunos logo no começo do semestre: a televisão é uma espécie de sumidouro onde a gente vê, passivo, escoarem-se as nossas boas intenções. Como o retrato de Dorian Gray. Claro que você entende. Dorian sublima toda a lama que o sufoca através do retrato, que envelhece no lugar dele. É, a nossa lama cotidiana, o telejornal, o talkshow, a minissérie, etcétera, a televisão é a transubstanciação da lama humana. Ai, já! Já mesmo? Nem deu tempo de falar da escola francesa.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Márcia

Pow, que legal, meu, ingresso grátis? valeu! muito gata ela, a Ivete, pow, canta demais, sinceridade, eu não saco nada de música, tá ligado? pow, não dá tempo, de segunda a sábado pau dentro, costurando carro nessa loucura de trânsito, sexta-feira só rola a cervejada com a galera, rola um pagode, mas eu sou ruim, saca, ruim demais, nem campainha eu toco, saca? se eu te disser que nunca pisei num teatro tu acredita? A Márcia é que vai curtir, ela se amarra nessas coisas, vive me enchendo o saco, pow, tu precisa saber q rola outras paradas fora ralação e cerveja, tá ligado? a Márcia tá certa, meu, a Márcia nem vai acreditar nessa parada, tá ligado? precisa fazer o quê? só trocar na bilheteria? pow, precisa confirmar? beleza, a Márcia faz isso, ela curte, a Márcia saca dessas paradas de cultura, saca, pow, conhece tudo quanto é artista de novela, de bigbrother, de cinema então nem se fala, a Márcia fica até tarde assistindo tevê, saca, a Márcia conhece tudo quanto é música, eu não sei se ela curte muito a Ivete, pow, mas de graça, meu, acaba curtindo, a Márcia fica me buzinando pra gente assinar tevê a cabo, saca, pow, mas não dá nas contas, a mulher é cabeça mesmo, maluca, tá ligado? de repente, se tivesse estudado, se tivesse oportunidade tava aí, na mídia, meu, cantando na noite, se apresentando em restaurante, show, já pensou, meu? tu me dando ingresso de graça pro show da Márcia?

O Gérson


O médium previu. Virá para ajudar na desencarnação dos irmãos menos evoluídos. Dito e feito. A própria mãe no parto. O infarto do avô no batizado. O câncer do  pai. A perda do primogênito. Dos gêmeos. Etcétera. Vida de provação.
E agora o Gérson. Amigão das antigas. Desenganado. 5 semanas, 5 meses. Só dor, só sofrimento. Desliga os aparelhos, cara, por favor. Por nossa amizade.
A noite inteira sem pregar o olho. Entre a cruz e a camarinha.
De madrugada a luz colorida, aurora boreal, miragem? anjo? fantasma? fenômeno? espírito? Bobagem. Esfregou os olhos pensando que era dia. Que sonhava. Não. Só tinha o Gérson lá, entubado, roncando, a luz do aparelho. 
Religioso não era. Fazer ou não fazer. Atender o desejo do amigo ou o preceito moral.
A decisão amanheceu com o dia. Sim, desligava. Depois sumia no mundo.
Sem saber cumpria o vaticínio.
Esperou a enfermeira sair. O banho. A visita do médico. 
Fez o que tinha que fazer. Sem uma palavra ao Gérson. Que manteve os olhos fechados. Nem se despediram. Não precisava.
Só se deram conta na hora do almoço. Os olhos fechados. O braço do Gérson inchado como um balão.
A servente mais simpática: Ó, o soro saiu da veia. Nem pra chamar a enfermeira, meu filho?
O Gérson não respondeu. Há algumas horas já não se encontrava entre nós.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A descida (do Livro dos Cacos)


Nós estávamos puros. Do chão, paredes, teto negros brevíssimas rajadas de luz nos ultrapassavam. Nós nos misturando, separando-nos, enjoados pelo super-excitante, pelo centrífugo, pela velocidade.  Como corujas cruzando o ar em vôos cegos os sons perpassavam os nossos ouvidos e se espatifavam nas paredes internas dos nossos crânios. Que saudade ancestral nos manteve dentro, e vivos?
...
Nós somos sós... e os sóis são tantos...
...
O ritmo da noite tinha sido de rito. Uma tribo secreta reunida. Dança, transe, orgia, sacrifício, sabá, selvageria, morbidez e morte.
...
Cheirando a cinza e carne adormecida amanheceu um dia no futuro.