quarta-feira, 30 de novembro de 2011

escritos arqueológicos parte 7

Eu te amo pelo que você é e não sabe.
...

O impulso para o outro é impreciso. Eu me lanço às cegas, aos solavancos, tateio no escuro, sigo, volto, hesito, vou, paro. Seguro as chaves do proibido e não sei onde usá-las. 
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Predestinado a quê? A possuir a inutilidade? A nulidade? A sequência entre o tempo presente e o tempo futuro? Será necessário descer do pedestal e me atirar, águia, pomba, anjo, harpia, abutre - asas de cera derretendo-se com o calor do sol.
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Porém o agora é difuso e nebuloso. O caos de dentro refletido fora. Erupção, nuvem de cinza e enxofre, lava, fezes, vômito. Quando renascerão as fênix?
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Serei terrível. A mão direita a trucidar e a esquerda a redimir. 
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O cavalo corre no campo de girassóis. Os demônios, os deuses do sonho. Gerar-se e se enterrar a cada novo segundo. O medo habita a dúvida.
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Ansioso por não conseguir dar nomes às novas sensações: o escrito aquém da verdade. Aprenderei humildade, paciência e resignação?

terça-feira, 29 de novembro de 2011

escritos arqueológicos parte 6

enquanto os homens desbravavam a terra eu fiquei junto com as mulheres o menino dormindo no meu colo cuidávamos do fogo gritávamos com as crianças na água fervíamos o óleo falávamos sobre aleitamento sangramento fertilidade até os homens voltarem heróis de barba e cabelos enlameados guerreiros distribuindo a caça a pesca caçadores bebendo todo o vinho conquistadores triunfantes rindo inventando as lendas apoderando-se dos mitos fecundando as fêmeas e o leite e o mênstruo e os óvulos e a lua os meus despojos as minhas oferendas eu eunuco nulo entre eles entre elas eu nenhuma barriga parideira nenhum sêmen nenhum peito que amamente nenhum escalpo no cinto o zero o inútil o único a intersecção tão longe e tão preciso e tão essencial quanto o resto daquilo tudo

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

escritos arqueológicos parte 5

O músculo mais delicado estensão ao máximo. Você, o arco. Meu corpo pede música. Toca!

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Escrevo curto e nervoso. Fui esticado até quase arrebentar. Padeço de reconstituição. Os gatos brincam na grama atrás do play-ground. Sou infinitamente só. Sombra solene a olhar, da janela, a tua criação.

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Escuto a tua voz e não entendo. Nem agora. Também não. Agora mais próximo. Mais. Eu quase ouço. Pronto. Agora eu escuto até teu coração pulsando. Você disse: eu nada sei. Eu ri. Eu era mais feliz com as tuas mentiras.

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Há milhões de anos-luz. Antes eu não sei. Quando a bola de energia, a bola de Nada explodiu e se dividiu e dividiu e dividiu e se transformou em neutron, próton, elétron. Por um instante estávamos só você e eu.

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Pega a estrela e vai. Cristal envolto em névoa. Amanhece na metade ocidental do planeta.

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Estou cansado. Confuso. Perdido. Falando a uma pessoa ausente. Ainda o cheiro carbônico da tua despedida nas pontas dos dedos. Você viaja, mudo, só, escuro, no silêncio do espaço exterior. Para além de Saturno e seus anéis gasosos.

domingo, 27 de novembro de 2011

escritos arqueológicos parte 4


Eu, você. Imagem, reflexo, ímãs. Você fruto vermelho-alaranjado. Eu, monstro-boca, monstro-garganta, monstro-dentes-devoradores. Beijo, mordida, casca rompida, polpa, monstro-língua em tua carne doce, gozo.
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O cansaço do começo. De não saber dizer o que se passa.  Traduzir. Pausa de tempo. De espaço. Eu parado, atento, olhando. Você parado, alheio, fazendo.  Eu, rio invisível a te ver. Você, lago envolto em azul.
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Caquis sob a chuva. Mangas apodrecidas no chão. Mosquitos. Besouros. Mariposas. Vermes.
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Ecos das horas vazias. Os caquis no quase-explode.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

escritos arqueológicos parte 3

Eu te forçarei a me ver. Para isto eu me faço fosforescente. Olha. Meu corpo é todo holofotes. Eu te direi em letras de gás néon que se acendem e apagam: hoje eu te direi apenas o essencial. Agora desligarei os luminosos. Você me verá pelo que sou; não pela luz irradiada.

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Sejamos simplesmente intuição na razão.

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A partir de agora o tom do das palavras será azul. Palavras-chaves. Palavras-claves.

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A mulher toca violoncelo. No deserto. O azul é o som do instrumento a se perder nas dunas. Música azul.

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Aracne: Tecerei. Uma teia de fios de cristal azulados. Para envolver o mundo. Para me envolver ao mundo. Para me humanizar. Para te aprisionar quando voares perto.

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Eu, prisioneiro de mim mesmo. Quando a gente se repete se repete se repete, resta fazer.

...

Agora a precisão de instrumentos é indispensável. O mínimo desvio da lâmina pode ser irreversível. Quase. Tento abrir meu centro vital. Uma centelha elétrica descarrega-se. O centro vital origina a centelha que me faz todo sentidos. Me mantém vivo. Como corpo. Ente. Ser. Morrerei por um instante. E o som de violoncelo ocupará o espaço.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

maria bethania (2010)

o terremoto de lisboa (1755)

(...)
"[Escutei] uma espécie de barulho estranho e assustador por baixo da terra, parecido com o ribombar oco e distante do trovão".
(...)
O segundo abalo do terremoto foi ainda mais alto e feroz do que o primeiro. "A casa em que eu estava foi sacudida com tamanha violência, que os andares de cima desabaram imediatamente; (...) as paredes continuavam a balançar de um lado para outro da maneira mais assustadora, rachando-se em diversos pontos; pedras grandes caíam das rachaduras por todos os lados e, no fim, a maioria dos caibros começou a despencar do teto. (...) O céu, de um minuto para outro, ficou tão tenebroso que eu já não conseguia distinguir nenhum objeto; foi realmente uma Escuridão Egípcia".
(...)
O terceiro abalo veio uns quinze minutos depois do primeiro. (...) Todos os sinos das igrejas tocaram sozinhos, badalando o toque da devastação, até seus campanários fenderem e os sinos caírem na rua, com enorme estépito. "Viu-se toda a faixa de terra em torno de Lisboa arquear-se como a subida das vagas numa tempestade (...) ora de leste para oeste, ora de norte para sul; as paredes que ainda não tinham sido derrubadas oscilavam para frente e para trás, com pulsações alternadas, e com a continuação dos trovões embaixo da terra, a cidade parecia estar não apenas sendo sacudida mas violentamente arrancada de suas fundações mais profundas".
(...)
A elevação da superfície da terra e o desmoronamento das grandes construções marcaram apenas o início da catástrofe. Quase que imediatamente ao assentar a poeira do primeiro abalo, irromperam incêndios em meia dúzia de pontos diferentes.(...) Um vento nordeste atiçou as chamas. As labaredas espalharam-se da igreja de São Domingos em direção ao rio Tejo, depois pelas encostas ocidental e meridional da Colina do Castelo e, em seguida, por todo o centro da cidade.
E arderam furiosamente por cinco dias.
(...)
Tudo ficou reduzido a cinzas. (...) Muitas coisas poderiam ter sido salvas depois dos abalos do terremoto, mas o fogo se espalhou por toda a parte. Relíquias sagradas, bibliotecas de valor inestimável, tapeçarias, móveis, forros de altares, tudo terminou nas labaredas. Só no palácio real, 70.000 livros foram destruídos; no palácio dos duques de Bragança, todos os arquivos da família real desapareceram; no palácio do marquês de Louriçal, o fogo devastou duzentos quadros, inclusive obras de Tiziano, Coreggio e Rubens, além de 18.000 livros e 1.000 manuscritos, entre eles um livro de história redigido de próprio punho pelo imperador Carlos V.
(...)
Em meio ao colapso e à conflagração, cerca de uma hora depois do primeiro tremor, houve mais uma catástrofe, talvez a mais pavorosa de todas. Enquanto os cidadãos abalados olhavam para o porto do Tejo, as águas subitamente pareceram começar a vazar para o mar. (...) De repente, o poderoso Tejo elevou-se a uma altura assustadora, impossível, cerca de nove metros acima de seu nível normal, tudo no espaço de alguns minutos. (...) A vaga do maremoto subiu três vezes em cinco minutos. (...) Os barcos próximos da costa (...) "num ou dois minutos ficaram a seco, depois tornaram a flutuar, e foram atirados uns contra os outros, e a vaga ia com tal rapidez para leste e para oeste, que os navios, girando velozmente, colidiam uns com os outros. (...) A água subiu a uma altura tal que transbordou e inundou a parte baixa da cidade (...) o que aterrorizou a tal ponto os pobres e já desolados habitantes, que corriam de um lado para o outro com gritos pavorosos (...) que os fez achar que a dissolução do mundo havia chegado, todos caindo de joelhos e implorando pela ajuda do Todo-Poderoso".
(...)
"De repente, ouvi uma gritaria geral, 'O mar está vindo, estamos todos perdidos!' Nisso, voltando os olhos para o rio, que tem mais de seis quilômetros de largura nesse ponto, pude percebê-lo subindo e se inflando da maneira mais inexplicável, já que não soprava vento algum; num instante, a uma pequena distância, surgiu uma grande massa d'água, subindo como uma montanha, que entrou espumando e rugindo, e correu com tal ímpeto em direção à costa, que todos saímos correndo na mesma hora, o mais depressa possível, para salvar nossas vidas; muitos foram realmente arrastados, e outros ficaram com água pela cintura a uma boa distância da margem".

(Otto Friedrich, O Fim do Mundo)

alberto caeiro (1925)

É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.

amália rodrigues (1965)

mariza (2002)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

escritos arqueológicos parte 2

Você é eu e eu sou você nesse nosso jogo de espelhos. Eu me enraizo e você floresce no galho mais alto da árvore do desenho amassado. Eu broto vegetação rasteira. Você, fruto maduro prestes a arrebentar. Somos o princípio das coisas. Desde o princípio. Também o término.

...

Toca-me o corpo com teu corpo inteiro, pois meu tato é morto. Com gritos, pois meus sons são surdos. Com luz e fogo, pois costurei meus olhos. Com teu cheiro de flor e súlfur. Com tua língua que me abre e te deposita inteiro em mim.

...

Tudo em volta brilha e me obscurece. Sou a imagem oposta ao que vem de fora no espelho. Eu me abro. Antes que a força do acaso - regente de todas as outras - me aniquile. Antes que o tempo me engula.

...

Concordo: é preciso esgotar nosso diálogo.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

escritos arqueológicos

Jogamos o jogo de encher e esvaziar formas. Eu lanço palavras vazias e você as preenche com argamassa. Eu recolho as palavras preenchidas. Modelo as palavras preenchidas em novas formas vazias. Você as preenche. Etcétera.

Minha vez: da janela duas mulheres sorriem e um vidro transparente nos separa.
Tua vez: uma delas sofre por envelhecer e a outra tem o riso oco de mãe satisfeita.
Minha vez: o vidro permite a imagem delas atravessá-lo mas também me reflete.
Tua vez: porque elas estão mais em ti do que tu nelas.

Eu: como o homem e a mulher do violoncelo no deserto.
Você: e você deserto, homem, mulher, música, vento.
Eu: a mulher atrás do dia.
Você: desde o princípio dos tempos.

...

A dissonância arranha teu ouvido. O mais agudo do violoncelo. Hipnotiza. E o som mais grave do órgão ecoa na nave da catedral. Eu me entrego.

...

A antepenúltima coisa a dizer é batiscafo. A palavra chega com vento de deserto. Mergulhar.

...

A penúltima coisa é: isto é uma sinfonia; escuta:

domingo, 20 de novembro de 2011

(outra parte de texto escrito em 1980)

"Sobreviver - árvore que extrai da terra a seiva e transforma-a em ar que respira e transforma novamente em terra: ciclo biológico ao qual estamos presos e ao qual viver é fugir dele, deixar a vontade seguir seu curso, escapulir do centro, cometer loucuras e voltar ao ciclo irremediável. Ser é a dúvida: penetrar ciclos e não-ciclos, tomar consciência deles, megulhar, depois aceitá-los ou combatê-los. Não-ser é obscuro e sólido - apossar-se do ser, lançar-se no abismo, desaparecer no vácuo, no escuro do mundo. Mas existir? Colocar-se em espírito a todas as coisas? Infiltrar-se nos intervalos energéticos das moléculas? incorporar-se? - existir é o Princípio".

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

(parte de texto escrito em 1980)

Do lado de fora a tarde clara, límpida depois da chuva. Estou mergulhado em um profundo azul. O lustre de cristal pende do teto, como pequenos sóis. A igreja azul violeta. Deixa-me dissolver em azul e violeta, peço suavemente. Espero o organista invisível tocar. Logo despertarei sobressaltado com os primeiros acordes do órgão. O azul ascende o corpo. O altar, o Cristo crucificado, o tapete vermelho, os bancos enfileirados. O desejo de esvaziar o espaço. De preencher o espaço de azul violeta. Irremediavelmente encharcado da cor. O ar muito denso e meus pulmões não se acostumam.

Toca, organista, eu peço. Ele me olha, adivinha a ânsia. Mas é mau, a própria Maldade do Azul. Ri e mantém o órgão em silêncio. Em espírito elevo-me e danço, enquanto a música invisível se espalha saída dos dedos do organista mudo. Os sentidos explodem, o corpo pede música de ondas, pede espaço real de azuis e violetas. Mais uma vez grito - toca, organista. Ele dedilha o ar, o azul comprimindo, expandindo - respirando por mim no silêncio ensurdecedor. Meu ato de humildade diante dele - lavarei seus pés por tamanha graça ter-se me dado: ouvir o azul sem um som que fosse concreto.

Uma fila de colegiais entra pela porta lateral. Profanam o templo com suas vozes abafadas. Substituirão o espaço do azul. Bancos, tapetes vermelhos, altares, crucifixo. Conversam em sussurros e expulsam o órgão. Vieram para cantar. E cantarão. Antes da tarde acabar. De acenderem o lustre de cristal. Do o azul ser substituído. Os adolescentes se posicionam nas escadas, cochicham e riem. Encobrem os sons azuis do órgão - Hosanah!

Logo eu sairei. Logo a realidade daquela meia hora da tarde esvanecerá para sempre. Eu saio com as mãos sujas de sangue de trucidar vozes brancas e o organista mudo. Eu me alivio com o ar de fora que se torna verde. Hosanah! Saio do sacrifício - adolescentes mortos: oferenda ao azul - Hosanah! Os sinos badalam seis horas. A tarde depois da chuva. As meninas jogando queimada. A fumaça dos ônibus. Tudo é um grande deus de mãos sujas e sangue.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

purificação

6 da tarde. Tinha sido uma segunda-feira de sol depois do sábado e do domingo chuvoso. As árvores do estacionamento, a grama muito verde da quadra, uma nuvem de insetos, o ar azul, translúcido, o resto do sol incidindo na parede verde do prédio em frente me fizeram esquecer.

Eu, como sempre, atrasada. Não de propósito. Era um vício, um defeito, uma doença, o inconsciente. Eu sempre atrapalhada, até os últimos minutos: maquiagem, combinação improvável da roupa, sumiço da chave, endereço errado, etc.

Além disso eu não tinha vontade, eu não queria me lembrar como deveria me comportar, a situação que, desde muito tempo, não passava de um compromisso social: casamento, batizado e, agora, o sétimo dia do falecimento do pai da amiga.

O lugar era lindo, moderno, amplo, limpo, claro. Mosaicos cobriam as paredes altas atrás do altar: Jesus vestido com uma túnica cor de vinho, rodeado de dourado e ladeado, à direita por um santo de túnica vermelha empunhando a espada e à esquerda por um anjo de asas e botas brancas pisando um dragão. As imagens sobressaíam do fundo de pastilhas azuis e estrelas douradas.

Porém algo conspurcava a simplicidade bizantina das imagens. Talvez os exageros: os aparelhos de ar condicionado enfileirados; o espaço largo entre os bancos; o granito do piso; os candelabros, a bíblia segurados pelos anjos de bronze; o versículo, em grego, no frontispício do mármore do altar; o retábulo e o ostensório, ostensivamente grandes nos espaços entre os santos do mosaico; a entonação da voz de veludo doce do ajudante; tudo, enfim.

Só depois de algum tempo comecei a perceber o sentido das palavras ditas pelo padre ao microfone e projetadas na tela que, do nada, desceu do teto e encobriu a cabeça do anjo. O sermão não era amor, bondade, aceitação e perdão. A parábola pregava palavras duras, vingativas, imperiosas, acusadoras, crueis.

Então tinha sido aquele ódio que me afastara? Que distorcera, que transformara a minha crença em uma mistura confusa, indefinida, contraditória, de várias incredulidades? Que me fazia duvidar e ao mesmo tempo me entregar, cega, nas horas de desespero? Que anulava e ao mesmo tempo ampliava os meus defeitos, as minhas falhas de caráter, a minha obstinação, os meus pecados?

Eu, que desde criança me recusava a repetir os refrões. Que me levantava, automaticamente, quando todos se levantavam e me sentava quando mandavam sentar. Que não me ajoelhava, não me persignava, não acertava o sentido, a mão direita ou esquerda com que fazer o sinal da cruz. Que mexia a boca fingindo pronunciar as orações teimosamente não decoradas. Que ao mesmo tempo repetia: tomou o cálice em suas mãos, bebeu e comeu, partiu e dividiu aos seus discípulos dizendo tomai e comei todos vós, o meu corpo e o meu sangue que vos é dado, eu.

Eu, o ser estranho, ovelha desajeitada do rebanho, a dos pecadilhos indignos, a madalena medíocre, que cobiçava o alheio por não me sentir suficientemente boa, que não me esforçava em ser menos pior, que não enfiara a nota de vinte reais no saco de flanela vermelha das esmolas, que não entrara na fila da hóstia por não ter me confessado, que acreditava no divino além das palavras, dos gestos pungentes, dramáticos, teatrais, nos versículos escolhidos para sangrar, eu, que saíra mais cedo do trabalho, que só queria revalidar a amizade à amiga, eu sob o olhar severo, julgada e condenada, não, eu nunca seria escolhida para fazer parte daquele rebanho.

Foi quando a velha segurou a minha mão. Eu senti a mão da velha enquanto cavalgava o cavalo do apocalipse e atravessava a lança no peito dos infieis do demônio disfarçado, os gritos das beatas, das falsas puras, das canalhas, das que tinham sido perdoadas, das que não cometiam pecado, a água derramada sobre o granito, o barulho do balde de prata rolando, o hissope, a batina ensanguentada, o ajudante estrebuchando, a velha sabia, ela me acompanhara até o calvário e me conduzia pela senda escura do desassossego.

O padre espargia água. Purificai-me, Senhor, de um lado e do outro, eu pedia e, ao mesmo tempo, que a água não me fervesse sobre a pele de vampira, tanta a ira que havia no olhar dele. No meu olhar.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

bela adormecida

Meu nome é Aurora. Odeio. Nome de velha. Ok. Tecnicamente sou uma centenária.

Contaram-me. O resto são reminiscências. E recortes dos jornais da época. Afinal, dormi 100 anos. Começarei do princípio. O batizado.

Mamãe tinha tirado os 7 pratos de ouro, as 7 colheres, os 7 garfos, as 7 facas e os 7 talheres de sobremesa de prata, as 7 taças de cristal, os 7 guardanapos de linho, as 7 sopeiras de porcelana chinesa da cristaleira.

Para servir as 7 tias-madrinhas. Por ato falho mamãe começou a festa antes da tia-madrinha Setênia chegar. Solteirona. Problemática. Turrona. Ressentida. Ok. Se não fosse ela, não haveria história.

Ah, já me esquecia: as 7 tias-madrinhas eram fadas. Os presentes eram virtudes: bondade, beleza, inteligência, temperança, diligência, riqueza e humildade.

Tia Setênia chegou atrasada. Armando o maior barraco com o manobrista, o segurança, a recepcionista. O chefe do cerimonial interveio. Imaginem quando ela viu a festa acontecendo sem ela?

Ficou furiosa. Fora de si. Xingou. As piores imprecações. E a praga: eu morreria aos 15 anos, picada por agulha de máquina de costura.

Máquina de costura? Já naquela época era tão antiquado que ninguém se preocupou. Aqueles risonhos disfarçados, o promoter anunciando a próxima atração, o brinde. A festa seguiu como se quase nada tivesse acontecido.

As 6 tias-madrinhas boazinhas deram os presentes diante dos convidados. Em seguida reuniram-se com mamãe e papai em reservado. Impossível anular a maldição. Só amenizar. Tia Setênia era mesmo do babado.

Sono ao invés da morte. Dormir até ser despertada pelo verdadeiro amor. Na semana seguinte, 50 anos depois ou, sabe-se lá quando… Ou seja: parecido com morrer.

Por precaução (o seguro morreu de velho) papai fechou as fábricas, proibiu a importação e determinou a destruição de todas as máquinas de costura do reino.

Eu crescia cada vez mais bondosa, linda, inteligente, equilibrada, diligente, rica, humilde, modesta. E ignorante da minha sina.

Foi na semana da festa de 15 anos. Chovia horrores. Os amiguinhos (filhos e filhas dos criados) ajudavam nos afazeres dos pais. Mamãe não desgrudava do celular. Nada a fazer.

Eu nunca antes tinha notado aquela escadaria. Em espiral. Com cheiro de mofo e xixi de gato. Do alto vinha um barulho indefinível. Tipo um besouro. Ou videogame. Subi. No fim da escada havia uma porta. Entrei.

Estava lá uma velhota. Debruçada em um objeto esquisito. De onde saía o barulhinho. Tecidos por todos os lados. Curiosa, fui com a mão – o que é isso? – apontando para a agulha. A velhota não teve tempo de explicar. A agulha me picou (ou eu me piquei na agulha?).

Depois eu não me lembro. Só o lido nos recortes de jornal. Caí desmaiada. Provavelmente a velhota gargalhou, metamorfoseou-se em morcego ou mariposa e esvoaçou pela janela.

Legal esse trecho: “Adormeceram no trono o rei e a rainha, recém-chegados da partida de caça. Adormeceram os cavalos na estrebaria, as galinhas no galinheiro, os cães no pátio e os pássaros no telhado. Adormeceu o cozinheiro que assava a carne e o servente que lavava as louças; adormeceram os cavaleiros com as espadas na mão e as damas que enrolavam seus cabelos. Também o fogo que ardia nos braseiros e nas lareiras parou de queimar, parou também o vento que assobiava na floresta. Nada e ninguém se mexia no palácio, mergulhado em profundo silêncio”.

Cresceu um matagal em volta do castelo. A notícia se espalhou. Virei conto de fadas. Eu e o resto da galera despertaríamos assim que me beijassem um beijo de amor verdadeiro.

Dezenas de aventureiros tentaram desbravar o matagal intransponível e despertar a bela adormecida. Desistiam ou morriam. Passaram-se 100 anos.

Foi um garoto. 17 anos. Bonito como um modelo. Filipe. Soube de mim em um texto da apostila do pré-vestibular. Bobinho, Cheio de fantasias. Apaixonou-se. Para minha sorte.

Cortou o mato. Entrou no castelo. Tudo e todos congelados. Afazeres interrompidos pelo sono. Subiu a torre. Me achou afundada nos tecidos. Disse que eu era idêntica à ilustração da apostila. Me beijou.

Acordei. O garoto beijava gostoso. Meu hálito devia estar um horror. Com licença, querido, vou escovar os dentes.

Veio com a conversa de casar felizes para sempre.

Casar? Depois de dormir 100 anos? Eu queria aproveitar a vida. Me atualizar. Sair. Fazer amigos. Balada. Festinha. Acampar. Fazer teatro. Intercâmbio. Etc.

A paixão dele passou rápido. Agora, namora meu pajem. Uma graça os dois juntos. Apesar da diferença de idade ficamos amigos.

Ele me ensina como me comportar nos tempos atuais. Tenho muito o que aprender. Ano que vem visitarei as primas em Barcelona. Papai quer que eu estude direito. Mamãe, me levar para fazer compras em Miami. As tias telefonam de vez em quando.

Papai e mamãe ficam horrorizados: eu morro de vontade de conhecer tia Setênia. Eu me identifico com ela. Esquisitona. Temperamental. Diferente. Voluntariosa. Tenho a impressão que a gente vai se entender super-bem.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

o escriturário (trechos - anotações a lápis no verso da folha 27)

Assim, além de solitário, o ser físico e animado compartilha seus planos modulares com seres imateriais.

Em termos comuns, a solidão do ser é povoada de fantasmas, aos quais erroneamente são denominados semelhantes.

A diferença entre o primeiro e o segundo plano modular é, basicamente, relacionada à alterações temporais quase imperceptíveis.


(palavras ilegíveis), a não ser, por exemplo, por um cansaço maior ao atravessar uma praça que parece maior do que realmente é, ou a sensação de já ter vivido aquela situação específica, provocada por alguma redução abrupta.

tensão do tempo, que se acelera ou e, às vezes, distorções espaciais sutis.

o escriturário (trechos - finalizações)

Com a morte física do ser as membranas dos planos modulares fundem-se e se desintegram sem deixar vestígios.

Um erro comum é acreditar que os planos modulares acompanham a alma do ser em outras esferas de existência.

Não há outras esferas de existência a não ser aquelas delimitadas pelos planos modulares.

Os planos modulares encerram todas as possibilidades.

Com a morte física, os seres animados passam existir, na forma de projeção, em quaisquer planos modulares de quaisquer outros seres animados ou inanimados.

domingo, 13 de novembro de 2011

o escriturário (trechos - modelações)

Por analogia ao plano modular material acessível à totalidade dos seres animados e inanimados, os campos modulares podem ser comparados a campos magnéticos esferóides, de amplitude e diâmetro variáveis, delimitados exteriormente por membranas também magnéticas, porém em frequência energética oposta ao do plano nela contido.

É essa inversão bipolar que define a propriedade delimitadora das membranas.

As membranas dos planos modulares do ser e entre os planos modulares de seres distintos são assim denominadas unicamente pela função delimitadora.

O ser em seus planos modulares é sempre solitário.

Nas interseções, geralmente aleatórias, entre planos modulares de seres distintos, o contato direto acontecido no plano modular da realidade palpável repercute nos demais planos da mesma forma que as ondas provocadas pela pedra atirada no meio do lago, perdendo paulatinamente a intensidade à medida que se afastam do epicentro.

O ser só possui materialidade no primeiro plano modular, o da realidade palpável. Porém, só interage, mesmo nos primeiros planos modulares de outros seres, por meio de uma projeção virtual de sua própria materialidade.

o escriturário (trechos - intercomunicações)

Cada ser, e somente um, habita um conjunto de planos modulares, e transita livremente naqueles que lhe são destinados.

Define-se projeção como uma representação, com todas as características sensoriais do ser, exceto sua materialidade.

O trânsito entre planos modulares próprios de cada ser não obedece à regra específica.

Os trânsitos entre os planos modulares são impulsionados pelos estados de ânimo do ser. Tanto psicológicos quanto fisiológicos: por exemplo, sonolência, tristeza, euforia, inquietude, apatia. Esses estados impulsionam o ser romper a camada que delimita um plano modular do outro.

O trânsito entre planos modulares de seres distintos ocorre somente quando há, no plano modular da realidade palpável, qualquer tipo de interação entre os seres.

Porém, a interação não se dá por compartilhamento de planos modulares. Há, sim, interseções entre as membranas que separam os planos de cada ser.

A única exceção ao postulado anterior é a morte física do ser.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

o escriturário (trechos - os seres pensantes)

Tanto os seres pensantes quanto os não pensantes habitam planos modulares. O número de planos modulares varia de ser para ser. Nunca ocorrem menos que três para os seres não pensantes. A quantidade de planos modulares de cada ser pensante raramente ultrapassa o 9º plano.

Ao contrário do senso comum, a categoria dos seres pensantes não abrange somente a espécie humana.

Da mesma forma, e como confirmação da regra, dentre a espécie humana encontram-se seres não pensantes.

o escriturário (trechos - os seres inanimados)

Os seres inanimados são aqueles cuja vida existe em estado latente.

Define-se ser inanimado o ser desprovido das características essenciais da vida, desde o nível orgânico às manifestações mais diferenciadas da sensibilidade e do pensamento.

Em razão da sua estabilidade, os seres inanimados restringem-se ao primeiro plano modular do ser.

Em razão de sua estabilidade e imutabilidade, os seres inanimados podem ser reunidos em uma única categoria.

Os seres inanimados somente se transformam por ações físicas exteriores a eles.

Os seres inanimados habitam apenas o primeiro plano modular e são apenas projetados nos demais planos dos seres animados.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

o escriturário (trechos - realidade tangível & realidade palpável)

Os planos modulares são espécies de camadas que se sobrepõem, como películas ou cascas, à realidade tangível.

A realidade tangível corresponde ao primeiro plano modular do ser.

Por complemento, a realidade tangível é tudo aquilo que circunda o ser.

Acredita-se, erroneamente, que a realidade tangível é um plano modular compartilhado por todos os seres.

Esse erro se dá em razão das características e aparência quase idênticas entre a realidade tangível e a realidade palpável.

A realidade palpável é o ser, em si.

A diferença entre realidade tangível e realidade palpável é a materialidade da última.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

o escriturário - parte 3

A história do escriturário não deu ibope. Nenhum acesso no post. Sequer um “curti” no Facebook. Assim, à moda das telenovelas inadimplentes (redução dos capítulos, extermínio de personagens secundários, mudança de caráter de protagonistas, revelação de segredos mornos ou assassinatos) aborta-se o projeto e anuncia-se, insistentemente, os últimos capítulos e cenas picantes da próxima.

O paper do escriturário suicida caiu nas mãos do chefe do Departamento de Pessoal da repartição. O chefe era um cara legal. Gostava de arte. Literatura. Era espiritualista. Escrevia versos. Tomava aulas de francês. E visitaria os grandes museus da Europa quando se aposentasse.

Além disso o chefe do Departamento de Pessoal redigia, editava, publicava e distribuía, de mesa em mesa, “O Farol”, semanário interno da repartição. Impressionou-se com a profundidade dos escritos do escriturário suicida. Condensou a coluna “causos” (onde publicava as cada vez mais escassas narrativas curiosas enviadas pelos funcionários) para inserir trechos dos escritos filosóficos do ex-servidor, classificados, segundo ele, por “focos temáticos”, a cada semana.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

podem me chamar de meg, a medonha

Ele refém voluntário no castelo. Tecendo desculpas & justificativas & mentiras. Banho tomado & perfume & desodorante. Protelando a fuga. Ou esperando o salvador. Ou pronto para ser devorado. O que lhe importa é o papel de vítima.

Lá fora o príncipe-palhaço. Envelhecendo sem obter êxito na empreitada auto-imposta. Os ramos de espinhos crescendo em dobro a cada golpe da espada. Como as cabeças da hidra. Ingênuo ignorando a má vontade do prisioneiro em se ver livre.

...

Hoje estou doido para cometer pelo menos duas das atrocidades psicanalíticas abaixo:
- Barbazul: roer o cotoco de braço ou uns artelhos tenros do ladrão da rosa branca;
- Bruxa: empurrar o príncipe usurpador da virgindade de Rapunzel janela abaixo;
- Madrasta: convencer o pai a dar o sumiço nos pentelhos João & Maria;
- Rainha má: oferecer a maçã envenenada à tola Branca de Neve.

...

Quisera, agora, ter mesmo essa verve. Assumo, admito, bato no peito 3 vezes: estou mais para o incauto Dom Ratão. Que caiu na panela de feijoada na véspera do casamento com a Dona Baratinha que tinha dinheiro na caixinha.

...

Oremos:
Santa-Meg-das-personagens-críveis, se ele acordar e me beijar eu prometo tentar ser uma criatura melhor de agora em diante.
Santo-Máicon-dos-bons-enredos, eu vos suplico: dai-me hoje um final feliz.

sábado, 5 de novembro de 2011

tangerineira

Uma técnica para matar árvores sem levantar suspeitas do Ibama e vizinhos ecorresponsáveis é cortar toda a circunferência da casca, na base do tronco. Isso interrompe os veios que transportam a seiva da raiz para os galhos superiores. Em menos de 3 meses a pobre fenece e asssassino vegetal isenta-se de qualquer suspeita.

Fizeram isso em um pé de tangerina lindo, ainda adolescente, no quintal, antes de eu vir morar na casa. Quando eu me mudei a árvore agonizava. Fungos no tronco e quase todos os galhos secos. E 3 últimos frutos, deliciosos, como último suspiro.

A morte era irremediável. Porém o inconsciente, o além, a intuição ou qualquer coisa que seja, me fez insistir. A árvore queria viver. Eu quis que a árvore vivesse. Tomei a salvação da tangerineira (?) como desafio. Podei os galhos secos. Escovei o fungo, galho por galho. Ignorei, solene, o corte fatal no tronco. Aguei de manhã e à tarde na época da seca. Coloquei terra vermelha. Adubei. Só não conversei com ela porque capricorniano não crê nessas bobagens.

Daí veio o período das chuvas. Com as várias preocupações da finalização da reforma eu me esqueci da tangerineira.

Na quinta-feira passada cheguei em casa pouco antes de entardecer. Desde a gararagem, um perfume forte de flor da infância. Talvez alguma vizinha dama da noite, camélia, jasmim. Ou aromatizante que o lavador do carro experimentou. Ou a cera nova que a faxineira tinha indicado.

Na sexta-feira, idem. O perfume, quase enjoativo, chegava a incomodar. A obrigação do dia era medir o fundo do quintal. Mesmo exausto do trabalho, fui antes de escurecer.

Foi quando me deparei. A própria epifania. Como em um conto de Clarice. A tangerineira toda branca de flor. Milhares de brotos também plenamente floridos. O chão em volta todo branco de pétalas. Abelhas. Insetos. Talvez até um beija-flor. E um ninho de sabiá entre os galhos. Com 3 filhotes. Como nas ilustrações dos livros da infância.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

reencontro com leitura da adolescência

imagem de www.dream-exchange.blogspot.com
"Quanto ao resto do seu corpo... Não poderei explicar como fiquei ali com os olhos esgazeados. Era um turbilhão de astronaves, fontes e gentes, com tão entrelaçados pormenores e cores que se podiam ouvir os murmúrios e as vozes abafadas das multidões que habitavam aquele corpo. Quando estremecia, as pequenas bocas animavam-se, os minúsculos olhos verdes ou doirados moviam-se, as pequenas e rosadas mãos agitavam-se. Havia prados amarelos, rios azuis, montanhas, estrelas, sóis e planetas, dispersos numa Via-Láctea que lhe descia pelo peito. As figuras estavam dispersas, em grupos de vinte ou trinta, nos braços, nas espáduas, no dorso, nos flancos, nos punhos, no plexo solar. Havia-as, também, numa floresta de pêlos, escondidas entre uma constelação de sardas, espiando do fundo das cavernosas axilas, os olhos faiscando como diamantes. Cada grupo parecia ter uma actividade própria; cada um era constituído por uma galeria diferente de figuras".

(Ray Bradbury, do prólogo de "O Homem Ilustrado", em Recordações do Futuro )

desenhando durante reunião no vigésimo terceiro andar

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

paradoxo

Pablo Picasso - Femme au Miroir
Se eu medisse 5 centímetros a mais. Se eu pesasse menos 5 quilos. Se os meus peitos fossem arredondados. Se minha boca fosse carnuda. Se eu fosse loira. Se os meus olhos fossem claros. Se o meu nariz fosse afilado. Se eu tivesse sardas no colo. Se as minhas pernas fossem esculturais. Se os meus cílios fossem compridos. Se os meus ombros não fossem tão largos. Se eu tivesse 2 dedos a mais de pescoço. Se eu não usasse franja. Se eu tivesse usado aparelho ortodôntico na adolescência. Se eu operasse o joanete. Se o meu bumbum fosse empinado. Se minhas mãos fossem delicadas. Talvez ele gostasse de mim. Entretanto eu não seria eu mesma. E provavelmente não estaria tão apaixonada por ele a ponto de querer ser outra.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

se perguntassem como eu me sinto agora

(de http://dream-exchange.blogspot.com)
Primeiro ele disse que os gatinhos passavam bem. Que um papagaio tinha pousado na área de serviço. Que levaria o carro para a revisão na segunda-feira sem falta. Que mais tarde iria ao supermercado comprar leite de caixinha e biscoito água e sal para os ramsters.  No mesmo tom disse que eu fora (pretérito mais-que-perfeito) uma das pessoas mais importantes da vida dele (uma das?). Mas desde ontem ele estava confuso. Pediu tempo para refletir. Não tinha nada a ver comigo. O problema era ele mesmo. Eu já ouvira (!) essa fala quase sem variantes em pelo menos 2500 novelas. Tentei convencê-lo. Reafirmar o desejo de compartilhar com ele gatinhos, papagaios e ramsters e porque não filhinhos adotivos em uma casinha de condomínio. Ele não ouviu. Eu levava um fora por telefone. Em  ligação gratuita (o plano da prestadora) da pior qualidade. Perdi a conta do tempo das justificativas dele. Após o choque eu me desliguei. Ele falava e falava e falava. Eu lavava a louça da noite anterior que ele tinha ajudado a sujar. Celular preso entre o ombro e a orelha. Enxugando as lágrimas no pano de prato. De vez em quando eu respondia. Interjeições. Grunhidos. Não houve tempo para despedida. Ou promessas futuras. Ou ligação de arrependimento. O celular apagou de vez depois de cair na pia cheia de água engordurada.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

o escriturário - parte 2

(Despacho do supervisor da repartição, aposto em meia folha de papel quadriculado, grampeado às anotações do escriturário falecido)

Trata-se de anotações de cunho alheio aos processos conduzidos nesta repartição.
As anotações encontram-se em verso de 31 folhas em formato A4, provindas de expurgo de impressões relativas a diversos relatórios da repartição, conforme anexos.
O material foi encontrado pelo funcionário F... em data posterior ao sinistro ocorrido.
A caligrafia das anotações sugere tratar-se de autoria do referido sinistrado.
O suposto autor das anotações foi desligado do quadro de funcionários em razão de falecimento, na data ...
Tendo em vista o acima disposto, sugerimos encaminhar ao Departamento de Pessoal para providências cabíveis.