sábado, 29 de setembro de 2012

ela

Era depois que apagavam-se as luzes. O que víamos, ou o que pensávamos ter visto, ou ainda o que poderíamos apenas ter sonhado era pouco mais que uma variância de tom menos escura do escuro que nos envolvia.

Antes mesmo de vê-la, se é que a víamos, o que confirmava a passagem dela por nossas camas era o arrepio, mesmo que não fizesse frio, permanecido na pele, nos braços de uns, entre o ombro e o pescoço de outros, nas costas da mão, como se a visão dela fosse o roçar peludo de bicho peçonhento que só se despregava quando, em outra noite, vinha de novo fosforescer em outras partes dos nossos medos.

luar do sertão






quinta-feira, 27 de setembro de 2012

sem título

hoje de manhã eu preenchi duas páginas da agenda com os afazeres. uns imediatos, como por exemplo, engraxar os sapatos e escolher meias novas para qualquer eventualidade. outros diáfanos e abstratos e tão longínquos como elevar o espírito e sublimar os desejos da carne.

...

dirijo aos trancos, desatento. sonolento por causa da noite em claro vendo filmes de terror. eu me perco nos retornos, nas entradas, abaixo da velocidade média da pista. no momento seguinte, eufórico, acelero além do limite permitido e canto alto com o rádio do carro, descabelado, os vidros abertos.

...

durante o dia eu me ocupo de banalidades. procuro documentos no meio da papelada. jogo cartas comigo mesmo e perco sempre. folheio o velho romance para moças. para não pensar na ausência, no esvaziamento de qualquer sentido da morte que à noite ronda.

...

tramito na fronteira. em constante estado gerúndio. como um zumbido contínuo em baixa frequência.

...

desinfecto as mãos com álcool gel. toco-lhe de leve a mão inchada. falo com ela superficialidades: do telefonema às 2 da manhã. da discussão com o síndico. do prêmio que ainda não ganharemos. do jantar com os figurões da política. depois pergunto ao médico, o clichê: é grave, doutor?

...

chove. hoje li um conto, quase sonho, sobre mãe, irmãos, rio e pai distante. eu tenho sonhado sonhos intensos. ontem mesmo eram cômodos que eu não imaginava existirem na casa. acordei com os olhos pesados. como se levasse um óbolo em cada pálpebra.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

biblioteca das moças 1

"O amor começa com o primeiro olhar e termina com o primeiro beijo", decretou um filósofo. Algo fantasista, algo positiva, já passou essa teoria de moda, como os espartilhos e o rapé da mesma época. A geração de hoje sustenta que o amor não começa tal com o primeiro olhar do namoro, nem com o primeiro pensamento afetuoso. Muito antes, uma chusma de impulsos recônditos, de desejos caprichosos e ignorados, de feições mal esboçadas, de veleidades não pressentidas, cumpre se tenham combinado no subconsicente, para preparação, na personalidade consciente do homem ou da mulher, do que um e outro consideram "A primeira vez que sentimos..."

terça-feira, 25 de setembro de 2012

diário gerúndio da ausência

depositando os brincos & os colares & os anéis & o guizo dourado na urna forrada de veludo de oncinha / exumando os ossos / brilhando nos olhos da gata no escuro

...

relendo pela milésima vez o drama da bibinha narciso / discutindo a relação com o reflexo no espelho / perorando como a pobre ninfa eco / assumindo as vaidades / desconsiderando a psicanálise / bebendo formicida & cortando os pulsos na madrugada

...

retomando o sinal do mundo / encanecendo / mendigando por um gesto & um carinho & uma palavra de afeto tua / ouvindo rádio

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

iracema, uma transa amazônica



Outro dia recebi na rede social a indicação do site Filmes Brasileiros Completos. 160 clássicos, de Limite a Zé do Caixão, de Roberto Carlos a 300km/h a Mazaroppi, assim por diante (senti falta de Ana Carolina). Devo ter visto a modesta metade. O resto, ou eu era muito novo, não passou no circuito comercial ou eu não tive interesse.

Ontem resolvi me atualizar. Ou me desatualizar, uma vez que a maioria dos títulos é anterior à década de 1980. E preencher a imperdoável lacuna cinéfilo-cultural. Apesar da média ou baixa qualidade das reproduções.

O sentido capricorniano determinou a ordem da lista apresentada no site. Como já tinha visto mais de uma vez os dois primeiros (Estômago, Marcos Jorge, 2007 e Limite, Mário Peixoto, 1930), abri Iracema, uma Transa Amazônica (Jorge Bodanzki e Orlando Senna, 1976).

O título sugere uma daquelas produções típicas do cinema brasileiro da época (ditadura, censura, repressão) - sexo, mulher pelada, roteiro esburacado, som ruim, canastrice, diálogos folhetinescos e uma sequência de adjetivos depreciativos.

Engano. O filme é puro estranhamento. Tributário do cinema novo - a preocupação dos diretores com o rigor dos enquadramentos e ao mesmo tempo a liberdade da câmera (o falso clichê glauberiano de "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça") - as conturbações poético-filosófico-existenciais viram pano de fundo apenas sugerido para o enfoque o social, antropológico e essencialmente político (mesmo com tantos prêmios internacionais a exibição foi proibida no Brasil até 1981).

Iracema, uma Transa Amazônica é uma mistura de documentário e ficção. A história do caminhoneiro Tião Brasil Grande (Paulo Cesar Pereio) e Iracema, uma prostituta menor de idade (Edna de Cássia) segue paralela à história da exploração econômica disfarçada em desenvolvimentismo da região amazônica e do megaprojeto de construção da rodovia Transamazônica.

Parêntesis: Edna de Cássia é (como se diz no jargão da crítica cinematográfica) magistral. Tinha 14 ou 15 anos quando fez o filme. O único. A mesma idade da prostituta Iracema. Hoje esse "recorte" de realidade seria inadequado, inadmissível, impossível: apologia à exploração sexual infantil.

As imagens, a fotografia são cruas e poéticas. Retratam além da realidade Iracema-prostituição, uma série de recortes (ainda estarrecedores) das realidades amazônica e brasileira, gritantes à época, e recorrentes 35 anos depois: grilagem de terras, comércio ilegal de madeira, queimadas e desmatamento e - talvez uma das cenas-imagens mais contundentes - o trabalho escravo.

Nesses tempos globalizados, nós nos deixamos bombardear por toneladas de informações - as problemáticas mundiais, as fofocas dos famosos, o reme-reme cotidiano, o exótico e o medíocre misturado. Conhecemos muito mais sobre o mundo e ao mesmo tempo somos cada vez mais inaptos em interagir nele.

Por isso, nada como um velho (e atualíssimo) filme para balançar as estruturas. Para questionar os pontos-de-vista razoavelmente estáveis. Fazer ver que a realidade é dinâmica, mas em muitos casos, demora a mudar.

...

O próximo da lista é o documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro (autorretratos), de Paulo Sacramento, 2003. Rodado no extinto presídio do Carandiru. Alguém se habilita?






sábado, 22 de setembro de 2012

pastiches

É por tua causa que eu escrevo cada vez mais difuso. As imagens e palavras misturadas atravessam a turbulência do inconsciente, e quando emergem, materializam-se flácidas, murchas, esvaziadas de seu sentido original.

...

As representações dos sentidos vêm à tona depois de perdidos os significados, osmose invertida, absorvidos pelo inconsciente fluido, no trajeto entre a profundeza e a superfície, pelas variâncias entre as camadas de temperatura e luminosidade, sob o fluxo das correntes.

...

O espaço existente entre a materialidade e a abstração do que você representa é preenchido pelo excesso, sobra, lixo, pleonasmo, pela nulidade de signos e sentidos e significados.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

a tua vinda

Eu me encharquei de lirismo barato quando você disse que viria. Meu deserto cobriu-se de nuvens. O vento escancarou as portas e as janelas e encheu a casa de folhas. Relâmpagos riscaram o escuro. Trovões ribombaram na planura. O que era seco, estéril e cor-de-palha pejou-se de chuva, verdes e fertilidade.

De imediato florezinhas amarelas espalharam-se pelas sebes ressecadas. Borboletas também amarelas, e algumas brancas, de asas do tamanho de papel picado revoaram, rasteiras e desajeitadas. Subiu da terra, junto com as gotas da primeira chuva, colostro, o cheiro molhado do teu corpo.

Espalhei os baldes e as panelas debaixo das goteiras. Deixei à mão a vela e os fósforos para o caso de acabar a luz, por causa dos relâmpagos. Acendi incenso no canto do quarto, para espantar os insetos. Abri uma garrafa de vinho, aconcheguei o gato no colo e me sentei na poltrona, de frente para a porta. Adormeci antes de ouvir e de te ver e de te sentir chegar.

Quando acordei, estava escuro e frio. O gato ressonava. A chuva tinha cessado. Só clarões dos relâmpagos de vez em quando e o troar dos trovões cada vez mais longe. Os únicos sinais de tua vinda eram a taça de vinho vazia, a manta a me envolver as pernas e um gosto amargo, amargo, amargo na boca, que nem todo todo o creme dental da casa conseguia disfarçar.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

diário gerúndio de amor beato

resgatando o gosto do teu beijo na saliva das madalenas / sentindo o cheiro da chuva no teu hálito / me arrepiando com os vazios da tua presença / arrepelando as frases recorrentes & repetitivas & dramáticas em demasia / espalhando ratoeiras para capturar ilusões subreptícias / exterminando a praga dos enganos

...

afofando os travesseiros para o sono eterno / flagelando os tríceps e os peitorais para tirar a camisa na festança do juízo final / recapitulando o sofrimento dos mártires & aprendendo a resistir às tentações / apertando a fivela do cilício & afiando as pontas anavalhadas do azorrague / ajoelhando em cacos de vidro / depurando sadismo & masoquismo aos pés do altar

...

te despindo com o olhar em chamas / lambendo a carne sagrada do teu sexo / escalando o torreão incandescente do desejo à unha / ansiando por teu corpo nu & pregadinho ao meu / depilando as portas do teu templo-corpo com a minha bestialidade / acumulando dízimos & prodigalizando a eternidade instantânea dos orgasmos

terça-feira, 18 de setembro de 2012

relação aberta (le beau de jour)

Eu admito, a frase “quebrei, por puro ciúme, o vaso de rosas vermelhas sobre a mesa-de-centro”, do último texto, é desnecessária, pernóstica e desprovida de conteúdo, além de pequeno-burguesa, como diria o blogueiro socialista da velha-guarda que você citou. Mas o que você escreveria depois de descobrir que o cara que te acorda todo dia com um “eu te amo”, seguido do beijo mais apaixonado – é o mesmo que à tarde frequenta saunas sexuais, sessões duplas de cinema pornô, banheiros públicos, acompanhantes-massagistas, bancos de passageiro de carros ocasionais e camas de hotel de quinta-categoria?

sábado, 15 de setembro de 2012

crônica do consumidor

Nadar pra mim é um mix de condicionamento físico e faxina mental. A monotonia do ir, bater na borda e voltar durante 1 hora ou 2 me faz tão bem quanto uma meditação. Para isso, me associei à AABB: piscina olímpica, limpa, aquecida e sistema de purificação da água sem uso de cloro.

Tento manter a regularidade, 3, 4 vezes por semana. Geralmente nos finais de tarde e nas manhãs dos finais de semana. Nos sábados e domingos eu chego cedo, antes das 10h, por que tem pouca gente, o som-ambiente do bar ainda não está ligado e o sol é saudável (mesmo assim eu me besunto de filtro solar).

Pois bem, hoje eu me atrasei. Cheguei no clube por volta das 10h. Um ônibus de turismo ocupava 10 vagas no estacionamento; adesivado em letras gigantes: "Foi Deus quem me deu".

Me alonguei, tomei a ducha, aqueci 500 metros e estranhei a música gospel, vinda não dos autofalantes da lanchonete, mas do salão social.

Exerci a tolerância bem humorada: estavam dando uma folguinha para o pagode, que normalmente toca o dia inteiro. Nadei até completar os 2.000. Fiz educativos de pernas. Até me aventurei umas braçadas de golfinho.

Só que o volume da música, inicialmente suportável, começou a aumentar. Era um show evangélico. A certa altura, a cantora gritava, no meio da música "jesus! glória! aleluia!" etc. Cantava mais uma estrofe e prosseguia a gritaria. Histericamente. O operador de som também se empolgava, pois quanto mais a moça gritava mais ele aumentava o volume.

O pavio da minha tolerância é curto. Minha malhação-meditação tinha ido por água abaixo. Olhei em volta: os salva-vidas indiferentes; as espreguiçadeiras e os guardassóis já todos ocupados pelos banhistas; peitos e bundas, bronzeador, chapéus, sungas estampadas, crianças correndo, pulando na água. Será que a gritaria da cantora só incomodava a mim?

Foi quando ouvi o comentário embevecido de duas funcionárias: "que lindo! vai durar o dia todo!".

Aí subi nas tamancas. Fui procurar um dos diretores de plantão. Afinal de contas eu sou sócio. Entendo que além das mensalidades dos associados, um clube vive de alugar seus espaços. Mas, convenhamos, em horários adequados. Eu me senti (e sinto) no direito de reclamar. De manifestar meu desagrado.

Não encontrei ninguém. Deviam estar no show.

Show? para quem?

Puro proselitismo. Em plena manhã de sábado. Tolerar a diversidade, tudo bem, ainda mais eu, que acabei de escrever um livro sobre candomblé. Mas ser obrigado a entupir o meu ouvido com aquela estridência vocal de decibéis potencializada, me desculpem o lugar-comum, eu não merecia.

Desisti. Fui tomar banho. Felizmente o vestiário é afastado. A voz esguelada da doida não alcançava. E fugi dali o mais rápido possível. Como o diabo foge da cruz.

(Vou mandar esse texto para a diretoria do clube. Sei que não vai dar em nada, como não deu em nada aquela reclamação da TAM. Mas não posso deixar passar em branco, exercer meu papel de consumidor e cidadão).

(parêntesis)

Antes de qualquer conclusão precipitada, o que te escrevo é ficção. Diários eu deixo para anotar à mão, nos caderninhos, nos blocos, nos pretensiosos molesquines que nunca serão lidos, ou nos e-mails que apago antes de te enviar. Nesses posts hiperbólicos, exacerbados e desiludidos eu não exponho as vísceras, minhas e tuas. É pura narrativa, exercício, especulação. Desse personagem-eu (conto? poema? novela? romance?) surgirá o texto a descrever o verdadeiro tormento - paixão, desespero perda e resignação - conclusivo. Escrever o que me resta de você me estabiliza, para me desestabilizar em seguida. Meu equilíbrio sem o teu contrapeso é tão instantâneo e momentâneo que qualquer palavra que eu te diga/escreva dará sempre a sensação de oco, frágil, insustentável, ilusão.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

poema-prosa da incapacidade

eu te tenho escrito tão melado, tão excessivo, tão encharcado, tão sentimental - o excesso de imagens, metáforas de gosto questionável, adjetivos e advérbios, frases intermináveis intercaladas, separadas por vírgulas, elipses e anacolutos como fibroses na pele do texto

eu tenho te escrito como se soluçasse, como se tartamudeasse ditongos e hiatos, como se não soubesse o que dizer e dissesse assim mesmo, como se repetisse, apenas invertendo a ordem, sequências monocórdias de signos, de palavras esquisitas do dicionário, como se encobrisse o cheiro azedo da angústia com óleo de pétalas de rosas ou raspasse o ouro que reveste os retábulos das lamúrias e das indecências

eu te tenho escrito como se enfiasse a mão no fundo lodoso para trazer à superfície objetos caídos ali há muito tempo: um porta-joias em forma de bailarina com o fecho enferrujado, uma lata de costura chacoalhando botões que não se usam mais, uma caixa de tampa marchetada de guardar rapé ou cocaína

o que tenho te escrito (horror e pesadelo) são pedaços podres daquilo que eu não consigo expressar: a mão de mulher cortada à altura do punho, ainda com a aliança no dedo anular em decomposição; um braço roído de vermes; a cabeleira de uma cabeça decepada que, depois de lavada, reconheço como tua

eu te queria escrever grandiloquente, profundo, evoluído - sobre a essência dos seres e das coisas  - por exemplo, sobre a alma, os temores que afligem a humanidade, as estrelas, os holocaustos, a fome, as migrações dos grandes mamíferos, a vida dos santos, dos criminosos ou dos revolucionários 
 
eu não suporto mais te escrever como se o vazio e a perda e o abandono provocados pela tua falta fossem a única força que mantêm o universo em movimento

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

diário

Acordei com Etta James cantando Stormy Weather morno, baixinho, suave, no meu ouvido. Dobrei os cobertores, bati os travesseiros e abri a janela do quarto para tirar o cheiro de saudade, de sono velho, de ressonar do gato e de mofo das gavetas e dos armários. Alimentei os bichos, molhei os vasos de flores, recolhi as titicas dos pombos, as folhas secas e os tufos de cabelo que a vizinha do apartamento de cima faz questão de jogar na varanda. Depois do banho, preparei iogurte com cereais e passei um café bem forte, para aguentar o batente. Caprichei no gel do cabelo, no perfume amadeirado, combinei a gravata vermelha com aquele terno fashion, de cintura estreita e ombros largos e os óculos escuros que me deixam com cara de Keanu Reeves. Saí para a rua preparado para enfrentar a fome dos mortos-vivos, de olho no meu cérebro-com-sabor-de-tofu; o assédio dos extraterrestres desejando mamar minha energia vital; arquitetando antídotos contra o vírus letal (enxertado em minha corrente sanguínea durante o sono), tentando apagar as minhas lembranças.

Mas o que me aniquilou foi imaginar o que você ainda teria a me dizer, ao ver teu nome encabeçando a lista de e-mails não lidos, piscando na tela do computador do escritório.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

bilhetinho-bordado

Hoje eu falei à multidão de doutos que se aglomerava diante das escadarias, do lado de fora da nossa casa. Gaguejei nos trechos em que me referia a você, mas no geral, minhas palavras-pombos agrupavam-se em revoada pelas torres, para em seguida pousar no calçamento, cinzentos, arrulhando metáforas e ciscando significados entre os rejuntes das pedras.

Hoje também, invertendo o sentido do ditado, decidi jogar água gelada para espantar de vez o gatão branco de rua que ontem à noite me assustou ao invadir por duas vezes a sala-de-estar, na tentativa de jantar o casal de calopsitas.

No mais, o mesmo: de manhã, comprei ração e favos de mel. Para o almoço, encomendei à mamma brusquetas, iguais às que ela preparava para o nosso lanche aos sábados. Rodei duas vezes os ponteiros do relógio na tarde que parecia nunca acabar, no escritório. Consultei a gramática para tirar uma dúvida pronominal e o dicionário para confirmar um sinônimo para o termo ausência. Nadei ao entardecer, ladeado por semidivindades das águas marinhas que não me deixaram tocar-lhes os corpos, nem depois, durante o banho, no vestiário.

E no linho encardido entre uma palavra e outra desse bilhetinho-diário eu bordei diversas vezes o teu nome, para ver se acaba essa coceira, esse azedo, esse zumbido no ouvido, essa vermelhidão nos olhos, esse mau-cheiro debaixo das unhas que é a falta que você me faz.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

notícias da segunda-feira

A intenção era te escrever imagens e pensamentos sólidos. Mas se você não lê, tudo se esfarela como se modelados em açúcar de confeiteiro.

Da mesma forma, não comentar a beleza das fotografias de auras, de ectoplasmas nas cores do arco-íris e de quase abstratas criaturas fosforescentes e microscópicas do fundo do mar dos teus álbuns de recorte dói tanto como se me suturassem os lábios e a língua.

...

Abri o jornal na seção dos suicídios passionais, dos afogamentos, das confissões inconfessáveis, das tragédias anônimas e das aberrações em geral.

Você sabia que o corredor paraolímpico sul-africano que teve as pernas amputadas aos 8 anos de idade ama o perigo e a velocidade, dirigindo seu carrão a 240 km por hora? Que uma sul-coreana de 45 anos de idade e 45 kg de peso comeu 45 cachorros-quentes em 10 minutos para ganhar 45 dólares de uma rede de sanduíches americanos?

...

Entre tanto antilirismo e poética no mínimo mórbida, no meio da lama que todo o tempo nós tentamos forrar de flores e grama sintética, encontro a frase-pérola (Elvis Costello em uma revista eletrônica de muito tempo atrás):

Para compor canções, há uns 5 assuntos: eu deixei você; você me deixou; eu quero você; você não me quer; acredito em alguma coisa. Cinco temas e doze notas.

Precisa dizer mais?

domingo, 9 de setembro de 2012

imagens da seca - fim de tarde






imagens da seca - noturnas




exercício para conter o desespero

Antúrios murcham no jardim de inverno. Copos-de-leite na mesa-de-centro. Da janela do sótão avista-se o lago azul desbotado, as bordas da cor de magma. A colunata do castelo, do outro lado da água, é como palitos de picolé de uma maquete pintada de branco.

Folhas secas, terra seca, grama seca, galhos secos entre a água e os meus olhos. Eu já me cansei de varrer os cadáveres dos pássaros que se esborracham nos vidros da janela. De limpar as carcaças de insetos que cobrem as superfícies dos móveis e enchem os vidros das arandelas.

Se pudesse, eu escancarava as portas e as janelas e deixava o ar de fora, aparentemente menos quente, penetrar a casa aos redemoinhos, ventos, tufões e tempestades. Mas você contém o meu gesto, segura o meu braço, me prende em outro abraço, antes do inevitável.

Se eu abrir as portas e as janelas, as almas dos mortos que vagueiam pelo jardim e pelo pomar entrarão na casa. Tomarão os nossos lugares à mesa, amassarão os lençóis e os travesseiros da nossa cama, urinarão nas bordas do vaso sanitário, arrancarão as páginas do caderninho e espalharão pela sala os meus segredos anotados nelas.

Por isso eu me contento em esperar que venha de novo a noite. Para dormir e ver findar outro longo dia. Esperar que o dia após a noite de sono interrompa a mortandade dos pássaros nas sacadas, arrebente os caixilhos das janelas, as fechaduras das portas, que a nuvem de vento, tufões e tempestades arraste para bem longe as almas e os espíritos dos mortos.

Ok, eu sei, esse dia talvez demore a chegar, o mais certo é que nunca venha. Enquanto isso, ignoremos as súplicas na janela do nosso quarto, deixemos acumular os insetos, os cadáveres dos pássaros, finjamos indiferença ao barulho do relógio a ritmar segundo a segundo o os últimos, abafados e intermináveis instantes da nossa existência.

sábado, 8 de setembro de 2012

3 narrativas breves

A indolência se instalou em mim. Passo o dia em estado de larva. O esforço maior é o de afundar os dedos no pêlo macio do gato. E de me arrastar, de hora em hora, da cama à geladeira e da geladeira de volta à cama. Não sei o que será de mim se eu não explodir antes de acabarem o sorvete de creme e a calda de caramelo.

...

Tomo banho, aparo as unhas, faço a barba e pinço os fios de cabelo brancos da sobrancelha. Besunto o corpo de creme hidratante e esparjo nuvens de perfume e feromônio. Visto a roupa mais bonita, calço as meias novas e lustro os sapatos. Só para abrir e beber sozinho aquela irish red ale cara, escura, que encharca a tua ausência já no segundo copo.

...

Abri as portas e as janelas da casa e apaguei todas as luzes. Liguei a música bem alto, o velho Rage Against the Machine para abalar as estruturas. Tirei a roupa e me deitei no chão de mármore da cozinha e só me levantei quando o abutre mais atrevido me beliscou o ventre, tentando arrancar um naco do meu fígado.

imagens da seca 4







imagens da seca 3 - entardecer








imagens da seca 2 - ipês












sexta-feira, 7 de setembro de 2012

imagens da seca 1








a resposta da mensagem



quem acordou foi o eu do sonho - o celular apitou no sonho - lembra? eu dormindo e sonhando que dormia no colchão inflável, na praia de cascalhos?

você se lembra quando aquele nosso amigo que estudava psicanálise - ou era semiótica? - não importa - você se lembra da explicação sobre sonhos?

a memória é uma esponja que absorve os acontecimentos no inconsciente e durante o sono o inconsciente é espremido e o caldinho são os fatos insignificantes do dia a dia misturados com memórias remotas e as emoções, as sensações, os sentimentos - tudo é transformado em sequências de imagens aparentemente lógicas dentro da lógica ilógica do sonho

pois quem acordou com o apito do celular foi o eu do sonho, eu tinha visto o preço do colchão inflável, a lembrança de nós dois no sul da bahia, a foto da cornualha

eu nunca escreveria em blog, eu detesto internet, em nenhuma hipótese, você nunca me mandaria aquela mensagem - mesmo que eu quisesse, eu não escreveria sobre a nossa intimidade

eu queria acordar do sonho anterior a esse sono de sonho dentro do sonho, eu queria acordar do pesadelo que é a tua ausência

amanhã sem falta eu tirarei uma folga para colocar este texto junto com as azaleias que você tanto gostava no vaso que tua mãe mandou cimentar sobre o granito do teu jazigo

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

a mensagem





cheguei extenuado das compras - você sabe que eu detesto ir ao super-mercado sozinho - ainda mais durante o dia - e que dia! - que falta faz você que não deixava acabar as provisões - cheguei extenuado das compras, depois de enfrentar o trânsito engarrafado e a canícula e a secura - porque eu protelei o conserto do ar-condicionado do carro? - pois mesmo extenuado eu tirei as compras do porta-malas


eu subi as compras pelo elevador social, porque o de serviço estava parado no sexto andar - eu guardei as compras nas prateleiras da despensa como você organizou - o leite e os sucos de caixinha tetra-pack - a prateleira das conservas - as azeitonas pretas e as azeitonas verdes ao lado do azeite, os champinhons ao lado das latas de milho e da seleta de legumes, a prateleira dos extratos de tomate, dos molhos pré-cozidos - despejei os grãos nos vidros como você ensinou - o arroz no vidro grande, o feijão e o grão-de-bico nos médios, e as lentilhas da prosperidade no vidro pequeno

fora a arrumação da geladeira que eu nem vou descrever porque ninguém terá paciência de ler

depois eu já não aguentava mais - como eu te disse no começo eu estava exaurido mesmo antes das compras ou do tráfego ou da arrumação - eu tomei um banho frio e me deitei na nossa cama, pelado, molhado, do jeito que a gente fazia no verão em guarapari no começo, e depois quando a gente foi de férias para a europa, em maiorca, no alentejo, pois eu tomei o banho frio, liguei o ventilador e me deitei pelado, sem me enxugar - só não fiz o que a gente fazia antes de dormir - porque mesmo querendo eu não consigo sem você - eu me deitei pelado e molhado e dormi na hora

eu dormi e sonhei - eu sonhei com a época que a gente era mais novo - que a gente saía de mochila e barraca nas costas - que a gente dormia em albergue em camping ou mesmo sob o céu olhando as estrelas - você se lembra daquela vez no sul da bahia? - pois eu sonhei que a gente era mais novo e eu estendia o colchão inflável naquela praia de seixos redondos com mar muito azul - em cadiz ou na grécia - eu sonhei que me deitava no colchão inflável na praia de cascalhos redondos e dormia e sonhava - já te aconteceu isso, de sonhar dentro do sonho?

acordei com o apito do celular  - era uma mensagem - tua mensagem me pedindo - pedindo não, ordenando, pois não havia por-favor no texto - me ordenando parar de postar esssa chorumela no blog - você aprendeu essa palavra comigo? - para eu parar de escrever sobre o fim do nosso relacionamento - eu concordo, isso não é roupa para se lavar em público - e que em nenhum momento eu me preocupei com você, com o que você poderia estar sentindo - você não perdeu o vício do gerundismo - com o teu sofrimento - etc, etc, etc

eu fiquei passado, eu fiquei atônito - pois como te disse eu sonhava um sonho dentro do sonho quando o celular apitou - me deu vontade  de chorar, de te ligar de volta, de apagar, de te dizer que quase ninguém - talvez você e uma meia-dúzia de gatos pingados lê o meu blog - mas respirei fundo, recorri à fleuma dos antepassados ingleses, retomei o controle, o sangue-frio, pensei melhor e decidi te responder só amanhã

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

rejeição

da água eu trouxe caracóis translúcidos do mar de aral, sereias mulatas da ilha de itaparica, tritões de pele escorregadia, cavalgaduras de hipocampos das profundezas de posídon, atlantes musculosos com nadadeiras nos calcanhares, guelras prateadas no lugar das orelhas e sexo recoberto de coral e nácar - e você mandou congelar no freezer

da terra eu trouxe um lagarto de pele cor-de-cobre, língua espinhosa lança-chamas e crista fosforescente, um casal de cobras-najas engastadas em cristal e lápis-lazuli, um gato vira-lata de pêlo rajado e olhos de turquesa, um jumentinho cor-de-areia, uma vaquinha malhada e um carneirinho de algodão para compor a manjedoura na época do natal e você mandou guardar no quarto de despejo, pois a empregada tinha acabado de varrer o chão da sala

do ar eu trouxe pavões e patos-mandarins, garças brancas e flamingos da cor do amanhecer, aves-do-paraíso mais cintilantes que o broche usado por tua mãe no dia do nosso casamento, borboletas de asas de açúcar-de-confeiteiro, vagalumes empanturrados de luz para piscar no escuro da nossa cama, perfume francês, incenso indiano e defumador da áfrica para harmonizar o espaço das nossas discórdias, e você nem abriu a caixa, se eu soubesse da tua alergia tinha cancelado o pedido

do fogo só restou a intensidade do meu desejo, a abrangência do meu amor e a incandescência do meu tesão - que você fez questão de apagar com a cusparada de escárnio na minha cara quando eu quis te arrancar o beijo de despedida

terça-feira, 4 de setembro de 2012

lista de presentes para o amante ausente

eu te compraria um álbum, daqueles com capa de couro desbotado e cordões de seda com pingentes  nas pontas, fotografias de pessoas mortas, lugares soterrados e dos nossos momentos felizes, fixadas por cantoneiras de papel-veludo em folhas de cartolina verde-musgo, separadas umas das outras por folhas de papel-manteiga

eu contrataria aquele músico cego e mudo para tocar só para você, aquele, do programa da televisão, para extrair sons-acordes do infinito, dos anjos, das estrelas e das profundezas ao friccionar de leve, com as pontas dos dedos molhadas em vinho rosê, as bordas de taças de cristal de tamanhos, cores e formatos variados

eu te tatuaria na superfície inteira da minha pele, tuas costas nas minhas costas, os pêlos das tuas pernas nas minhas pernas lisas, o teu tórax e os teus mamilos no meu peito de tuberculoso, a tua boca, o teu nariz e o teu rosto na máscara tosca do meu rosto, o teu saco, o teu pau e os teus pentelhos no arremedo que é meu sexo sem você

eu te daria um aparelho telefônico que só chamasse o meu número, uma bola de cristal que previsse o teu futuro ao meu lado, chaves que te abrissem os meus segredos mais escabrosos, sapatos com asas que te levassem cada vez mais longe dos meus pesadelos, uma cota de malha que te protegesse dos ferimentos do meu punhalzinho com cabo de madrepérola