segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

história de natal - parte 1

Dezembro inteiro era só festa. O povo da roça começava a chegar uma semana antes do natal. Os muito velhos, os mais velhos e as crianças. Geralmente ficavam até bem depois do ano-novo. Traziam todo tipo de mantimento: feijão novo em saco de estopa; dúzias de ovos enrolados em palha de milho seca; pequi, jurubeba, jabuticaba, palmito, guariroba, milho verde; rapadura, queijo fresco, queijo curado; pamonha, curau; frangos, leitoa, até cabrito vivos para sacrificar na véspera.

A cozinha virava um espaço comunitário: dia e noite mulheres amamentando, depenando frangos, descascando réstias de alho, mexendo doce de abóbora, de mamão, de figo, de leite no fogão; assando bolo, biscoito, brevidade, lavando e secando a louça, servindo o almoço em gamelas, pratos e canecas esmaltados, coando inesgotáveis bules de café, chá de losna para a má digestão dos velhos, de quebra-pedra para as complicações menstruais ou de camomila, erva-doce ou capim cidereira para as cólicas dos bebês.


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

mais sobre sincronicidade

Vejo um filme sobre uma árvore, perda, crianças, família. Chego em casa, leio no blog Escolhas um texto sobre árvore, perda, crianças, família.

domingo, 16 de dezembro de 2012

diário gerúndio erudito

interpretando sinais divinos nas minhas vísceras expostas. implorando clemência aos estagiários do juízo final. sacrificando pombas-rolas aos numes. desconfiando da previsibilidade dos áugures. perorando sozinho na madrugada. aplainando a fúria dos espíritos beligerantes. postergando a carnificina dos inocentes.

...

brandindo o tirso. seguindo de longe o séquito das mênades para não ser esquartejado. sentando à direita da rainha das amazonas. banqueteando até cair de bêbado. sendo arrastado pelos eunucos. sendo expulso do forrobodó pré-socrático. catando cavaco na sarjeta. encontrando afeto na alcateia dos superdotados. cavalgando o centauro cinquentão.

...

vestindo a toga sem nada por baixo. caçando confusão aos sete ventos. sequestrando princesas e jogando charme para principezinhos emancipados. me precavendo para não levar à socapa uma chifrada & uma chave-de-braço & um soco no queixo & uma estocada à altura do fígado ou baço. me segurando no corrimão para não rolar sangrando escadaria abaixo.

...

ouvindo siouxsie & iggy pop & outras canções do último apocalipse. estremecendo com o baticum na casa do vizinho. tomando chimarrão. comendo arroz com linguiça. limpando o salão. cutucando a ferida mal cicatrizada. roendo semente de sucupira. desamargando a alma. espirrando secreções maléficas & fluidos negativos.

...

existindo em câmera lenta.


sincronicidade ou coincidência


Para driblar a insônia na madrugada eu li dois contos. Escolha aleatória nos livros da cabeceira. No de Flannery O'Connor (A vida que você salva pode ser a sua), um vagabundo sem um dos braços aparece na fazenda miserável onde vivem a velha desdentada e sua filha com problemas mentais. Depois de dar o golpe do baú casando-se com a filha (um anjo de Deus), ele conserta e se apossa do carro da velha e de 27,5 dólares. Na viagem de lua-de-mel (no calhambeque consertado), ele abandona a esposa na primeira birosca de beira-de-estrada. Sozinho, dirigindo com o cotoco do braço apoiado na janela, dá carona a um menino caipira que levava uma mala de papelão.

Em seguida "Sabonete", um conto curto de Juan Carlos Onetti. O cara está de férias. Dirige pela autoestrada deserta. Dá carona a alguém de sexo indefinido, que passa a ser chamado de Ele/Ela, parado na beira da estrada, carregando uma mala preta.

Tanto o garoto de Flannery quanto a personagem enigmática de Onetti estão parados na beira da estrada e não pediam carona. O garoto de Flannery perde a paciência com o discurso moralista do vagabundo. Xinga-lhe a mãe e desce com o carro ainda em movimento. O/A de Onetti fica. Torna-se objeto de curiosidade, fascínio e paixão do cara que lhe deu carona, que prefere evitar a descobrir a verdadeira identidade sexual do caroneiro, guardada na mala preta, trancada debaixo da cama, no quarto do chalé das férias.

O sono veio depois da leitura. Com pesadelos. O corpo esquartejado, o meu e ao mesmo tempo o de um afeto antigo, os pedaços guardados em sacos plásticos, cuidadosamente arrumados junto com rascunhos e manuscritos, em uma mala preta, de papelão, forrada por dentro de organza vagabunda, abandonada na beira da estrada.

samba-canção da exumação

Ao invés de transformar a casa em templo para cultuar a ausência eu tirei tuas fotos dos porta-retratos, queimei teus bilhetes, cartões apaixonados do início, comprovantes de pagamento e as faturas pagas dos cartões de crédito e da conta conjunta, juntei os presentes, as lembrancinhas, os teus ternos, sapatos, cintos, perfumes, as tuas camisas, gravatas, meias e cuecas do armário, enfiei tudo em sacos plásticos, daqueles pretos, reforçados - como se exumasse os teus restos mortais - para doar, amanhã mesmo, ao bazar beneficente de natal. 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

abolerado

Depois que você saiu eu perdi o sono. Quando dormi, lá pelas 3 da madrugada, vieram os pesadelos: de perseguição, de objetivos inalcançáveis, de flutuação, de personagens mutantes. Daqueles sonhos que a gente acorda exausto.

O dia se resumiu aos milhares de minutos mal digeridos grudando no céu-da-boca. Na espera do melhor momento para te telefonar.

No fim da tarde, calhou de Aretha Franklin cantar no rádio algo como: "nenhuma dor, nenhuma lágrima depois que você me deixou". Aumentei o volume ao máximo e me derreti de chorar.

As entranhas reviraram quando te vi na praça de alimentação. O coração pulsava como se um alien fosse romper da caixa torácica. A pele era toda florezinhas arrepiadas brotadas dos poros.

Por falar em flores, esqueci os copos-de-leite, idênticos aos de Frida Kahlo, no banco traseiro do carro.

Amanhã sem falta eu recolherei os farrapos de discernimento e te olharei nos olhos e te perguntarei, na bucha, o quanto ainda você quer ver sangrar em mim.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

visita

Comprei mini-pizzas. Coloquei a coca zero no freezer. Dei ração e água aos bichos. Varri os tufos de pêlo do cão espalhados pela casa. Recolhi as roupas do varal. Tomei banho, fiz a barba, escovei os dentes e gargarejei com cepacol. Em exatos 30 minutos. O tempo da visita chegar.

Depois que a visita chegou, gastei mais 30 minutos para reduzir os batimentos cardíacos. Esforço enorme para desengasgar a voz e concatenar as palavras sem gaguejar. Para dar sentido às frases. Para encolher o riso de felicidade idiota que me rasgava a cara de orelha a orelha.

A pizza esturricou no forno. A coca zero congelou. Os pêlos do cão grudaram na roupa escura da visita. Cuidei para aparentar naturalidade. Suprimi comentários íntimos e lembranças. Para não impor à visita o constrangimento da minha saudade.

Falamos de bichos e de aparelhos eletrônicos. Da quantidade de meses que não nos víamos. De reformas e de projetos de vida. Do calor, da chuva, de falta de dinheiro. De doenças e de esportes radicais. Eu contei da viagem. A visita falou da velhice. Por mais de 3 horas nós arrodeamos diplomaticamente evitando o cerne.

Despediu-se com um abraço desajeitado. Eu, com um beijo que demorou a sair. Recendeu na sala, vindo de onde a visita sentou-se, misturado ao cheiro de cigarro, de grama cortada recente e de bicho, o perfume inconfundível dos dias passados que, pelo não dito e subentendido, eu tanto quis reviverem.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

mais sobre televisão

imagem de http://dtxmcclain.tumblr.com/
Hoje me xingaram de tudo quanto foi nome: velho rabugento, pessimista, careta, negativo, saudosista, nostálgico e retrógrado. Só porque ontem falei mal da televisão em geral e do programa da Regina Casé.

Até que o(a) xingador(a) tinha razão. Tenho reclamado, resmungado, arengado, criticado, apontado defeitos demais em tudo - no Cinema Nacional, na obra de Niemeyer, em quem escreve errado, nos programas da televisão e até na presidenta Dilma.

Nunca neguei. Sou da geração que aprendeu que a televisão (ou a religião?) era o ópio do povo. Ela promoveu a alienação utilizada pelo Dragão-Vampiro da Maldade para sugar a última gota do sangue do proletariado e engordar a pança da insaciável Classe Dominante.

Exagero. Mas eu nunca fui porta-voz da unanimidade. Muitas vezes, como diz o chavão, fui bandeira solitária contra a corrente. Nasci com olho virado, ou seja, olho que enxerga além do bom das coisas. O típico fleumático da homeopatia. O depressivo da psiquiatria. O inconveniente dos eventos sociais. O chato da cervejada da sexta-feira.

Talvez pela falta de costume, enxerguei isolado do contexto. Achei belo, intenso e profundo o que vi no programa do domingo: a passista sambando impecável com uma perna de prótese tatuada e de salto alto. O pai que inventou um mecanismo para jogar futebol com o filho com problemas de locomoção. A moça que não gosta de ser chamada de anã vestida de lantejoulas e sambando com o filho e o namorado. A simplicidade da arremessadora de disco agradecendo a deus por ter perdido a perna e com isso conseguido dar uma casa para a mãe. Gostei também da sinceirdade otimista da presidenta. Mesmo que exagerada. E da seriedade com que a diretora do Sarah conduz o trabalho no hospital.

O que me incomodou no programa Esquenta - e por extensão, na Televisão foi (e é) a massificação. A pasteurização. A carnavalização excessiva.

A televisão tem o poder de potencializar. De bombardear informação e imagem. Isso neutraliza, pulveriza qualquer boa intenção. E me deixa tonto, me exaspera, me hipnotiza, me dispersa e não me faz pensar. Definitivamente eu não tenho vocação para telespectador.

...

Agora só falta o texto para reclamar das festas natalinas. Depois eu prometo ficar de boca fechada.


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

televisão

Não gosto de televisão. Acho barulhento, me dá tonteira, me suga a atenção, me hipnotiza. Porém, nos últimos dias, contra a vontade, tenho dedicado atenção à telinha.

Malhação eu vejo 2 vezes por semana na sala de espera do dentista: um almanaque de advertências e boas práticas para adolescentes. Depois, na cadeira, com a boca anestesiada, assisto a quase toda a novela de época com Camila Pitanga (não vou me dar ao trabalho de pesquisar o nome no Google), que trata de preconceitos sociais, raciais, sexuais e ensina história do Brasil em língua carioquesa. Durante a visita diária ao hospital eu vejo as polêmicas em tons pastéis da tímida e esforçada Fátima Bernardes. Domingo passado, durante um almoço com amigos, vimos Ellen Oléria cantar Milton Nascimento, no The Voice. Ontem assistimos ao Esquenta, de Regina Casé.

O Esquenta recria atualiza a Discoteca e o Cassino do Chacrinha. Só que, ao invés do caos antropofágico abelardo-barboseano, a confusão do Esquenta é organizada. Muito bem ensaiado, o público se mistura aos contrarregras, passistas, coristas, figurantes, jogadores de futebol, cantores de pop rock, pagodeiros, atletas paraolímpicos, pessoas com necessidades especiais, formandos, garis, a diretora do Sarah (para quem não conhece, um hospital que trata de pessoas com problemas graves de mobilidade), e a presidenta Dilma - sem ninguém esbarrar em ningúem.

O programa apregoava insistentemente o Brasil Melhor. O país onde a classe C (denominada "desfavorecidos" no governo anterior) aumentou o poder aquisitivo, tem acesso à saúde, educação, superou os preconceitos e participa democraticamente do programa. Várias vezes se disse, no ar, que o Brasil é lindo porque é o país da diversidade, o país que respeita a diferença, o país de um povo pra frente, feliz, que enfrenta miséria e a adversidade com pensamento positivo, um povo que minimiza seus problemas com pensamento positivo e alegria de viver.

Lindo. Emocionante. Contagiante. Quase me convenci.

Cheguei em casa incomodado. O programa colorido, que escrachava seriedades, dançante, pra-cima, tratando temas contundentes com requebro e jogo-de-cintura era mesmo o retrato do Brasil? Seria eu então um estrangeiro, de olhar míope, excessivamente crítico, pessimista, depressivo, olhar obscurecido, que só vê o lado negativo das coisas, que me recuso descer do pedestal para ligar o controle remoto e compartilhar aquela simplicidade da vida?

Daí eu li nas redes sociais a tradução perfeita para o meu estranhamento:

Fiquei pensando em como deve ser esse país maravilhoso, onde Regina Casé e Dilma Rousseff vivem. Deve ser legal morar num lugar assim, sem intolerância religiosa e no qual todos os problemas nascidos do convivio entre as diferenças são facilmente resolvidos com simpatia, otimismo e bom humor.

Ufa, Vera Gangorra, você sabe. Você também viu. Eu não estou doido. Eu não enxergo torto. Não basta samba no pé, flor no cabelo e sorriso na cara para superar limitações. O mundo não é só Rede Globo. Ginga, oba-oba, silicone, batidão e carnaval é essencial. Mas o sujeito que ignora o ladinho obscuro condena-se ao raso e à planura da telinha da existência.

...

Revendo tanta informação absorvida em tempo tão reduzido (a plástica e o discurso irretocável da presidenta, a catarse beirando à paranóia da galera, o biquini de lantejoulas da moça portadora de nanismo, a arremessadora de discos que deu graças a deus por ter perdido uma perna, a malandragem do-bem dos pagodeiros, a moça sambando com uma perna de prótese e a brejeirice das bundas das mulatas) perdi o sono de madrugada. Aproveitei para ler Flannery O'Connor. Uma daquelas sábias que escreve com humor e crueza as desgraças da nossa existência sem travesti-las com a purpurina da hipocrisia.


domingo, 9 de dezembro de 2012

necrológio atrasado

Praça da Soberania

Todo mundo escreveu sobre Niemeyer no dia da sua morte. Toneladas de elogios.

Eu também escrevi. Um texto ranzinza, implicante, do-contra, chato, estraga-prazer, reclamão. Por isso eu o guardei nos rascunhos. Agora que o assunto deixou de ser manchete, aí vai.

...

Niemeyer foi um dos grandes homens do século. Um herói brasileiro. Humanista. Comunista. Ateu. Sua arquitetura monumental é pura poesia de formas e linhas curvas. Trabalhou até os últimos momentos, aos quase 105 anos de existência. Levou a arquitetura brasileira, junto com o samba, a bossa-nova e o futebol para o resto do mundo admirar.

Isso foi dito e redito, escrito e reescrito, até a exaustão. No rádio. Na tevê. Na internet. Nas revistas e nos jornais: do Le Figaro ao Washington Post, do El País ao Corriere Della Sera, do Estadão ao Diário de São Raimundo Nonato.

...

Meu pai foi candango. Veio trabalhar na construção de Brasília, em 1957. Na certa trabalhou em algum dos edifícios-monumentos de Niemeyer. Meu tio perdeu a mão em outro deles. Assim, sou daqueles brasilienses que, como disse um político daqui, respiro Niemeyer, tenho Niemeyer no sangue.

...

100% das matérias que li (e ouvi) elogiavam a arquitetura poética de Niemeyer. Citando: Palácio da Alvorada, 3 Poderes, Catedral, Igreginha, em Brasília; Pampulha, em Belo Horizonte; Ministério da Educação (hoje Gustavo Capanema), no Rio de Janeiro; Edifício Copan em São Paulo; e inúmeros outros.

Mas todos calaram-se sobre as obras polêmicas. É natural. Os defeitos dos mortos são rapidamente esquecidos e as qualidades ressaltadas.

Admito, leitor: a partir daqui eu me exponho aos impropérios e ao apedrejamento estético-ideológico. Por entrar no campo do gosto pessoal.

Niemeyer (como humano que foi) também teve seus defeitos. Também criou obras de estética duvidosa. Ruins mesmo.

...

Algumas obras polêmicas de Niemeyer têm sua graça. Transitam no grupo das grandes citadas acima. Exemplos? a Passarela do Samba, no limite do aceitável; o Museu da República, pesadão, mas integrado à paisagem sci-fi de Brasília: (Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente  para aquele mundo. - Clarice Lispector); o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, ferindo ou harmonizado com a paisagem; o Museu de Arte de Curitiba, olhão desajeitado, tanto por dentro quanto por fora, mas instigante.

No entanto, tem muita obra que, mesmo com boa vontade, pouca gente consegue defender: os "vulcões"do Centro Cultural de Le Havre, na França; a mão sangrando do Memorial da América Latina, em São Paulo; a "tulipa do cerrado" da Torre Digital; as linhas retas destoantes, hoje encobertas pelas árvores, do hotel em Ouro Preto; e basta.

(Ia me esquecendo do projeto da grotesca Praça da Soberania, contendo, dentre outros, o memorial dos presidentes e um obelisco de 100 metros que, graças a um grupo de arquitetos e cidadãos brasilienses, teve sua construção vetada).

Não que seja culpa do arquiteto. A fama internacional, a competência, a maestria, a produção incessante, as articulações políticas, o discurso, a respeitabilidade da idade, a ocasião, a demagogia, tudo foi motivo para Niemeyer projetar. Foi convidado pelos governantes e aceitou. Quem não aceitaria?

Mas, em se tratando de obra pública, de monumento para a posteridade, de patrimônio histórico, a hegemonia Niemeyer não se justifica. Por que sempre ele? não se deveria consultar antes especialistas? trazer a discussão a público? chamar gente nova? promover concursos, como o próprio, junto com Lúcio Costa ganharam para construir Brasília? perguntar se a população quer e concorda?

...

Não quis em nenhum momento denegrir Niemeyer. Reafirmo sua genialidade. O arquiteto foi o máximo. E, humano, além de maravilhas, também legou criações infelizes.

Passear pela primeira ou milionésima vez, à noite, no Eixo Monumental, da Rodoviária até a Praça dos 3 Poderes é um deleite para o olhar. Uma epifania clariceana. Porém, é uma agressão para o mesmo olhar tropeçar, até o fim dos tempos, na feiosa e desproporcional Torre Digital.

Concluo, então, com uma prece agnóstica aos deuses (?): que Oscar Niemeyer descanse em paz. Que seja eterna e que inspire as gerações futuras a beleza e a harmonia das curvas dos edifícios-esculturas dele. E que livrem Brasília do desengavetamento do projeto da Praça da Soberania.


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

apontamentos para o retorno do herói

O herói largou a mochila no meio da sala. As mãos vazias, como se diz, uma à frente, a outra atrás. Constava, única riqueza, o único despojo, o único espólio, as próprias histórias, talvez menos vividas que inventadas, tanto tempo longe, e que lhe sugeriam um rumo à existência.

Sozinho ele partira. Sozinho retornara.

Não houve para o herói cão, velho servo, ama-de-leite, filho imberbe, esposa, pretendentes, artimanhas ou lutas sangrentas para reaver a casa. Somente a correspondência entupindo a caixa do correio e a fresta sob a porta.

E, amontoada por sobre o sofá e a mesa-de-centro, e se espalhando sobre o tapete, escorrendo pelo chão da sala e do resto da casa, a teia áspera de cada dia, cada hora, cada minuto tecida pela ausência.

sábado, 1 de dezembro de 2012

o herói diante do espelho

é estúpido eu me ver nu no espelho grande do banheiro logo cedo
o riso de quem bebeu demais
o olhar de quem cheirou demais
a pança de quem jantou demais
de quem fodeu demais depois do jantar
de quem bebeu, cheirou, fodeu
depois dos jantares dos últimos dez anos

eu quem frequentava palestras, seminários, workshops
cursos à distância e os presenciais
quem reaquecia o ânimo da galera desatenta
e concluía discursos motivacionais com uma piada inteligente
quem distribuía charutos, os brindes
e servia espumante na festa de confraternização dos subgerentes

eu que até ontem, depois do jantar
fui simpático, engraçado, bem-humorado, de-bem-com-a-vida
eu que sempre contribuí, facilitei
viabilizei projetos
propus soluções
superei metas
sem nunca perder o foco

eu quem cedo ou tarde galgarei o melhor cargo
que sentarei na cabeceira da mesa de reuniões
que estacionarei o carro na vaga privativa
que serei imprescindível e terei direito às melhores comissões
não sou eu o idiota refletido no espelho grande do banheiro

não é minha a cara frágil
o olhar apavorado
de quem teme uma congestão
uma doença venérea
um ataque cardíaco
um avc
uma congestão intestinal 
um mau jeito na coluna
uma gastrite, uma úlcera, um câncer no estômago

não é minha essa cara aparvalhada
de quem teme novos desafios
a contenção de gastos
a redução do quadro
a reestruturação do plano de saúde
as variações da bolsa
a apólice do seguro de vida
o complemento da aposentadoria por invalidez
a prestação da casa própria
a demissão 
o processo por danos morais
(afinal, nunca se sabe, essas putas, esses filhos das putas)
depois do jantar

eu ligo a torneira de água quente e espero o vapor embaçar o vidro
eu espero o vapor embaçar a ridícula imagem refletida

antes de qualquer coisa eu devia fazer a barba
tomar um anti-ácido
pedir suco de melancia com laranja e adoçante
um energético

e vestir o terno, a camisa branca e a gravata dependurados no cabide dos bem-sucedidos

definitivamente não sou eu esse parvo, esse gordo ridículo
úmido, peludo, recurvado
coçando a bunda e mal reprimindo um peido
cintura larga, a barriga escondendo
o pau murcho, encolhido
inútil como o pau de um menino velho