quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

pequenos assassinatos (*)


Passo o dia inteiro na rua.

Chego em casa à noite. O cão só falta ter um piripaque de felicidade. Nem sinal da gata.

Fervo água para o chá. Como os restos da geladeira com pão de abóbora. Tomo banho. Procuro a gata no quintal. Nem sombra. Vou trabalhar.

Cena 1:

O chão do escritório forrado de algo que não consegui identificar. Penugens e penas cinzentas. Muitas. Sobre a cadeira a cena hitchcockiana: um pardal. Depenado e estripado, vísceras expostas, ainda mole. Na prateleira mais alta, sobre os Caldas Aulete, cintilam os olhos amarelos, redondos da gata. Observando a minha reação.

Retribuo o olhar. Pura censura e reprovação. Enquanto eu recolho o cadáver e as provas do crime ela desaparece.

Cena 2:

Silêncio sepulcral (adoro esse clichê) na casa. Só rompido pelo telecoteco do teclado. Meia hora depois vou buscar água. Quem eu vejo? a gata. Onde? na cozinha. Fazendo o quê? torturando uma microlagartixa. Já sem rabo e perninhas.

Travessura tem limite. Desconsidero tudo o que sei sobre compaixão, zoologia e psicologia dos animais domésticos. Incorporo o pior dos pedagogos. Dou um berro. Só não acerto a vassourada porque ela é mais esperta e se escafede pela área de serviço.

Cena 3:

Pra lá das 3 da manhã. Vou dormir. A gata na cama, miúda, linda, pura inocência e fofura, ressonando aninhada sobre o cobertor. Deito-me de lado, sem interromper-lhe os sonhos de futuros assassinatos.


(*) mesmo título do filme de Alan Arkin

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

curiosidades do mundo antigo: rômulo, remo e a fundação de roma (intervalo 2)

(de: http://www.folhadoes.com)

Como foi dito no primeiro capítulo da minissérie, Plutarco menciona várias versões sobre a origem de Roma. A maioria trata os gêmeos Rômulo e Remo como história da carochinha. Dentre as mais plausíveis, Roma teria sido fundada por famílias dos derrotados da guerra de Troia: Uma vez salvos da espada, embarcaram em navios ocasionalmente encontrados no porto e foram lançados pelos ventos à costa da Toscana, onde puseram âncoras perto do rio Tibre.

...

A visão de futuro das mulheres é incomparavelmente mais abrangente que a dos homens. As troianas estavam exaustas de navegar sem rumo, ao sabor dos ventos. O local onde estavam acampados, à margem do rio Tibre, era aprazível; a terra era fértil; os vizinhos eram dóceis e obsequiosos; os negócios prosperavam. Lugar perfeito para criar os filhos e os netos em paz, segurança e tranquilidade.

Elas ousaram. Arriscaram. Piraram de vez. Enquanto os maridos dormiam, atearam fogo aos navios.

Os maridos ficaram muito putos. Afinal, eram eles que mandavam. Afinal, como desbravariam terras desconhecidas, guerreariam, conquistariam povos, saqueariam tesouros e estuprariam as mulheres dos vencidos? Afinal, como descarregariam a testosterona? No cabo da enxada? na foice, no forcado, na sega do arado? Afinal, plantar e colher era coisa de mulherzinha ou de gente desqualificada. Afinal... Rapazes limitados aqueles troianos.

Então veio o golpe de mestre das moças. Adivinhem o que inventaram para sossegar os pobrezinhos maridos que se sentiam emasculados? As troianas mães do futuro império romano inventaram o beijo na boca. Sério. Plutarco confirma:

E dizem que daí começou o costume, que ainda hoje dura em Roma, de saudarem as mulheres seus parentes e maridos beijando-os na boca, porque então essas damas troianas saudavam e acariciavam os maridos, depois de lhes haverem queimado os navios, pedindo-lhes que acalmassem sua cólera e má disposição contra elas.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

ensaios para te confessar algo

Era para te dizer que ficou tarde. Que a chuva escorreu pelo ralo e que minha pele continua seca. Que a coruja-harpia rascou o escuro com o bico e as garras cravadas no teu nome. Que a sombra da morte é do tamanho da noite. Sorte haver ainda lua entre as nuvens.

...

Fechei as cortinas e acendi a luz. Joguei no lixo as agulhas, os vidrilhos, as lantejoulas, as fitas coloridas, os fios de aço e seda com os quais bordávamos nossa presunção. Mesmo assim eu não me senti mais leve.

...

Borrei com algodão umedecido o contorno das palavras. Amoleci a certeza dos sentidos. Raspei com a lixa de pé a dureza dos significados. Só para não ter o que dizer. Doem-me os ombros e a unha encravada do dedão do pé.

...

Exorcizo demoniozinhos raquíticos do que restou de você em mim. Esmago insetos, répteis e ratazanas enquanto abro bem os olhos ando firme na direção da porta principal.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

rené descartes na piscina

Hoje de manhã, enquanto descansava entre um educativo e outro na piscina, na raia ao lado da minha estavam pai e filha franceses.

O pai ensinava a garota a nadar. Porém, ao invés de demonstrar a flutuação, a braçada, a respiração, a batida das pernas - ele falava e falava e falava, explicando e repetindo detalhada e enfaticamente cada movimento que a menina deveria fazer.

Era um privilégio assistir ao Discurso do Método sendo colocado em prática. Entusiasta do oposto empirismo, recoloquei os tampões de ouvido e os óculos, calcei as nadadeiras e iniciei uma sequência de pernadas sem esperar o fim da explanação e ver a menina dar as primeiras milagrosas e racionais braçadas.

curiosidades do mundo antigo: rômulo, remo e a fundação de roma (episódio 4)

(de: http://www.librosmalditos.com)

Começaram os trabalhos da construção de Roma. Sob a proteção de Apolo, que a toda hora metia o bedelho, via oráculo. Por exemplo: ordenou que se construísse um templo de refúgio para [abrigar] todos os afiltos e fugitivos, indiscriminadamente. Não precisava RG, CPF, atestado de bons antecedentes, curriculum vitae, entrevista, ficha de inscrição, nada. Era chegar e ficar. Boa estratégia. Mão-de-obra abundante. Desqualificada, porém barata.

Construir Roma era um sonho desenvolvimentista grandioso dos gêmeos. Necessitava-se de investimentos vultuosos, participação de capital internacional, empréstimos ao FMI da época, articulações políticas, concessões dúbias. 50 anos em 5, como se disse muito tempo depois.

Foi quando surgiu a primeira querela entre os gêmeos. Com resultado catastrófico.

Diz-se que o motivo era que Rômulo queria construir uma cidade plana, em forma de quadrado. Remo queria uma circular, sobre o o monte Aventino.

Ao invés de perguntar ao oráculo, consultar o agrimensor, o urbanista, o engenheiro ambiental ou decidir no par-ou-ímpar, escolheram decidir a pendenga pelo voo dos pássaros. Mais especificamente dos abutres. Quem enxergasse o maior número deles escolheria o local.

...

Para os romanos da época o abutre era o animal menos malfazejo, que não prejudica nem arruina coisa nenhuma que os homens semeiam, plantam ou nutrem; visto como se alimenta somente de carniça e não fere nem mata jamais o que tenha vida; do mesmo modo não toca nos pássaros mortos pela conformidade do gênero existente entre eles.

...

A sede de poder tira qualquer um do sério. Devia rolar também alguma questão relacionada à grana. Sabe-se lá. Nesses casos é sempre como no samba: Irmão desconhece irmão.

Remo era ingênuo. Falou primeiro. Tinha visto 6 abutres. Rômulo nem pensou duas vezes. Imaginou rápido: governar sozinho o futuro maior império da terra. Trapaceou. Afirmou ter visto o dobro. Remo duvidou. Rômulo jurou pela mãe mortinha atrás da porta. Discutiram. Brigaram feio. Rômulo segurou Remo de jeito. Fincou-lhe a peixeira no bucho. Matou Remo. Colocou a culpa em um tal de Céler, que sumiu do mapa celeremente sem deixar rastro.

(continua amanhã: o rapto das sabinas)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

curiosidades do mundo antigo: rômulo, remo e a fundação de roma (episódio 3)

imagem de: http://www.picstopin.com
O episódio passado terminou na parte em que o porqueiro e a esposa Larência pegaram os meninos para criar.

Rômulo e Remo cresceram. Eram belos de corpo. Somente de se lhes verem o talhe e os traços do rosto, deduzia-se a sua origem real. 

Eram a dupla mais legal da vizinhança. Líderes natos de uma galera da pesada, composta de grande número de vagabundos sem lar nem lugar, e servos fugitivos que eles próprios incitavam a escaprem dos senhores.

Rômulo era mais do intelecto. Líder nato. Remo, puro impulso e emotividade. Um dia Rômulo estava ocupado, sacrificando a algum nume. Foi a deixa para Remo meter-se em encrenca. Briga de gangue. Levou a pior. Foi preso e conduzido a justificar-se ao ex-rei Numitor, dono do pedaço (mesmo destronado não perdeu a realeza).

Vou pular os quiproquós até vir à tona o segredo da origem dos gêmeos. Eram os netos de Numitor sequestrados por Amúlio que todo mundo pensava estarem mortos.

Amúlio foi morto pelos comparsas dos dois irmãos. Restituíram Numitor ao trono. Não receberam recompensa, agradecimento ou cargos importantes no novo governo. Quando anunciaram que partiriam para novas terras, o povo de Alba não insistiu para que ficassem. Aliás, ficaram aliviados. Imagine, quanto maior a distância daquela turma de banidos, vagabundos, criminosos impunes, ladrõezinhos, fugitivos, etc, melhor.

Então os gêmeos partiram. Dispostos a construr uma cidade no lugar onde primeiramente haviam sido nutridos. Isto é, às margens do rio Tibre. Essa cidade seria Roma.



quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

curiosidades do mundo antigo: rômulo, remo e roma (intervalo comercial)

(Detalhe de vaso. Hetaira. De um site erótico russo intraduzível)
Plutarco conta uma história divertida sobre outra Larência, homônima e colega de profissão da mulher do porqueiro do episódio 2 (leia aqui).

...

O movimento estava fraco no templo de Hércules, em Roma. O sacristão não tinha o que fazer. Por pilhéria, convidou o semideus para jogar damas (dados, no original). Falando sozinho, apostou que se ganhasse, Hércules teria de enviar-lhe alguma felicidade, sem explicitar qual. Se perdesse, prepararia um jantar chique e conduziria uma bela mulher para deitar-se com ele [com o herói divinizado].

Hércules ganhou a disputa imaginária. Melhor seria não arriscar o castigo divino, pensou o sacristão. Cumpriu a promessa. Mesmo sabendo ser uma pândega. Preparou para Hércules pasta com molho funghi, cordeiro assado com molho de hortelã, serviu vinho chileno de uma boa safra e musse de chocolate na sobremesa. Pra completar o pagamento da aposta, alugou essa cortesã Larência, que era muito bela, mas ainda não famosa.

O sacristão fez faxina, arrumou a mesa, a cama de casal e o banho na suíte do templo. Trancou lá a moça lá e foi para casa dormir. Assim que saiu, Hércules materializou-se. Fartou-se de comer. Elogiou o tempero da comida e as novidades eróticas de Larência. Ficaram juntos até de madrugada. Na despedida, Hércules ordenou que Larência cumprimentasse o primeiro homem que encontrasse na rua.

A moça não entendeu mas obedeceu. Afinal, era ordem de uma criatura divina. Cumpimentou o madrugador Tarrúcio, homem já muito idoso, que havia acumulado muitos bens e não tinha filhos, bem como nunca fora casado. Foi amor à primeira vista. Com a bênção de Hércules. Casaram-se e viveram felizes para sempre.

Sortuda Larência. Herdou a fortuna do idoso Tarrúcio, que bateu as botas no primeiro ano do casamento. Larência tornou-se uma senhora muito famosa e honrada. Ainda por cima Hércules no topo da lista de antigos clientes.

Quando Larência morreu, deixou a fortuna para o povo romano. Foi enterrada no mesmo lugar da xará, colega de profissão de outros tempos, e mãe postiça dos fundadores de Roma.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

curiosidades do mundo antigo: rômulo, remo e a fundação de roma (episódio 2)

Picanço barateiro. Guache. http://historiasalapis.blogspot.com.br
Agora a emenda. Foram feitos pequenos ajustes às versões contadas por Plutarco. Para melhor entendimento, substitua o nome de Tarquécio do primeiro episódio (leia aqui) para Amúlio.

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Amúlio e Numitor eram descendentes do conhecidíssimo rei troiano Enéias. Herdaram um reino e certa quantia de ouro e dinheiro. Amúlio era malandro. Na divisão, ficou com o ouro e o dinheiro. Numitor com o reino. Com dinheiro e ouro Amúlio equipou um exército e conquistou o reino de Numitor.

Para garantir que a descendência do rei deposto não vingasse, Amúlio enviou a única filha de Numitor, chamada Reia Sílvia, para ser freira-sacerdotisa no templo-convento das Vestais. Não se sabe como (terá sido o caralho voador da primeira história?) Reia Sílvia engravidou.

Foi condenada à morte por isso (as sacerdotisas de Vesta eram virgens). Mas a prima Anto (filha de Amúlio) intercedeu. Escondeu a grávida em uma torre inacessível.

Quando nasceram os gêmeos maravilhosamente belos e grandes, Amúlio fez igual à madrasta de Branca de Neve. Entregou os meninos para o capataz matar. Exigiu que lhes arrancassem os coraçõezinhos e os trouxesse como prova do assassinato.

O capataz ficou com dó. Ajeitou os bebês em uma tina e jogou no rio. A tina flutuou na correnteza até encalhar. Ao invés dos 7 anões, uma loba encontrou e amamentou os pimpolhos. Um picanço colocava migalhas nas boquinhas deles.

Um porqueiro (vaqueiro na história anterior) encontrou e recolheu e adotou os gêmeos.

A mulher do porqueiro chamava-se Larência. Era daquelas profissionais que abandonam o corpo a todos os que aparecem, sob remuneração. Larência e o porqueiro criaram os meninos como se fossem seus filhos. Batizaram-nos Rômulo e Remo. Deram-lhe educação. Ensinaram-lhes todas as outras coisas honestas que se constuma mandar ensinar às crianças de boa e nobre casa.

(continua amanhã)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

curiosidades do mundo antigo: rômulo, remo e a fundação de roma (parte 1)

Rômulo e Remo mamando na loba. Imagem da wikipedia.

Na vida de Rômulo, Plutarco menciona várias versões sobre a fundação de Roma. A do rei Tarquécio e a dos irmãos Amúlio e Numitor são as minhas preferidas. O motivo? não passarem de fábulas e contos recreativos, onde não há nenhuma verossimilitude. O início das duas é idêntico (mudam os nomes dos personagens). A segunda história acrescenta o desfecho da primeira. Por isso tomei a licença poética de juntá-las.

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Era uma vez um rei cruel chamado Tarquécio. Certo dia apareceu no palácio uma forma de membro viril que ficou por ali, de bobeira, por vários dias. Parecia inofensivo, mas incomodava sobremaneira quando roçava em Tarquécio. Foi então o rei consultar o oráculo. Era um falo milagroso. A princesa transaria com ele. Geraria um filho valente e famoso que superaria todos de seu tempo.

Tarquécio obrigou a filha a ficar com monstruoso membro viril. Ou a cantada do falo era ruim ou não rolou química entre eles. A moça não estava a fim e pronto. Mandou uma serviçal representá-la. Tarquécio ficou pê da vida. Prendeu a filha e a empregada na torre mais alta do castelo e condenou-as à morte.

À noite, Vesta (deusa do fogo dos lares) apareceu em sonho a Tarquécio. Proibiu-o de matar as moças.

Tarquécio era mesmo muito malvado. Enganou a deusa. Determinou que as moças fossem libertadas com a condição de lhe tecerem um manto. As bobinhas acreditaram. Teciam o dia inteiro. Mas enquanto dormiam o serviço era desfeito por outras tecelãs, sob ordem de Tarquécio.

9 meses depois a criada deu à luz gêmeos. Filhos do membro viril sobrenatural. Tarquécio arrancou os bebês do peito da mãe. Entregou-os ao empregado Terácio, para que este os matasse. Terácio teve pena dos meninos. Abandonou-os à margem do rio Tibre. Onde uma loba e pássaros os alimentaram.

Passava pelo local um boiadeiro. O boiadeiro ficou maravilhado com a cena. Aproximou-se. Carregou consigo os meninos.

(continua amanhã)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

apontamentos dispersos sobre heróis

Recapitulo meus heróis. O primeiro foi Pedro Malazarte de um livro com ilustrações que lembravam Brueghel. Rei Artur e Robin Hood, via Walt Disney. Os super-televisivos Batman, Thor, Príncipe Namor. Tiradentes esquartejado nas aulas de Estudos Sociais e Educação Moral e Cívica. Além dos mitológicos Teseu e Ulisses.

Já maiorzinho eu me identificava com o desmiolado Hamlet e o idiota Príncipe Michkin das leituras escondidas. Dom Quixote. Macunaíma-Grande-Otelo. Lampião do Cinema Novo.

Ao final da adolescência, e por muito tempo, veio Gregor Samsa, metamorfoseado em barata. Lado a lado com os revolucionários Che Guevara e Sandino. E o aterrorizante Zaratustra.

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O herói é assim considerado por realizar feitos extraordinários, extra-humanos. Essa característica é devida a diversos fatores, surgidos em doses excessivas, quase sempre antagônicas, todos juntos ou agrupados em combinações. Tais como: ascendência divina; origem humilde; força física sobrenatural; fragilidade aparente; beleza e harmonia de feições; feiúra e desajeito; destreza; inteligência; liderança; carisma; cavalheirismo; grosseria; impulsividade; ira; descontrole; idealismo; egoísmo; ambição desmedida; despreendimento; fé e/ou convicções inabaláveis; astúcia; estupidez; rigor exgerado de caráter; doses variáveis de desonestidade.

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Grande parte dos heróis já nasce herói. Porque ser herói é atributo divino. O nascimento do herói é cercado de fatos ou indícios sobrenaturais, predições, profecias. Os que não nascem heróis acreditam e desejam e inventam para si o posto: Virgolino, o Lampião, por vingança. Alonso Quijano, o aldeão manchego, de tanto amar romances de cavalaria, autonomeou-se um.

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O anti-herói é a negação do herói. É fraco, escuso, inseguro, apagadinho, comum. Porém possui o mesmo poetencial de loucura do herói. Quer pessoa mais normal que Michkin? o caixeiro-viajante Gregor Samsa? o estudante Raskolnikov?

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Os heróis superam provas variadas. Envidam muita energia para atravessar e superar missões impossíveis. Os anti-heróis por sua vez atravessam (ou tentam atravessar) heroicamente os infernos interiores próprios. Por isso ambos tornam-se seres egocêntricos e individualistas e incompreendidos.

A morte, tanto para o herói quanto para o anti-herói, não é um tabu.

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Além dos atributos pessoais, ser herói depende da oportunidade. Estar no lugar certo, no momento certo. Devem existir testemunhas para o seus atos. Que garantirão a publicidade e o registro dos feitos para a posteridade. A ocasião faz o herói.

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Mesmo quando arrebata multidões o herói é solitário.

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A maioria dos meus heróis encontrou final sangrento. Ou mergulhou na escuridão e na loucura. Não me lembro de nenhum que tenha morrido de overdose, como os da música, os da geração que viveu a virada do século XX. Aliás, meus heróis nunca foram de carne e osso. Poucos tiveram registro histórico.

Na proporção direta da maturidade, da consciência, da desilusão e do desengano da condição humana, a pureza e a sobre-humanidade dos meus heróis reduziu-se. Cedeu espaço aos anti-heróis. Que também enfraqueceram. Até restar ninguém.

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Meus heróis habitavam o mundo caótico do papel, da película e da imaginação.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

10 coisas que aprendi na semana

1. Fazer beiju de tapioca.

2. Deixar para amanhã o que não deu pra fazer hoje.

3. Ouvir histórias da vida alheia sem pensar em literatura.

4. Mesmo os sedentários gatos persas são caçadores.

5. O passado é o presente já vivido. O futuro é o presente que acontecerá.

6. Os heróis são receptáculos vazios onde depositamos as nossas incapacidades.

7. Amigos são para sempre. Sempre é sempre o presente.

8. Mesmo o cão mais educado terá seu dia de transgressão.

9. Esperar não significa estagnar (vide item 2).

10. Preciso acreditar na grandeza das insignificâncias.

o elogio

(imagem de: http://blog.implantecapilar.med.br)

Conta a lenda que ficamos reféns incondicionais do Grande Irmão de George Orwell assim que acessamos a internet. Uma entidade abstrata, onisciente, onipotente e onipresente, representada aqui na terra por hackers mefistofélicos, decodifica as nossas senhas, lê os nossos textos privados, desbrava nosso HD, divulga nossas fotos em poses ou trajes comprometedores, descobre os sites que acessamos depois da uma garrafa e meia de vinho durante a madrugada, etc.

Não entendo os mecanismos de contagem de acessos do blog. Quando há na postagem do dia termo, nome ou expressão de popularidade (personalidade da mídia, título de filme ou best-seller, termos como igreja, governo do PT, casamento gay, etc) a quantidade de acessos quadriplica. Quando isso acontece, chegam comentários-spams mais absurdos, anônimos.

No dia seguinte à crítica desfavorável ao texto sobre Teseu (se ainda não leu, clique aqui) chegou um comentário desses. Divertido. Criativo. Transcrevo:

I'm amazed, I have to admit. Rarely do I encounter a blog that's both еquаlly eduсative аnԁ intеresting, аnԁ without a doubt, уou've hit the nail on the head. The problem is something which too few people are speaking intelligently about. I am very happy that I came across this in my hunt for something regarding this.

De quem seria essa cantada tão bem dada? Quase caí. Mentira, caí como um pato: cliquei no link discreto, ao rodapé da mensagem. Era um site que oferecia similares de marcas famosas de relógios, aparelhos para upgrade de atributos sexuais, para incrementar a quantidade de acessos ao blog e produtos para evitar a queda de cabelos.

Não era ainda a alma-gêmea estético-filosófico-cultural. Mesmo assim eu ganhei o dia. O ego sorriu de orelha a orelha. A auto-estima subiu. O elogio massificado (ele diz isso para todas) até me fez esquecer da crítica desfavorável do dia anterior.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

desenganos

Ela conta: que as araras são monogâmicas. Que os casais permanecem juntos até o fim da vida. Que apareceu uma arara sozinha. Que a arara voava alto. Ou pousava nos galhos do eucaliptal. Chamando o parceiro. Azul e amarelo sobre a mesa. Morto pelo estilingue do menino.

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Eu disse: o dia de hoje não foi engraçado. A cabeça doía quando eu abro os olhos na claridade. O zumbido no ouvido. O medo de abrir a porta da cozinha e dar de cara com o olhar vazio de um morto-vivo olhando para o nada através da sombra do meu olhar.

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Você usou a palavra arrebatador. Para dizer que o vivido foi grande e intenso e profundo. Mas que não adiantava relembrar. Por que não havia jeito de voltar. Você saiu. Trancou a porta. Me deixou sozinho no escuro. Arrastando pelos cômodos o saco de lona pesado onde eu guardava os teus ossos.

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Ele sabe muito. Descreveu a anatomia do vôo de um morcego. Disse que os gatos são responsáveis pela extinção de 70% de espécies de animais de pequeno porte. Enumerou os estágios da transformação de larva em mariposa. Mas não explicou a razão de ainda estar ali. Cheio de conhecimento e de barriga vazia.



quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

a crítica

Rainha de Copas. Do filme Alice, de Tim Burton. Imagem retirada de ego.globo.com

Crítica desfavorável é como chute no saco. Se você receber um em público, deixe a alma se contorcer mas mantenha a pose: corpo ereto, expressão neutra, se possível um sorriso. Finja (aproveitando o bordão infame) que nada vindo de baixo te atinge.

Aconteceu comigo. Hoje pela manhã. Ao abrir a internet. Não acreditei. Alguém indignado com minha versão engraçadinha da vida de Teseu. E não era a Leitora Impaciente.

Em 2011, vivi uma experiência semelhante. Eu era fã de um autor brasileiro contemporâneo, prolífico, novinho, bonitinho, inteligentérrimo e gay. Li os livros dele em pouco mais de uma semana. Louvava o rapaz aos 4 ventos. Criei um link do blog dele aqui. Enviava comentários elogiosos (ou apaixonados?). Assistia às entrevistas em talkshows gravados de canais alternativos. Seguia-lhe os passos e curtia até os puns que publicava nas redes sociais.

No dia da morte de Amy Winehouse o escritor do nariz empinado postou um comentário de mau-gosto no Facebook. Seus 25 mil seguidores curtiram. Menos eu. Eu nem era aficcionado pela Amy. Mas estava meio surtado. Retruquei. Em público. Chamei o autor de imaturo.

Eu sou mesmo muito errado.

Provoquei um pandemônio. 24.996 seguidores indignados. O autor detestou o puxão de orelha (eu também odiaria). Subiu nas tamancas. Me chamou de cafona. De velho gagá. Apagou o comentário.  Excluiu da lista de amizades a mim e aos 4 gatos pingados apoiadores da celeuma. Ainda me xingou e me desejou a morte em privado.

A adrenalina subiu. Perdi o sono. Apaguei o link dele do HD. Redigi uma tréplica irada (publicada na mesma madrugada e sabiamente retirada do ar no dia seguinte). Vendi a obra completa dele para um sebo. A indignação não era pelos xingamentos. Era por ele impedir que a opinião diversa criasse (ou não) polêmica. Ele agiu como a Rainha Copas da história de Alice. Ao primeiro sinal de contrariedade esperneou: cortem-lhes as cabeças!

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Tá, eu não sou santo. Engoli em seco o sapo matutino. Subiu aquela indignação. Aquela raiva básica (caraca, velho, eu fiquei escrevendo até as 4 da manhã e o cara não entendeu nada!)  Li, reli e treli a crítica avessa. Justifiquei educadamente. (Por trás da atitude Polyanna havia o lado interesseiro: nada melhor que uma polêmica para aumentar a quantidade de acessos ao blog).

Ao invés de deletar o instigador (como o bonitinho fez comigo) eu respirei fundo. Zen. Me coloquei no lugar do crítico. Para entender as razões, os argumentos dele. Admirei a coragem de se expor. Inclusive me alegrei: se ele se deu ao trabalho de materializar a crítica foi por que o texto o sensibilizou de alguma forma.

A discussão estava aberta. Pena que o crítico retraiu-se. Pena que ninguém aderiu para se solidarizar ou para atacar. Pena que a minha resposta (e a necessidade de explicações) restou soando no vazio da indiferença. Ou no oceano das inutilidades virtuais.



curiosidades do mundo antigo: últimos apontamentos sobre Teseu

Friso do Partenon representando cena da centauromaquia (extraído da Wikipedia)
Gastei horas escrevendo uma postagem espirituosa, leve e bem-humorada sobre as últimas aventuras do herói Teseu. Ao inserir uma imagem fiz alguma besteira e o texto desapareceu. Apelei a todos os recursos (e aos deuses nela citados) Em vão. Sei que toda a graça original perde-se ao reescrever. Mas não conseguirei dormir sem tentar.

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Em Atenas sacrificava-se pra caramba. Quase sempre ao oráculo de Apolo: para vencer uma batalha; depois da batalha vencida; para pedir conselho; para agradecer ao conselho dado; até para encontrar uma noiva ou se desfazer dela valia a pena um sacrificiozinho. Para alegria dos atenienses, depois do sacrifício rolava uma festança pauleira. Contei 26 sacrifícios e a mesma quantidade de festas nas 100 páginas da biografia de Teseu, por Plutarco.

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Como já foi dito (postagem de 08/02), Plutarco rebolou para transformar mitologia em fatos críveis. Por exemplo, trata Hércules (semideus filho de Zeus com uma mortal) como personagem de carne-e-osso. Narra (sem entrar em detalhes comprometedores) batalhas contra as amazonas (mulheres guerreiras que só tinham um peito) ou contra os centauros, seres metade superior humana e corpo de cavalo.

Da mesma forma ele trata Helena (futura de Troia). Para quem não sabe, Helena era filha de Zeus (o senhor do Olimpo) e Leda. Leda era esposa do rei Tíndaro, de Esparta. Para seduzir Leda Zeus se disfarçou de cisne. Ao invés de parir como qualquer mortal, Leda botou 2 ovos: de um deles nasceram Clitemnestra e Cástor, filhos de Tíndaro; e Helena e Pólux, filhos de Zeus. Plutarco encontrou uma saída elegante. Gastou poucas linhas no tema e mencionou somente o padrasto terreno da moça.

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Todo mundo também sabe que os gregos eram sexualmente bem resolvidos. Por isso vale a pena resumir outra passagem gay (clique aqui para ler a primeira) da vida de Teseu:

Pirítoo era rei dos Lápitas. Bem-humorado, bonitão, sangue-bom e um pouquinho estourado. Queria porque queria conhecer Teseu pessoalmente. Roubou gado ateniense só para provocar uma guerra. Na hora do vamos-ver, logo que [Teseu e Pirítoo] se entreviram, ficaram ambos assombrados com a beleza e a ousadia um do outro, de tal maneira que não tiveram vontade de combater. Plutarco preserva a privacidade do par. Não revela a real vontade que tiveram. Pula para a parte hetero: os dois deram-se as mãos e juraram amizade eterna.

Muito tempo e aventuras depois, Teseu, já cinquentão, enviuvou-se pela enésima vez. Sentiu saudade dos velhos tempos vividos com o amigão Pirítoo. Beberam todas e resolveram raptar umas minas da região. A primeira foi Helena.

Tiraram par-ou ímpar. Teseu ganhou a prenda-Helena. Pirítoo foi mais exigente. Pra ele só servia a deusa Prosérpina (também conhecida como Perséfone), a namorada de Hades, o rei dos infernos. Bêbados como estavam, não pensaram nas consequências. Baixaram no reino dos mortos.

Hades era feio mas não era bobo. Recebeu os pândegos com um banquete. Pirítoo fartou-se. Teseu, mais esperto, declinou. Conhecia a regra: quem comesse no reino de Hades, nem que fosse uma pitanga, era condenado a permanecer lá por toda a eternidade. Pobre e guloso Pirítoo. Ficou sem namorada. Perdeu o pau-amigo Teseu. Virou ração para Cérbero, o cão de 3 cabeças que vigiava o portão do palácio de Hades.

(Plutarco apresenta uma versão plausível ao mito. Nem uma palavra sobre Hades. Retira qualquer característica divina de Prosérpina (ou Perséfone). Era filha de Edoneu, rei dos Molóssios. Cérbero era um cão feroz contra o qual [Edoneu] fazia combater aqueles que lhe vinham pedir a filha em casamento).
...

O pior estava por acontecer. Quando Teseu retornou a Atenas, os adversários políticos armaram-lhe uma pegadinha fatal. Espalharam um monte de fofocas e boatos difamatórios (alguns com fundo de verdade) denegrindo irreversivelmente a imagem do velho rei.

Cabe lembrar que Atenas era uma democracia. Em uma democracia quem manda é o povo. O povo é imprevisível. Com base na boataria o povo ateniense condenou Teseu ao exílio.

Teseu partiu para a ilha de Ciros, onde possuía terras. Licômedes, o rei local, não estava a fim de concorrência. Convidou Teseu para um passeio sobre altos rochedos. Com a desculpa de mostrar a extensão da propriedade do exilado. Aproveitou um descuido do velho rei destronado e precipitou-o de alto a baixo e assim o fez desgraçadamente morrer.

...

Assim acaba a história. Não perca, leitor(a), os resumos de passagens pitorescas dos próximos 45 biografados por Plutarco. A seguir: Rômulo, irmão de Remo e fundador de Roma. 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

manhã da quarta-feira de cinzas

De tanta saudade ela pagou quase o preço de outra passagem para antecipar o voo, chegar em casa um dia antes e fazer uma surpresa pra ele.

Mas a supresa foi dela: um pandemônio de garrafas de long-neck, cinzeiros cheios guimbas, cuecas, latas de cerveja e embalagens de pizza sobre o sofá e a luminária indiana derrubada no canto da sala.

Como reagiria ao abrir a porta do quarto e desse de cara com o Duda, daquele tamanho, dormindo, pelado, de conchinha, com o personal-trainer do andar de baixo?

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

mensagem de voz

Deixei comida suficiente pros 4 dias. A cerveja não coube no freezer. Tem colado na porta da geladeira o telefone do delivery.

Aproveita pra descansar, ouvir as tuas músicas alto, ver os teus filmes de madrugada e ler aquele livrão de 600 páginas. Só não faz muita bagunça. Se der, assista ao desfile pela tevê. Quem sabe eles me filmam... Agora eu vou desligar, a Cecília tá buzinando lá embaixo.

Me esqueci: estamos indo pro Rio, eu, ela, o namorado e um amigo deles. Não fica triste, benzinho, talvez a gente volte na quarta ou no domingo, se tiver sol. Prometo que me comporto. Beijo!

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

fragmentos de autobiografias anônimas: o professor C


Eu caminho todos os dias. Cedo ou à noite. Caminho e penso. Não no sentido restrito do verbo. Ideias. Dispersas. Misturadas. Insights. Atiçados por estímulos externos: luminosidade, tons de verde, pôr-do-sol, etc.


De manhã passos acelerados e pensamentos grandiosos. À noite pensamentos relacionados ao lado safado do sexo.

Não as tinha visto. 4 cadáveres. De pombos. Eletrocutados nos fios de alta tensão. Dispostos matematicamente em 4 pontos do trajeto. Minutos de distância uns dos outros. Em sequência cronológica de óbito.

(Como a capa de um disco antigo: um ramo com uma flor branca representando a primavera; uma maçã verde, o verão; outra, vermelha, o outono; a maçã podre, o inverno). Assim eram o cadáver e as carcaças dos pombos.

O primeiro não parecia morto. Havia brilho no olho vermelho-escuro. Sangue escorrendo pelo bico. Corpo ainda mole. Talvez ainda morno.

O segundo pombo estava intacto. Asas rígidas. Penas desbotadas. Como se sempre fosse: bolo de barro e cinza em forma grosseira de ave morta.

O terceiro era carcaça. Entranhas achatadas. Movimento dos milhões de vermes amontoados. Pequenos e brancos. No côncavo do corpo. Na moldura das elipses das penas das asas.

O quarto era um desenho. Anatomia perfeita dos esqueleto sobre uma mancha escura. Ainda em forma de ave.

Então voltei por outro caminho. Sem pombos vivos ou mortos. Só pessoas desejando bom-dia.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

fragmentos autobiográficos de gente anônima: R

Dias quentes e de céu azul brilhante e brisa balançando as cortinas. Permaneço a maior parte do tempo deitado, ouvindo música, conversando no chat, olhando os e-mails, comprando óculos importados e suplemento alimentar, lendo jornais ou baixando filmes pra assistir quando perco o sono de madrugada, esperando o osso colar.

Desenhei uma mandala do yin & yang rodeada dos trigramas do i-ching com pincel atômico no gesso da perna até quase a virilha e ficou bem bacana. Lembro de ligar para a repartição na quarta-feira, só para não perder o hábito. Confiro o extrato e a planilha de gastos. Presto atenção ao barulho da faxineira arrastando os móveis e aspirando o apartamento de cima, em pleno domingo de carnaval.

Me arrasto até o banheiro com um pré-socrático debaixo do braço. Envolvo a perna em saco de lixo preto de 100 litros, com cheiro de borracha queimada. Busco palavras difíceis para significar bobagens sentado no vaso sanitário. Improviso, de brincadeira, no banho, estrofes para baladas pop ou sambas-meio-bossa-nova que dão vergonha mas transcrevo assim mesmo no computador.

Depois eu descanso. Às vezes cochilo e até sonho. Com imagens da internet ou dos filmes ou dos livros ou dos filósofos ou sei-lá-de-onde. Tipo: escada que sobe e desce ao mesmo tempo; bichos exóticos das profundezas do mar; romãs das Hespérides; mistérios de Eleusis; com a folia e a sacanagem e a putaria do carnaval em Salvador, no Rio de Janeiro, em Recife e Olinda. Ou, meio acordado, fico imaginando a pele, os bicos dos peitos, o(a) púbis cobertos por lantejoulas das mulatas gostosas da tevê.

Ou nos efebinhos, nos fauninhos, nos pierrozinhos, nos eunuquinhos sambando serelepes, quase pelados, urinando no meio da rua, enchendo a cara de cerveja, jogando confete, esfregando os corpinhos suados, vomitando e gozando nos muros ou entre as pernas uns dos outros.

Até ouvir o toque pontual, as 3 batidas de leve na porta: mamãe chamando para o almoço.


sábado, 9 de fevereiro de 2013

curiosidades do mundo antigo - teseu no carnaval

(réplica de bronze pompeiano obtida em http://www.neh.gov/humanities)
As velas dos barcos atenienses que partiam para Creta com a missão de transportar os jovens a serem sacrificados ao Minotauro eram negras. Quando Teseu decidiu partir e resolver o problema (entrando no labirinto e enfrentando e matando o minotauro), combinou com o pai Egeu (que era o rei de Atenas) que ao voltar içaria velas brancas, com o intuito de anunciar aos atenienses o sucesso da missão.

Teseu matou o Minotauro, encontrou a saída do labirinto, salvou os jovens, liberou Atenas do compromisso, raptou e engravidou Ariadne, para em seguida abandoná-la em Naxos (sem razão aparente - dizem que por conselho de Dionisos), etc. Estava tão eufórico com tantos acontecimentos que, ao se aproximar de Atenas, esqueceu-se de içar a vela branca anunciadora de boas novas.

Egeu desesperou-se ao ver as velas negras. Imaginando a derrota e a perda do filho, jogou-se de um precipício. A alegria do retorno misturou-se ao luto pela morte de Egeu.

Teseu foi então coroado. Sua primeira resolução como rei (antes mesmo de unificar as províncias e os burgos da Ática, centralizando o poder em Atenas) foi instituir uma festa estranha, en honra a Baco/Dionisos e Ariadne, conhecida como festa dos ramos ou Oscofórias:

Escolheu dois belos meninos [rapazes] de semblantes doces e delicados como de virgens, conquanto fossem ficando ousados e prontos para a ação; mas tanto os fez banhar com água quente, manterem-se cobertos sem sair ao mormaço nem ao sol, tanto lavar, untar e esfregar com óleos próprios para amolecer a pele, conservar a tez fresca e alourar os cabelos, e tanto os ensinou a contrafazer [fingir ser, disfarçar, dissimular] a palavra, a continência e a maneira das moçoilas, que eles mais se pareciam com elas do que com jovens rapazes, pois não havia diferença que se pudesse perceber.

Esses rapazes eram uma espécie de sacerdotes da festa das Oscofórias. A festa em si contava com uma procissão, onde desfilavam as moças atenienses e os garotos acima citados, levando ramos e frutos, provavelmente semelhante ao carnaval, uma vez ser dedicada a Dionisos.

Quem nos conta essa fofoca é o circunspecto Plutarco: pois não é que o másculo e fortão Teseu, rei recém-empossado e coroado, chefe-de-estado da maior potência do mundo antigo - vestiu-se de mulher, enfeitou os cabelos, perfumou-se (e provavelmente se depilou) para cair na gandaia da festa, em um tipo de Bloco das Piranhas, acompanhado dos garotos da citação anterior?

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

curiosidades do mundo antigo - sofisma existencial

(imagem do blog: www.historianaval.tripod.com)
Conta Plutarco que a galeota de 30 remos na qual Teseu retornou de Creta após ter matado o Minotauro e salvo os jovens atenienses do sacrifício (vide postagem anterior) foi conservada por mais de 1000 anos. À medida que apodreciam, as peças de madeira eram substituídas por outras, novas. Mantinha-se, no entanto, a mesma configuração original. Assim, a galeota atravessou os séculos sempre em perfeito estado de conservação. Durante muito tempo houve grande celeuma entre os filósofos acerca do assunto: uns mantinham que era o mesmo barco, enquanto outros, ao contrário, sustentavam que não. Haverá resposta conclusiva?

curiosidades do mundo antigo - teseu e o minotauro (2)

Ilustração de N. Mengden para a 1a. edição em português de As Vidas dos Homens Ilustres, de Plutarco.
Fui novamente despertado por um alerta de mensagem da Leitora Impaciente (seria a mesma dos posts sobre o Dicionário Analógico?) sobre o texto de ontem (Teseu e o Minotauro). O e-mail aponta fragilidades na argumentação e inclusive questiona minha autoridade no assunto. Resumindo (palavras de Leitora Impaciente em itálico):

a) qualquer pessoa com letramento básico estaria careca de saber a história de Teseu e do minotauro;
b) o resumo do mito é confuso, incompleto e deixa a desejar em termos estilísticos;
c) é uma forçação (sic) de barra resgatar a realidade e as necessidades literárias de Plutarco (mortas com ele há pelo menos 2.000 anos) para os tempos atuais;
d) que é básico para um autor saber contar várias versões da mesma história sem perder o senso de veracidade.
e) que Plutarco foi esperto, tirando o c* da reta ao apresentar as várias interpretações sem em nenhum momento defender a sua própria visão dos fatos;
f) o texto é extenso, prolixo ao extremo e carece de conclusão.

Leitora Impaciente conclui com conselhos, advertências e admoestações:

g) que eu redirecionasse os investimentos financeiros - das velharias corroídas de traça e cheirando a mofo dos sebos físicos ou virtuais para a nova e novíssima produção literária, nacional e estrangeira (anexou à mensagem uma lista intitulada: 100 livros contemporâneos para se ler antes de morrer);
h) que eu me abstivesse de encher as caixas postais e as redes sociais dos milhões de leitores com esse tipo de pseudo-literatura cansativa e demodê.
i) caso eu insistisse em remexer e publicar aquela velharia sem sentido, em atualizar essas histórias arcaicas que nada ou quase nada interessariam às novas e novíssimas gerações digitais, eu perderia parcela considerável dos milhões de leitores arrebanhados nessas quase 3 décadas dedicadas à literatura e às artes em geral.

Tive a impressão de não uma ponta, mas um iceberg inteiro de ironia nas metáforas e nos superlativos de Leitora Impaciente. Não fosse a dúvida eu me magoaria com a contundência dos apontamentos. Porém compreendi-lhe o intuito. Puro e desinteressado desejo de ajudar a me libertar de amarras, do lastro inútil que me prende e me arrasta, como uma corrente subaquática, às profundezas do passado.

Agradeço-vos de coração e alma abertos, Leitora Impaciente. Envidarei todos os esforços a seguir-lhe os  conselhos sábios e publicar de hoje em diante, apenas coisas novas. Permita-me no entanto um único pedido: sua condescendência em postar de vez em quando um comentário ou outro, até concluir a leitura dos 12 volumes do ensebado Plutarco. Prometo caprichar nas ilustrações...

curiosidades do mundo antigo - teseu e o minotauro

O tradutor de As vidas dos homens ilustres, de Plutarco, enumera as vantagens de conhecer o passado histórico, seja pela leitura dos relatos fidedignos de fatos, seja pelo prazer de escutar viajantes que retornam de uma longínqua viagem, seja ouvindo a conversa de um sábio ou as histórias contadas pelos mais velhos, de cujas bocas surgem um fluxo de linguagem mais doce do que o mel.

...

Plutarco era um historiador (além de ensaísta e filósofo). Viveu em Roma, no início da era cristã. Escreveu centenas de livros. Dentre eles, os Homens Ilustres. Ele prezava pela veracidade dos fatos. Traçou paralelos entre as vidas de 46 personalidades do mundo antigo, sempre um grego e outro romano. Uma obra de fôlego.

...

Um pouco de mitologia:

Havia na ilha de Creta um ser, metade homem, metade touro, chamado Minotauro. Sua mãe era a rainha Pasífae, esposa do rei Minos. Pasífae apaixonou-se por um touro maravilhoso, que Posídon (deus dos mares) presenteou a Minos. Pasífae pediu a Dédalo, o arquiteto da corte, que constuísse uma vaca de madeira, na qual pudesse entrar e se posicionar de tal forma que o touro a possuísse. Dessa paixão nasceu o Minotauro.

O mesmo Dédalo foi encarregado pelo rei Minos de construir um labirinto (espécie de prisão, cheia de corredores, de onde ninguém conseguia encontrar a saída) onde pudesse encerrar o filho monstruoso de Pasífae. Minos (que tinha vencido uma guerra contra Atenas) exigia dos atenienses o tributo anual de 12 jovens (6 rapazes e 6 moças) que serviriam de alimento ao Minotauro.

Teseu era filho do rei de Atenas. Era um herói, como Hércules. Juntou-se aos jovens atenienses que seguiam para Creta, com o intuito de pôr fim ao castigo imposto por Minos.

Ariadne, filha de Minos, apaixonou-se por Teseu. Deu-lhe um novelo de lã que o ajudaria a marcar o caminho e encontrar a saída do labirinto. Teseu matou o minotauro, libertou os jovens atenienses e sequestrou Ariadne, para logo em seguida abandoná-la (não se sabe o motivo, ou a pedido de Dionisos) grávida, em uma praia da ilha de Naxos.

...

Plutarco ficou tentado. Queria iniciar a obra grandiosa com a biografia de Rômulo, pretenso fundador de Roma. Como espelho grego, havia o mitológico Teseu. Arriscou. Tentou espremer o mito na caixinha redutora da ciência.

Para Plutarco, deuses, monstros, vaca de madeira, labirinto - era tudo balela. Iria relatar fatos duvidosos. Por isso justificou-se, utilizando uma linda imagem: comparou aqueles fatos obscuros, anteriores à História, às regiões desconhecidas que eram deixadas em branco nos mapas desenhados pelos cartógrafos. Regiões essas onde havia senão profundos areais sem água, cheios de animais venenosos.

Com a ajuda de outros historiadores menos fabulosos, que prezavam a veracidade dos fatos, Plutarco contou a vida de Teseu no limite entre a realidade conhecida e a ficção estranha, arbitrariamente delimitada pelos poetas, que inventavam fábulas monstruosas onde não há certeza nem qualquer aparência de verdade.

O labirinto não passava de uma cadeia na qual não havia outro mal senão o de que não podiam dali sair os que ali eram encerrados. Ao invés de janta do monstro, os jovens atenienses seriam dados como escravos aos vencedores de jogos atléticos instituídos por Minos.

O Minotauro nunca teria existido. O primeiro vencedor dos jogos (e de vários jogos subsequentes) era um general grosseiro, revesso e desgracioso de natura chamado Tauro. Que era amante da rainha Pasífae. Por esse motivo Minos queria se ver livre do general Tauro, custasse o que custasse. Assim, fez com que Teseu o enfrentasse nos jogos e o matasse. Como prêmio pela vitória, Teseu e os jovens atenienses foram libertados e Atenas foi liberada de continuar pagando o tributo anual a Creta.

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Plutarco encontrou uma boa saída. Não deu o braço a torcer aos poetas fantasiosos, cuja criatividade extrapolava a realidade com seus deuses, touros mágicos, monstros e personagens ficcionais. Contou uma história lógica, vivida por personagens humanos normais. Uma história baseada em fatos pretensamente reais. Uma História plausível, com "H" maiúsculo.

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A versão certinha contada por Plutarco é boa. Tentativa de dar uma cara séria a um fato que pertence aos poetas, aos ficcionistas, aos fantasistas, àqueles que habitam os areais desconhecidos, repletos de animais exóticos e peçonhentos.

Eu sou um desses. Ainda prefiro encontrar a saída desenrolando o novelo de lã. Correr o risco, o sobressalto de imaginar o Minotauro em cada canto, no fundo de cada beco sem saída. Ouvir seu berro, sentir sua fúria aproximando-se e depois se afastando. A possibilidade dupla de mortalmente o ferir ou de ser ferido por ele - a acreditar que era apenas uma fofoca sem-graça, diz-que-diz de alcoviteiros contada por escrivões burocratas e carimbada e autenticada por tabeliões excessivamente ciosos dos deveres. E que sobreviveu somente nos arquivos empoeirados, cujas gavetas emperradas não foram abertas desde os tempos de Plutarco.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

pequenas resoluções para o dia que se foi

Não gastar dinheiro com bobagem.
Não gastar dinheiro a não ser com um café expresso.
Devolver o café morno e exigir outro quente.
Tomar um porre de torta-brigadeiro.
Chorar no cinema.
Acreditar que aquilo é fantasia.
Acreditar que as coisas são mais belas do que parecem.

Segurar a gata no colo, mesmo que por alguns segundos.
Resistir até o final o documentário-entrevista com Carl Jung.
Dormir à meia-noite em ponto.
Beber muita água antes.

Encontrar alguém pra compartilhar o kit-preservativo carnavalesco.
Assistir Elza Soares desfilar na escola-de-samba Bola Preta.
Fingir que nada esquisito acontece.
Não achar as pessoas esquisitas.
Não me achar esquisito.
Conviver em harmonia com a minha e a esquisitice alheia.
E me guardar pra quando o carnaval chegar.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

postagem confessional antes do juízo final

Não bastasse o sentimento de culpa e de inadequação, a frivolidade, a soberba, a inconsequência e a pretensão e a ressaca dos últimos dias, uma cigarra ou um grilo ou um bicho qualquer dos infernos de voz potente resolveu de chiar em algum canto da casa. O som ininterrupto ocupa todo o espaço e se posiciona no alto da minha cabeça, reverberando nas paredes internas do discernimento.

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Passei o dia deitado. Dormitando, coçando, ouvindo a chuva, pensando em nada que valesse a pena, tentando não pensar, folheando uns livros, olhando para as manchas de mofo do teto. Fiz chamadas e mandei mensagens pelo celular, mas ninguém atendeu ou respondeu. A televisão estragou. A faxineira faltou. O casal vizinho viajou. O sinal da internet falhou. Nem o barulho dos pássaros, dos carros da rua, nem a musiquinha do caminhão do gás. O mundo acabou durante a madrugada e eu sou o único sobrevivente do cataclisma.

...

Talvez seja hora do crustáceo se recolher à concha emprestada até a maré voltar a subir.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

continuação da nota esclarecedora

A nota esclarecedora postada dia 2 de fevereiro (referente à serventia de um dicionário analógico) pouco dirimiu a dúvida da leitora indócil. Segundo ela, o emérito professor ali citado falou muito e pouco disse. Dessa vez, sem representar ou mencionar os milhões de leitores, a leitora solicitou mais esclarecimentos. E, se possível, ao menos um exemplo:

Atendendo à demanda, transcreverei agora as palavras do Autor (ou do Editor?), na apresentação do livro:

Um dicionário analógico, ou de ideias afins (...) parte de um pressuposto siméttico àquele que rege a função de um dicionário de língua, como oconhecemos. Este é uma ferramenta de busca de significados e informações de uso para palavras que conhecemos; ou seja, partimos de uma palavra conhecida para buscar-lhe as acepções e usos possíveis. O dicionário analógico (...) pressupõe que, ao contrário, temos noção de um significado, temos uma intenção de uso, mas não nos ocorre uma palavra satisfatória. O [dicionário] thesaurus, a partir de um contexto de possíveis significados, oferece uma nuvem de palavras em torno desse significado, ou seja, palavras análogas num maior ou menor grau de proximidade e exatidão, para que nessa nuvem possamos achar a palavra - ou expressão - que melhor nos convém, em qualquer de suas mais prováveis funções gramaticais.

Exemplo (escolhido de forma aleatória):

857. (Objeto ou causa de riso) Anedota, piada, 1o. de abril, gracejo, besteirol, bexiga, pilhéria, tirada, gag, mogiganga, pantomima, espetáculo, chocarrice, palhaçada, gracinha, graçola,comédia, farsa, rabo-leva, bonecos de engonço, trejeito, esgares, careta, macaquice, bobice, truanice, bugiaria, bufão, marzoco, truão, catimbau, palhaço, totó, mascarado, xexé, figura de presepe, bobo alegre, bobo do rei, pessoa ridícula e desfrutável = petisco, piegas, ratazana, bugio, mono, macaco, carniça, chalaça (espírito) 842, arre-burrinho (853).

...

Leitora indócil, admitamos, consultar o dicionário analógico é difícil pra caramba. Os termos não vêm em ordem alfabética, como em um dicionário comum. São precedidos de números, como o negritado no exemplo acima. Números esses que nos transportam a outros números, a outras nuvens de similitudes.

O dicionário analógico pode ser consultado de duas formas distintas:

1) Na primeira, deve-se identificar a área conceitual na qual se encaixa a palavra ou expressão que se quer encontrar. Depois de identificada, busca-se nessa área o grupo analógico mais próximo daquele que provavelmente conteria o termo procurado. Nesse caso, a busca é realizada pela árvore classificatória dos grupos analógicos, ou seja, utilizar-se de uma tabela de classificação das palavras (classes: relações abstratas, espaço, matéria, etc; e divisões: existência, ordem, quantidade, forma, pessoais, etc). Cada categoria ou subcategoria dessas é numerada e reporta um termo ou expressão no corpo do dicionário.

2) A segunda maneira de consultar o dicionário analógico é buscar no(s) grupo(s) analógicos o local do termo ou expressão conhecida. Nesse caso utiliza-se o índice geral, que relaciona cada um dos quase 100 mil termos e expressões do dicionário ao(s) grupo(s) em que se encontra. Esses termos estão catalogados em um Quadro Sinóptico de Categorias, que detalha todos os grupos, por área de conceito. No quadro, existem classes (relações abstratas, espaço, matéria, vontade individual, etc); divisões (a classe das afeições é compartimentada em divisões: afeições em geral, afeições pessoais, simpáticas, morais, religiosas, etc) que, por sua vez, fragmentam-se em subdivisões (obrigações, sentimentos, condições, práticas, etc). Cada um desses grupos têm seu âmbito definido por uma palavra-chave.

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Ufa! O Autor (ou o Editor?) exemplifica e simplifica a aparente complexidade acima. Porém, confesso, leitora ansiosa, tenho queimado dúzias de neurônios sem ainda compreender. Não se pega o jeito, o traquejo, da noite para o dia. Assim que a desenvoltura permitir, asseguro-vos, exemplificarei com próprias (e enriquecidas, potencializadas) palavras.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

nota esclarecedora

Uma leitora, que preferiu não se identificar e, segundo ela, porta-voz de milhões de leitores, encaminhou uma mensagem:

O que é um dicionário analógico?
 
Transcreverei aqui as palavras do professor emérito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, presidente de honra da Academia Brasileira de Filologia, acadêmico correspondente da Academia de Ciências de Lisboa e autor do prólogo do Dicionário Analógico mencionado no post passado, o professor Leodegário A. de Azevedo Filho:

O Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, como todo dicionário analógico, tem função inversa à de um dicionário comum, o qual, a partir de uma palavra conhecida informa seus significados. Neste, busca-se uma palavra, entre muitas análogas, em uma área de significados conhecida e classificada numa frondosa árvore de classificações. (...) No caso em questão, vai-se, além disso [da lexicologia] analisando-se o relacionamento de um conjunto de palavras semanticamente agrupadas, levando-se em conta todas as categorias gramaticais do idioma.

mais sobre sincronia

À tarde eu trabalhava em uma ilustração na qual o personagem tinha mania de arrancar os cílios diante dos colegas de escola. À noite, no teatro, a protagonista arrancava os cílios durante a encenação de uma sessão psicanalítica.

dicionários


Em um post de novembro do ano passado (sobre gripe e cinema) comentei sobre o documentário "Raízes do Brasil", dirigido por Nelson Pereira dos Santos, sobre a vida do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Chamou a atenção a parte em que Chico Buarque (filho do cinebiografado) conta como ganhou do pai o Dicionário Analógico e de Ideias Afins.

Invejei na hora. Perdi o sono desejando o tal dicionário. Procurei na internet, nos sebos virtuais e só encontrei um, aparentemente interessante, porém por preço astronômico, muito além do meu poder aquisitivo.

...

Alguns dias depois, em uma conversa sobre outros assuntos, sem mais nem menos, meu filho (que, duvido muito, acompanha este blog), me falou que tinha encontrado, por preço razoável, em uma megalivraria - adivinhem o quê? - o Dicionário Analógico e de Ideias Afins, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Com apresentação de Chico Buarque.

Só não encerrei a conversa na hora e corri para a livraria porque estávamos em uma expedição, no meio do nada, a pelo menos 1000 quilômetros de qualquer civilização.

...

Assim que desembarquei em Brasília, mal desfiz as malas, descambei para a livraria. Estava lá, ele, novinho em folha, 2a. edição. Meu coração disparou.

A apresentação de Chico Buarque conta a mesma história narrada no documentário citado acima. Porém com detalhes engraçados. Transcrever as primeiras frases é o mais eficaz para descrever a emoção boba que me tomou:

"Pouco antes de morrer, meu pai me chamou no escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferrreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do dicionário Caldas Aulete (...). Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido".

...

Na mesma prateleira, ao lado do "Ideias Afins" (ah, as armadilhas do capitalismo selvagem!) estava o Dicionário de Sinônimos e Antônimos, de Antônio Houaiss.

Não resisti ao impulso consumista. Comprei os dois. Ok, em 10 vezes, sem juros, no cartão.

Ainda na fila para pagar o estacionamento do shopping eu não disfarçava o estado de beatitude. Manuseava os livros como se fossem relíquias.

...

Fiz como o pai do Chico. Coloquei o Francisco Ferreira ao lado dos 5 volumes (capa azul-marinho e letras douradas desbotadas na lombada) do Caldas Aulete. Junto, os sinônimos e antônimos do Houaiss. Como se estivessem em um altar.

É ridículo, mas vou confessar. Possuir o Dicionário Analógico me fez sentir como se tivesse compartilhado aquele momento, quando o carrancudo pai-Sérgio passasse um bastão que de alguma forma o filho-Francisco tivesse que levar adiante. Como se nele, no dicionário, eu pudesse encontrar chaves que destrancariam (e destrancarão) portas insondáveis.

...

(Não acabou. Bisbilhotando, de bobeira, um sebo virtual, encontrei e encomendei, em capa preta e dura, com relevo, por inacreditáveis 4 reais [acrescidos de 16 reais de frete], a 1a. edição (em bom estado de conservação, páginas e lombadas amareladas pelo tempo). Que, permitam os deuses, chegará nos próximos dias, para se juntar ao meu tesouro inofensivo de representações.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

reescrevendo o passado (ode assimétrica)

Passei toda a tarde trabalhando um texto que me acompanha há mais de 30 anos, nunca concluído. Ou melhor, concluido, sim. Em etapas, períodos de vida específicos. Superado e vivido o período, o texto, como se fosse vivo, passava a exigir ajustes, reformulações de pensamento que se adequassem ao novo período iniciado. Perdi a conta das versões e revisões definitivas. Por sorte ou azar eu perdi as versões intermediárias, entre a original e a atual.

Trata-se de um poema. Longo. Escrito entre o final dos anos 70 e o comecinho dos anos 80. Até ganhou um concurso de poesia. Foi publicado no jornal do Departamento de Letras da universidade. Ficou guardado durante anos. Ressurgiu algumas vezes, inteiro ou aos pedaços, em concursos perdidos ou antologias que ninguém leu. Voltou para a gaveta. Finalmente foi publicado (e modificado) logo nas primeiras postagens deste blog.

Era o final da adolescência tardia. Eu vivia em uma espécie de limbo mental e emocional, esquizofrenia branda e inofensiva. Estava na universidade. Integrava um grupo de teatro. Era virgem. Tímido. Estava apaixonado. Pela primeira vez. Paixão platônica. Daquelas de se jogar da torre, cortar os pulsos ou beber formicida com refrigerante.

Convidei a pessoa amada (tecnicamente o melhor amigo) para visitarmos outro amigo, poeta, que se mudara para o Maranhão. A viagem foi intensa. Dias e noites insones, enlouquecidos, vivendo, sentindo, experenciando. Eu escrevia cadernos e cadernos, desenhava blocos e blocos de papel canson A3. Um dia tomei coragem: enchi a cara de cachaça misturada com guaraná Jesus, e me declarei. O cara era hetero, enrustido, babaca, fazia charme, me esnobava, ou, sei lá, simplesmente não estava a fim. Não rolou.

Como diz o lugar-comum, só o tempo para cicatrizar as feridas. Depois de uns 3 anos (!) a paixão padeceu, foi crucificada, morta e sepultada. Os cadernos-testemunhos foram queimados em um surto posterior. Os desenhos sobreviveram e hoje estão protegidos em pastas, no quartinho de depósito.

Sobreviveu também o poema. Uma ode. Inspirada no Poema Sujo (Ferreira Gullar), que na época eu sabia quase todo decorado.

No blog, a ode mudou várias vezes. As construções iam tornando-se mais elaboradas. O vocabulário mais caprichado. As imagens da paixão e do tesão adolescente permaneciam, pulsantes ainda, porém mais depuradas, pretensiosamente requintadas, sofisticadas. Era ainda bruto, porém reescrito sob o crivo da maturidade e da consciência dos fatos e dos motivos. O que se distiguia era outra paixão, mais ampla e intensa, pela vida vivida na cidade de São Luís.

Estava escuro (às 20h30 no horário de verão) quando eu desempaquei a última parte. Manca, disforme, incompatível, assimétrica, aquém das versões anteriores. Me perdi no final. Perdi o sentido daquilo. Conclusão? Fechamento? nenhuns. Afinal, São Luís está irreconhecível hoje. A praia deserta do Calhau virou bairro nobre. O casario azulejado desmoronando. A pobreza expandiu-se, cercou a cidade. O objeto da paixão virou executivo de uma empresa de mineração na África do Sul. Só o amigo poeta continua poeta.

Gastei tanto tempo e energia ao reviver e recuperar aquilo tudo. Eu estava exausto. E faminto. Desliguei o computador. Juntei todos os restos de comida da geladeira: arroz com açafrão, feijão, salada de batata com cenoura, mini-beterrabas pré-cozidas, um tomate, tirada a parte podre e carne moída. Juntei 2 ovos, molho barbecue, farinha, azeite e pimenta. Levei ao fogo mexendo sempre. E me empanturrei. Até quase explodir. Até não caber mais o poema.

(clique aqui para ler a Ode Assimétrica)