sábado, 30 de março de 2013

bang

de: http://retrogasm.tumblr.com

s/t

imagem de: http://laura2u.blogspot.com.br

Como se houvesse uma discrepância, um desfocamento, uma superposição de imagens levemente mal enquadrada. Como um descompasso, uma dublagem mal-feita, a fala sem correspondência aos movimentos labiais. Assim sou eu e o que eu enxergo de mim.


hebdomadário - domingo

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Desde as últimas horas do sábado, minuto a minuto eu espero o domingo acontecer. Então arrasto do sótão o o baú das fantasias e me visto de palhaço, de deus ou de odalisca, dependendo da posição dos astros ou do meu estado de humor. Ao amanhecer, e ainda disfarçado, eu percorro a rua distribuindo confetes, purpurina e milagres pelas caixas de correio, antes que a vizinhança acorde. Eu me afasto quando os cães ladram por detrás das grades ou quando o gato grande e branco surge, de repente, equilibrando-se sobre o muro. Espero o galo cantar três vezes para me recolher e tentar dormir até o sol raiar.

Quando acordo, sol já alto, já passou da hora da missa. Penso, quem sabe, em ligar a televisão ou aspirar o pó dos tapetes. Abro e fecho o livro de cabeceira, levanto-me para urinar e volto a dormir. Confirmando o previsível, e completados os seis dias da criação, eu dedico o sétimo dia ao descanso. Fico por ali, no quarto, entre a cama e a poltrona, sob as cobertas quando faz frio, ou pelado, coberto com a colcha de chenile no verão, vendo pela janela as lagartixas riscando rápidas o áspero do muro, os faisões dourados e os pavões brancos de mil olhos sobre a grama, o revoo dos pavorosos pássaros-roca contra o céu sem nuvens. Ouvindo o barulho, o grasnado das harpias devoradoras de vísceras humanas, os abutres da discórdia à espreita, o crepitar das fênix. Sentindo esvair-se, incontrolada, entre os dedos, gotas cada vez mais escassas da gosma espessa da existência.  

Até o anoitecer e, de novo, a próxima segunda-feira.

sexta-feira, 29 de março de 2013

david linn

The seventh labor (de: http://www.davidlinn.com)

hebdomadário - sexta-feira e sábado

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Sexta-feira eu não estou para ninguém. Não atendo telefone, não respondo mensagens, não abro a porta para o carteiro ou para o funcionário da companhia de eletricidade. Não leio o jornal nem assisto televisão. É o dia de aplicar rodelas de pepino nas olheiras, lixar as unhas, escovar a língua, clarear as gengivas com limão e gengibre e aparar o excesso de pêlos do nariz e das sobrancelhas. Preparo salada de pétalas, fatias de carne fria temperada e arroz negro para o jantar. Retiro da cristaleira a louça e as taças que pertenceram à vovó e os talheres de prata comprados na Sears Roebuck. Resfrio o vinho moscatel e pingo uma gota de água de rosas na jarra de água gelada. Para esperar o grande amor que ainda não veio, mas, tenho certeza, tocará a campainha qualquer dia desses.

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Sábado eu acordo cedo. Frustrado por não ter vindo, ontem, o grande amor. A cabeça estourando por causa do vinho doce e dos cigarros fumados depois do jantar. Ávido para colocar a conversa em dia. Telefono para a amiga com nome de flor e para a amiga com nome de erva aromática mas nenhuma atende àquela hora da manhã. Vou ao mercado com chapéu e óculos escuros. Preencho o carrinho com sorvete e bobagenzinhas para passar o tempo. Guardo tudo na geladeira e me espicho na espreguiçadeira, lendo Dostoievski, ouvindo música clássica ou eletroacústica e observando, de rabo-de-olho, a perfeição dos traços do rosto e do corpo torneado e bronzeado do limpador da piscina. Durmo em meio a pesadelos lúbricos e acordo lá pelas 2, morto de fome e com os ombros em carne viva pelo excesso de sol.

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quarta-feira, 27 de março de 2013

hebdomadário - quarta e quinta-feira

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Quarta-feira eu me atualizo na internet. Pesquiso sobre o novo papa, a morte do caudilho, o avanço da ala conservadora e do lixo não reciclável. Parabenizo, via e-mail, aniversariantes do dia. Divulgo eventos culturais, campanhas solidárias e piadas de gosto duvidoso. Adquiro bens supérfluos via cartão de crédito. Busco amigos incomunicáveis. Leio sobre morte e transformação, etc, (como no texto da segunda-feira). Tento contactar inteligências alienígenas. Procuro corpos de puro desejo, luxúria e êxtase pervertido para satisfazer a minha sofreguidão.

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Quinta-feira é o dia de me redimir. Tomo um copo d'água em jejum e como apenas uma fruta amarela no desjejum. Troco a água-com-açúcar dos bebedouros dos beija-flores antes de limpar as cinzas de incenso do templo dos antepassados. Lavo as contas e me banho com sal grosso e água de pétalas de rosas. Leio versículos dos livros sagrados em geral e pronuncio mantras em voz baixa. Evito carne vermelha no almoço e faço voto de silêncio até o entardecer. Quando assisto ao sol se pôr ou ao nascer da lua sentado em posição de lótus, diante da claraboia do sótão.

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terça-feira, 26 de março de 2013

hebdomadário - segunda e terça-feira

Segunda-feira eu leio sobre morte e transformação; sobre novos gêneros, novos sexos, novos  parâmetros, novas orientações; sobre ética e estética contemporâneas e política do mundo antigo. Folheio imagens exóticas: animais das profundezas oceânicas, anatomia das vísceras, paisagens sublulnares, retratos de homens ilustres, desenhos de orquídeas, insetos e ursos polares. Ouço música de vários gêneros e vejo filmes cult & trash fora do circuito.

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Terça-feira eu pulverizo formicida debaixo da pia da cozinha. Espalho adubo orgânico aos pés das árvores frutíferas e fertilizantes químicos nos arbustos e touceiras ornamentais. Arranco ervas daninhas do gramado. Podo as roseiras na lua nova, retiro as folhas e as flores secas das angélicas, umedeço as orquídeas, replanto as bromélias e as suculentas próximas ao mandacaru, no fundo do quintal. Redireciono os brotos das trepadeiras boas e arranco as espinhentas da cerca-viva, com cuidado para não atingir os ninhos escondidos nem furar as pontas dos dedos ou os olhos.

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fato

eu e minha capacidade inata de frustrar expectativas alheias.

segunda-feira, 25 de março de 2013

fim-de-semana

1. música

Ouço, sem parar, a nova, estranha, compenetrada, contida, densa, atonal, técnica, orgânica, visceral e às vezes saudosista Gal Costa. Tão diferente dos agudos de outras épocas. Senhora mergulhada na contemporaneidade, renovada, sem perder a paixão, o romântico, o ardente, a quase-breguice que fez dela única. Apaixonante, sempre. Cada vez mais diva.


2. projetos

Final de semana de embate interior: entre tentar me concentrar nos objetos-objetivos dos novos projetos - e não fazer nada, descansar, acumular energia para realizá-los. Hora após hora, atravessando as 3 noites, e nada materializado no domingo à noite. Só um cansaço desproporcionado, provocado pela inércia e ao mesmo tempo ânsia de realização.


3. Chuva de diamantes

Eu me arrasto até o shopping sem um pingo de vontade, no meio da tarde de sábado. Para almoçar e comprar o presente de aniversário da sobrinha. No caminho eu ligo o rádio (MEC AM) e uma valsa invade o carro. Daquelas empolgantes, longas, repletas de timbres, intensidades texturas e harmonias ricas. Daquelas que a gente fecha os olhos e se transporta no tempo, espaço, existência. Daquelas que melhoram o ânimo, elevam o estado de espírito. 

Estaciono. Espero a música acabar. Saio do carro. Outro eu. Encharcado da felicidade dos fragmentos brilhantes da valsa nos meus poros.

(Pluie de diamants, valsa opus 160, Emile Waldteufel, 1879. Ouça aqui:)

sábado, 23 de março de 2013

yvan bideac

(de: http://minimumfuck.tumblr.com)

gata

Hoje foi a vez de um anu.

apoteose, anticlímax & eterno amor

Atravesso desertos e oceanos. Desterros e hecatombes desenrolam-se. Exércitos avançam. A tempestade de poeira se aproxima. A chuva de meteoros cruza a estratosfera e risca a noite de traços desfocados. Enquanto durmo. Enquanto sonho. Enquanto mantenho os olhos fechados.

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Enquanto durmo eu te te tenho inteiro, de novo, em mim. Eu sou você. Você é eu. Como foi um dia, como sempre foi, como será de novo um dia: gozo, prazer, felicidade. Do princípio até o fim dos tempos. Passando pelos intermináveis agoras das ausências.

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Nunca mais você.

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Você virá com a chuva ao anoitecer do último dia.

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Mas quando acordo, tudo o que era grandioso se esvai. As folhas murcham nos vasos. Os rebanhos minguam, os ovos goram, os pássaros esborracham-se nos vidros, as plantações são exterminadas pelos gafanhotos, os celeiros invadidos pelos ratos.

Os líquidos e a seiva secam no interior das glândulas, os músculos se recolhem, os cabelos e as unhas param de crescer. A existência fragmenta-se em tirinhas de 30 segundos.

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Eu morro a cada palavra que distingo do movimento mudo dos teus lábios. O mesmo desejo incontrolável e incontrolado que me põe em riste, que me ejacula e me esparge ao mundo, que me integra e me dá sentido à existência - ao mesmo tempo me desestabiliza e aniquila.

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As palavras se esvaem. Os sentidos adensados e intensificados diluem-se em lama, viscosa, pardacenta, fria, turvada de tédio e decepções.

quarta-feira, 20 de março de 2013

bizarrice e morbidez após longo período sem escrever

2.
Apesar de dormirem mais de 8 horas por dia, os chineses acordam fatigados. Devido à grande pressão no trabalho. Chineses do Sul e do Leste dormem mais que chineses das outras regiões. Chineses casados dormem menos que os solteiros. A grande maioria dos chineses ronca. Pela razão de dormirem de barriga para cima.

5.
Tenho dormido mal. Dores pelo corpo, sonhos ruins, luminosidade, barulhos, calor, chuva, pernilongos, inseticida, sede - tudo é motivo para acordar. Hoje, por exemplo, abri os olhos às 5 da manhã, com arrepios e a nítida sensação de que havia alguém envolto em luz esbranquiçada me observando pelo vidro, do lado de fora, na varanda.

1.
Exumaram os cadáveres da família real brasileira. Constataram que, ao contrário do que se pensava, Dona Leopoldina não fraturou a perna ou muito menos morreu em decorrência da queda das escadarias da Quinta da Boa Vista, causada do empurrão que lhe deu o marido Dom Pedro I, em uma das constantes e violentas brigas de casal.

O cadáver de Dona Leopoldina surpreendeu os pesquisadores por seu perfeito estado de conservação. Nossa rainha foi enterrada com as mesmas roupas da coroação.

3.
Vi certa vez um cadáver excepcionalmente conservado. Era Santa Maria Adelaide. Ficava deitadinha em um caixão de vidro, do mesmo jeito que Branca de Neve, em uma vila próxima ao Porto, ao norte de Portugal. Vestia um vestido amarelo-claro, tinha as unhas pintadas, as bochechas rosadas, alguns cabelos soltando do couro cabeludo, a pele como se fosse de gesso, e um arranhão no rosto, causado por um fanático que, em êxtase divino, quebrou o vidro para acordar a santa.

4.
Sonhei com uma cova profunda e larga, em forma de quadrado, escavada em terra vermelha, seca e muito solta. Era o enterro do tio Leco, irmão do meu avô.

Tio Leco perdeu o antebraço, abaixo do cotovelo, em algum acidente que não me lembro mais. Era careca, a pele muito vermelha manchada e se divertia em me assustar com o cotoco. Sempre que vejo salames e mortadelas no supermercado eu me lembro do tio Leco.


timothy cummings

Timothy Cummings. From the Neverland series. 2001. Acrylic on board. (http://quam-nos-animadverto.tumblr.com)

segunda-feira, 18 de março de 2013

domingo, 10 de março de 2013

Umberto Boccioni, Head and House and Light, 1912 (de:http://minimumfuck.tumblr.com)

sábado, 9 de março de 2013

curiosidades do mundo antigo: rômulo, remo e a fundação de roma (epílogo e conclusão)

O assassinato de Rômulo. De: Makers of History - Romulus, By J. Abbot.
(www.gutenberg.org)
O divórcio era proibido às mulheres romanas. No entanto, o marido tinha licença para largar a esposa por qualquer motivo. Se a mulher envenenasse os filhos, falsificasse chaves ou cometesse adultério, era abandonada na rua da amargura, com a roupa do corpo. Falsificar chaves? plagiando o gaulês Asterix, esses romanos eram muito esquisitos.

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Finda a guerra, Rômulo compartilhou o governo de Roma com Tácio, rei dos sabinos. Tudo ia bem. Até ocorrer um incidente internacional: o assassinato de diplomatas laurentinos. Culparam Tácio. Pura armação. Como bom político, Rômulo fez cara de paisagem. Instigou a vingança dos parentes dos embaixadores. Que mataram Tácio e deixaram o caminho livre para que ele assumisse de novo, sozinho, o pedaço.

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À medida em que o poder crescia, Rômulo tornava-se mais e mais presunçoso, soberbo, odioso e tirânico. Aquilo tomava proporções incontroláveis. A ponto dos senadores intervirem. 

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A morte de Rômulo é envolta em mistério. Simplesmente sumiu. Existem pelo menos 3 versões. A primeira é sem-graça. A segunda, mórbida. A terceira, fantástica:

1. Os senadores aproveitaram um descuido da guarda pessoal. Enquanto Rômulo banhava-se, afogaram-no no rio Tibre. Amarraram uma pedra ao corpo para que afundasse.

2. Enquanto fazia um sacrifício no templo de Vulcano, os senadores se precipitaram juntos sobre ele. Após esquartejarem o corpo, cada qual levou um pedaço dentro da dobra da própria túnica.

3. Rômulo discursava ao povo em um local chamado Brejo da Cabra. Subitamente o tempo virou. Começou uma ventania. O sol escureceu. O dia virou noite. As trevas não foram doces nem tranquilas, antes houve trovões horríveis, ventos impetuosos e borrascas de todos os lados, que fizeram sumir o poviléu.

Quando a tempestade passou e o dia ficou de novo claro, o poviléu reuniu-se para ouvir o fim do discurso. Mas Rômulo tinha sumido. O poviléu ficou indócil. Exigiu explicações. Os senadores então inventaram que Rômulo tinha sido visto vagando pelas redondezas, maior e mais belo, [...] vestido de branco com armaduras claras e luzentes como fogo. Mandara um recado: que o poviléu se acalmasse, porque ele tinha cumprido sua missão e se aposentaria, mudando-se para junto dos deuses. Não é que o poviléu acreditou?

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Plutarco acha essa história de mortal morar com os deuses conversa pra boi dormir. Cita versos de Píndaro:

O corpo morre, certamente:
Viva fica a alma, tão somente,
Como sinal de eternidade.

Em seguida, discorre sobre o tema. Transcrevo um trecho:

[A alma] veio do céu e para lá retorna, não com o corpo, mas antes quando, mais distanciada e separada do corpo, está nítida e santa, nada mais possuindo da carne. [cita Heráclito:] A alma seca é a melhor alma, que se evola fora do corpo, nem mais nem menos que o raio fora da nuvem; mas aquela que se destempera com o corpo, cheia de paixões corporais, é como um vapor grosseiro, pesado e tenebroso, que não pode inflamar nem elevar. Portanto, não há necessidade de querer, contra a natureza, enviar ao céu os corpos dos homens virtuosos, juntamente com as almas; mas é preciso estimar e crer firmemente que suas virtudes e suas almas, segundo a natureza e segundo a justiça dos deuses, os tornam, de homens, santos; e de santos, semideuses; [...] estando livres de toda possibilidade e de toda mortalidade, tornam-se, não por nenhuma ordenança civil, mas em verdade e segundo razão verossímil, deuses completos e perfeitos.

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Conclusão:

De Roma viemos nós, os latinos. Nossos avôs Rômulo e Remo nasceram de um caralho voador que, por artimanhas femininas, engravidou uma serva ao invés da filha do rei. Foram abandonados, amamentados por uma loba e criados por uma prostituta. Lideraram uma gangue de adolescentes de rua. Por disputa de poder, Rômulo trapaceou e assassinou o próprio irmão. Junto com a galera da adolescência, promovida a fundadores do império, raptou as mulheres dos vizinhos gente-boa. Fez acordos vantajosos, muita demagogia e poucos escrúpulos para alcançar objetivos: mais trapaças, mais assassinatos, mais agrados ao povo. Teve o destino dos tiranos: assassinado à traição. Seguido de endeusamento popular.

Não fica mais fácil entender o mundo em que vivemos?

derviche

Derwisj, Jean Baptiste Vanmour, 1700 - 1737 
(https://www.rijksmuseum.nl/en)

sexta-feira, 8 de março de 2013

meninas

Marta tinha a postura de quem sempre soube mandar. Usava roupas finas e brincos de pérolas. Gostava de gritar de madrugada. Xingava a torto e a direito, invocava satanás, fazia o sinal da cruz de cinco em cinco minutos. As filhas levaram-na embora, a contragosto.

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Toninha passa o dia sentadinha. Penteadinha, cheirosinha, carinha de bruxinha boazinha das histórias infantis. Fraseava ditongos, tritongos e hiatos ininteligíveis, coçava as mãos, apontava para o nada. O tempo todo levantava a saia, procurando o calor das brasas de um fogo apagado sabe-se lá há quantas eras.

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Dulcina, como o próprio nome, era a mais cordata de todas. Velha como um pajé, magra como um grilo, enrugada como um maracujá. Confundia qualquer visitante masculino com o neto. Convidava-os invariavelmente para um chope com batata frita e bolinho de bacalhau em um botequim de Copacabana.

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Potira era a mais esperta. Pra lá e pra cá, bolsinha preta debaixo do braço, cheia de contas para pagar. Coordenava o abrir e o fechar do portão eletrônico. Conversadeira, alegre, bem-disposta, negociava o imóvel com as visitas. Com o dinheiro da venda compraria uma casinha em Manaus.

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Aos 100 anos Zulmira continuava lúcida e independente. Dicção perfeita, os erres e esses dos plurais e das concordâncias. Só conversava com a enfermeira, a cozinheira e a diretora. Passava o tempo todo no quarto, só dela, bordando panos de prato. Esperando o filho que prometeu tirá-la dali assim que terminasse a interminável reforma do apartamento.

sábado, 2 de março de 2013

curiosidades do mundo antigo: rômulo, remo e a fundação de roma (último episódio antes do epílogo)

Jacques-Louis David, A Intervenção das Sabinas. 1799.

Os romanos raptaram as sabinas. Afugentaram os sabinos. Casaram-se com as raptadas e a vida seguiu na recém-fundada Roma.

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Os sabinos eram perfeccionistas. E lerdos. Enquanto preparavam-se para resgatar as filhas, esposas e mães, os romanos expandiam o império em velocidade vertiginosa.

Depois de longos anos, o exército dos sabinos ficou pronto. Era um exército grande, vistoso, bem treinado. No entanto havia um problema: como entrariam na inexpugnável Roma?


A solução foi a sabina Tarpéia. Ela estava até o pescoço com os romanos. Marcou um encontro secreto com o alto-comando do exército sabino. Tarpéia ficou fascinada com os braceletes de ouro que eles usavam. Negociou: abriria os portões, à traição, em troca do que os soldados traziam nos braços esquerdos.

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Tarpéia percebeu tarde a ambiguidade do acordo. Não sabia (ou não se lembrava) de que o que os sabinos amavam a traição enquanto ela era-lhes útil; odiavam-na logo que atingissem o objetivo.

Vale a pena ler a cena direto da fonte:

Assim fez então Tácio [o general]: pois, quando se viu dentro da fortaleza, ordenou aos sabinos que, de acordo com a promessa que fizera a Tarpéia, não lhe poupassem nem retivessem nada de tudo quanto traziam nos braços esquerdos; e tirando primeiro ele próprio de seu braço o bracelete que levava, atirou-lho, assim como depois o escudo: todos os outros fizeram outro tanto, de sorte que, lançada por terra a golpes de braceletes e de paveses, ela morreu sufocarda pelo fardo.

Corações de pedra o desses sabinos.
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O bicho pegou. A batalha no interior das muralhas foi difícil e demorada. Houve centenas de mortos de ambos os lados. Mesmo com Zeus-Júpiter encorajando os romanos.

De repente aconteceu o inesperado. As sabinas entraram no campo de batalha. Ensandecidas. Descabeladas. Aos prantos, aos gritos e aos clamores. Umas levando entre os braços filhinhos que ainda mamavam. Posicionavam-se diante das lanças e espadas, abraçavam os mortos e feridos.

Síntese do discurso delas: que já tinham sofrido horrores quando foram raptadas violentamente e contra as leis. Que os sabinos demoraram muito a resgatá-las. Que já tinham se acostumado e afeiçoado aos raptores. Que inclusive eram mães de filhos romanos. Que voltar para os sabinos e abandonar Roma seria mais doloroso que o rapto inicial. Enfim, que os sabinos aceitassem seus genros, cunhados e netos romanos e que os romanos fizessem as pazes com seus sogros e cunhados e acabassem de vez com a palhaçada.

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Sábias sabinas. Politizadas. Das primeiras defensoras dos direitos femininos. Pacificaram os litigiantes. Conquistaram o direito de ir-e-vir. A isenção de serviços domésticos chatos, exceto o de fiar. Dali em diante só usariam vestidos bordados (ou pintados?) de púrpura. Os cidadãos do sexo masculino seriam obrigados a ceder-lhes o assento nos transportes e lugares públicos. Foram proibidos de assediá-las, dizer piadinhas, palavrões, ou quaisquer coisas sujas e desonestas na presença delas.

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Epílogo:

O texto ficou comprido demais. Deixemos para amanhã o epílogo.



gata

(hoje ela trouxe um beija-flor).

sexta-feira, 1 de março de 2013

curiosidades do mundo antigo: rômulo, remo e a fundação de roma (penúltimo episódio)

(http://www.zazzle.com.br)

A história parou quando Rômulo fundou Roma após a morte do irmão Remo.

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O grosso da população da nova cidade era composta de todo tipo de  undergrounds da sociedade. Maioria esmagadora de homens. A escassez de mulheres era o abacaxi maior para o novo administrador Rômulo descascar. A velha questão da família célula da sociedade. Como vingaria a cidade sem o fenômeno da procriação?

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Os sabinos eram vizinhos dos romanos. Povo pacífico. Corria a boca larga a fama da beleza das mulheres sabinas. Junto com os estereótipos machistas de todas as épocas: boas mães, boas tecelãs, boas donas-de-casa, boas parideiras, boas de cama - umas Amélias.

Rômulo teve uma ideia. Tosca. Raptar as filhas, esposas e mães dos vizinhos do-bem. Inventou uma balela que só mesmo os crédulos sabinos caíram: que foi descoberto um novo deus nos subterrâneos de Roma; que haveria sacrifícios a esse deus; que depois dos sacrifícios, dar-se-ia uma festança, open-bar, três dias seguidos. Foi distribuída grande quantidade de ingressos grátis para todos os sabinos. Mulheres tinham direito a brinde-surpresa.

Compareceram em massa. Enquanto os sabinos enchiam a cara, Rômulo fez um sinal para que os romanos iniciassem uma balbúrdia. Corriam para todos os lados, aos gritos, lanças e espadas empunhadas. Puseram os sabinos pra correr e raptaram as sabinas.

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Plutarco era romanófilo. Justifica a gafe (eufemismo!) dos romanos com desculpas esfarrapadas:

Começa afirmando que foram raptadas apenas 30 sabinas, cujos nomes foram dados às 30 linhagens do povo Romano. Diz que Rômulo pegou apenas uma para si. Casou-se com ela para demonstrar que não teve intenção de injuriar os vizinhos. Que o rapto não era para satisfazer nenhum desordenado apetite, mas para conjugar os dois povos entre si com os mais estreitos laços existentes entre os homens. Por fim menciona, en passant, estatísticas comprometedoras: foram raptadas entre 527 e 783 mulheres.

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O rapto gerou o costume ocidental (que a gente só vê em filme) de o noivo atravessar pela primeira vez a porta da casa carregando a noiva no colo. O gesto seria um simulacro do rapto ancestral.