terça-feira, 30 de julho de 2013

fragmentos para outra noite de frio

Há pulgas nos estofados. Dinossauros nas costuras do colchão. Torpedeiros e tanques de guerra escondidos entre as dobras do cortinado.

Escrevo e depois rasgo uns errados de mim. Me acabo nos chocolates e nas diatribes interiores. Quebro copos, durmo sem banho, como comida fria, apago as luzes, ligo a música alto. Impertinente, deito-me nu na varanda para respirar a poeira das estrelas.

(Onde mesmo eu li isso?)

Boto labaredas pelas ventas. Uivo e corro com os lobos. Grasno com os corvos pelas estepes. Roo até o cerne das unhas. Tusso hemoptises e desacerto o alvo dos amores frustrados. Acho que tomei arsênico, barbitúricos ou gin-tônico em excesso.

Serpentes de silicone, morninhas e úmidas, me lambem a virilha durante os sonhos. Acordo inundado de nostalgia, com as mãos cansadas e um tremor nos cantos dos olhos. Olhos esses que só me mostram no espelho a indecência de um tritão decrépito.

Perdi de novo a oportunidade de espiar brincadeira dos fauninhos na praia ao alvorecer. Só de cueca uns, ou mesmo nus, espargindo água gelada uns nos outros. Da próxima vez programarei o despertador para as 5:00 a.m.

Agora eu já posso recordar. A travessia foi tranquila. As águas eram muito azuis. A mulher ao meu lado murmurava uma canção antiga. O vento era suave e me desarrumava os cabelos e fazia com que a ponta da echarpe me batesse o tempo todo à boca. O continente afastava-se, rápido, às minhas costas. Adiante, o mar, as ondas, os nevoeiros, as tempestades e as noites de estrelas. Depois ainda, e algum dia espero não muito distante, o costado da ilha que talvez nunca conseguirei mapear.

domingo, 28 de julho de 2013

hospedar, hospedar-se, hóspedes, hospitalidade

(foto do Gabriel)

No final do século passado a socialaite Danuza Leão escreveu um livro (ou dois?) sobre etiqueta. Nesse(s) livro(s), havia um um capítulo inteiro sobre a arte de hospedar e a ciência de hospedar-se.

Danuza estabelecia regras básicas, tanto para o hospedeiro quanto para o hóspede. Ao primeiro, cabia, por exemplo, acordar antes que o hóspede; oferecer roupa de cama e toalha limpas; um sabonete novo; não servir aquele pote de requeijão pela metade no café da manhã; assim por diante. Ao hóspede aconselhava-se uma visita breve (nunca mais que cinco dias); juntar os cabelos do ralo do chuveiro após o banho; fazer pelo menos uma feira; deixar gorjeta para a empregada; etc.

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Adoro quando os amigos vêm passar uns dias aqui. Capricho na limpeza da casa, desocupo um lado do armário, troco os lençóis, ofereço a toalha mais felpuda, sabonete phebo e creme dental novinhos, às vezes até escova de dentes. Não me incomoda o tempo que o amigo vai ficar - alguns dias, duas semanas ou seis meses, como da última vez.

No começo há um certo estranhamento, natural (talvez resquícios da nossa territorialidade animal ancestral) mas rapidamente as coisas fluem, harmonizam-se, a gente se acostuma e dá uma baita saudade quando o hóspede vai embora.

(Não serei hipócrita. Misturado à saudade também rola uma pitada de alívio. Creio que de ambas as partes).

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Tendo lido Danuza, evito certas gafes quando me hospedo em casa alheia. Ou, também acontece, cometo várias, por excesso de hospitalidade do hospedeiro.

Exemplos de gafes evitadas: sempre levo um presentinho para cada membro da casa, inclusive empregada doméstica; lavo a louça depois das refeições; faço a feira da semana; se houver clima, preparo ou ofereço um jantar em restaurante legal; fico no máximo 5 dias; etc.

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Mas, como sempre, as gafes são muito mais interessantes. Exemplos:

1. Passei dias maravilhosos em casa de amigas, no Nordeste. Gostei tanto, mas tanto, que dois meses depois voltei com um casal. Seis meses depois, retornei, dessa vez com o namorado. No mesmo ano repeti a dose, com a professora de tai-chi. Apesar da veemência das negativas (as amigas são excepcionais) eu tenho a leve impressão que abusei da hospitalidade delas.

2. (essa eu morro de vergonha, mas contarei assim mesmo) aconteceu nos primórdios da civilização, antes de ter lido Danuza. Foi também no Nordeste. Fui visitar um amigo. Em uma cidade pequena. Onde todo mundo conhecia todo mundo, todo mundo dava notícia da vida de todo mundo. A casa do amigo estava em reforma. O casamento do amigo estava em crise. O amigo se matava de trabalhar o dia todo e ainda me dava toda a atenção possível quando chegava do trabalho.

Ao contrário do amigo, eu estava no auge da galinhagem e da vagabundagem. Logo na primeira noite (depois de recusar o convite para jantar) fui bater pernas. Na praça, conheci X. Sem pensar nas consequências, levei X pra dormir comigo. Não podia imaginar que X trabalhava com o amigo. Tarde da noite X tinha que ir embora. Descemos a escada no maior silêncio possível. Havia um degrau solto. X tropeçou e rolou escada abaixo. O escarcéu acordou o amigo. Que olhou para X e para mim. O olhar mais reprovador do mundo e nenhuma palavra. Ao invés de colocar o rabo entre as pernas, pedir mil desculpas e partir no primeiro ônibus do dia seguinte, ainda fiquei uns dias. Como se nada tivesse acontecido. Resultado: o amigo me excluiu definitiva e merecidamente de suas relações.

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Todo esse preâmbulo para contar sobre Igor, meu hóspede atual. Lindo, fofo, gostoso, bem-humorado - um gato. Literalmente. Mistura de vira-lata e chartrô (é assim que se escreve?). Igor pertence à amiga citada no primeiro parágrafo, cujas duas semanas de hospedagem (enquanto trocavam-lhe a pia do banheiro do apartamento) transformaram-se em 6 meses.

Pois bem, Igor veio passar uns dias comigo.

No geral comporta-se bem. Por sua essência felina (e por ainda não ter lido Danuza), condescendo alguns comportamentos censuráveis: o forro da cama box arrancado, as escaladas ao topo da geladeira ou da coifa, o sono sobre meu casaco novo, as correrias destrambelhadas (junto com Zildinha). Mas há um comportamento que quase me tira do sério: Igor mia alto, às vezes durante toda a madrugada. Um miado sobrenatural, tipo de filme de terror, que reverbera pela casa e pode ser ouvido por toda a vizinhança.

Colocar o Igor para fora de casa é arriscado, pois ele pode fugir e nunca mais voltar. Trancar o Igor no quarto de hóspedes foi pior: o miado redobra, em volume e frequência.  Pensei em alternativas heterodoxas: Empacotar o Igor com muito jornal em uma caixa de papelão e selar com fita crepe fazendo aqueles buraquinhos pro bicho não sufocar; ou ministrar-lhe meio comprimido de maracujina com lexotan.

Claro que não farei nada disso. Abro-lhe um sorriso. Coço-lhe a nuca e as orelhas. Aconchego-o sob as cobertas. E peço aos deuses, com fervor, que transformem os miados do Igor em harpejos doces e melodiosos, em sussurros da pessoa amada para me embalar o sono, pelo menos até as seis da manhã.

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Tendo lido Danuza, concluo com toda categoria: como uma espécie de freguês, o hóspede sempre tem razão.

rita ribeiro - cavaleiro de aruanda

nina hagen - mantra

sábado, 27 de julho de 2013

"(...) pois os pensamentos coagulam no coração se não são expressos. Uma ideia é como um pássaro raro que não pode ser visto. O que vemos é o tremor do ramo que ele acabou de deixar".

Lawrence Durrell, O príncipe das trevas

progresso

O Parque das Garças é um pedaço de cerrado, cercado e contornado pelo lago Paranoá. Lindo lugar. Árvores nativas (araticum, sucupira, cagaita, pequi, etc) misturam-se às mangueiras, abacateiros, jaboticabeiras, caramboleiras plantadas pelos primeiros moradores. Periquitos, corujas, jacus, quero-queros, pica-paus, joões-de-barro, sabiás, marrecos, andorinhas, até um casal de gaviões e uma arara azul solitária podem ser vistos. As antas vêm comer à noite, há cágados de vez em quando - enfim, um ecossistema, como se diz nas ciências.

É frequentado pela vizinhança com suas crianças e cães, por pescadores dominicais e por praticantes de esportes aquáticos ambientalmente corretos - kite surf, stand up paddle, remos ou caiaques e um ou outro nadador.

Passeio lá quase todos os dias. Eu e a cadela. Ela nada, busca gravetos ou bola de tênis que atiro longe, na superfície da água às vezes lisa, às vezes encapelada (quase como o mar), às vezes turva ou transparente, ou às vezes coberta por fiapos de neblina.

Hoje cedo, depois de cansar a cadela em infindas idas e vindas aquáticas, sentei-me em uma pedra para só olhar e sentir a água, o sol, o vento frio, o céu azul, a outra margem.

Assustei-me com um "bom dia!" a plenos pulmões, às minhas costas.

Era um senhor, gorducho, muito comunicativo, em seu primeiro dia de caminhada, "para perder uns quilinhos". Apresentou-se, elogiou a disposição e a agilidade do nado da cadela, narrou uma extensa biografia - idade, profissão, procedência, estado civil, cirurgia de rins da esposa, hobby preferido, quantidade de carros na garagem, profissão dos filhos, time de futebol.

Em seguida começou a despejar: Que os moradores do bairro eram retrógrados. Que o parque estava muito largado. Que deviam asfaltar uma pista de caminhada, circundando o parque. Que deviam reservar uma área razoável, na entrada, para fazer um estacionamento. Que deviam instalar postes de iluminação, construir uns botecos, pra galera poder relaxar, tocar um pagode, tomar umas geladas à noite.

Demorei a entender, a processar o discurso do homem. Enquanto ele enumerava mais benfeitorias possíveis, eu imaginei o lugar cheio de gente, carros parados até na beira da água com os autofalantes ligados no último volume, latas de cerveja espalhadas por todo o lado, bêbados vomitando, jetskis dando cavalo-de-pau, pagode e dancinhas (nada contra, mas ali não combina!), aulas de aeróbica com microfone - sei, uma visão apocalíptica, mas quase palpável - caso a vontade do senhor gorducho fosse a vontade da maioria.

Sorri. Atirei um graveto para a cadela buscar e me desliguei do homenzinho. Que seguiu caminho, sem se despedir, contrariado por meu repentino desinteresse pela conversa. Talvez ideando outras melhorias - quem sabe passar o trator para aplainar o terreno? exterminar os perigosos bichos silvestres? cimentar as margens? construir um shopping, um posto de gasolina, um condomínio fechado?


aflição

"Sim, afligia muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia tanto".

Caio Fernando Abreu, Depois de Agosto