sábado, 26 de outubro de 2013

livros


  
Apesar do fetiche declarado por livros, eu nunca fui apegado. Emprestados, presenteados, doados, perdidos, roubados ao longo das décadas - restaram poucos, distribuídos em 2 parcas estantes no escritório.


Hoje, depois de quase 2 anos (quando foram retirados das caixas de mudança e empilhados, de qualquer jeito, nas estantes) resolvi arrumá-los.

Ordenar, separar, classificar é sempre um dilema. Poesia / prosa / teatro / teoria / outros? Nacionalidades dos autores? Língua em que foram escritos? Períodos? Lidos / não lidos / passíveis de nova leitura? Ordem de tamanho? Optei pela categoria língua nativa. Dentro, as subcategorias da literatura (romance / conto / poesia / teatro / teoria / filosofia). Os livros e catálogos de arte. Dicionários. Livros sobre religiões afro-brasileiras.


Gastei toda a tarde nessa função. E constatei, tristemente:

a) que li muito pouco ou quase nada;
b) que queria ler muito mais;
c) que não vai dar tempo de ler nem 1/100 dos livros que eu queria.


Também constatações estatísticas:

d) são poucos os livros não lidos na estante;
e) predominam livros de autores lusófonos; seguem-se os de língua inglesa e a seguir, espanhola;
f) há um lamentável déficit de eslavos, germânicos, literatura feminina e filosofia;
g) tenho vários livros repetidos, já separados para doação;
h) os clássicos são maioria;
i) cadê os meus Nietzches?
j) surpreendentemente há quantidade considerável de autores novos (bem escolhidos, mesmo que aleatoriamente, em sua maioria nas prateleiras de liquidações).

Da atividade surgiu o dilema: reler tantas vezes quanto necessárias os prediletos ou me aventurar no desconhecido?

E uma espécie de empurrão, do estático para o movimento: não é que o contato afetivo com eles (tirar o pó das lombadas, folhear, ler um trecho ou outro) destravou o bloqueio criativo em que me encontrava há algumas semanas?

resmungos do velho implicante

Não sou o que se pode chamar engajado em termos de políticas ambientais. Faço a minha parte - o básico: sou contra o desmatamento, a favor da proteção dos lençóis hídricos, separo o lixo orgânico do seco, fecho a torneira enquanto me ensaboo no banho ou escovo os dentes, não deixo luz acesa sem necessidade, escolho eletrodomésticos que consomem menos energia elétrica, etc.

É chato constatar, mas sou do time dos desesperançados com a humanidade consumista e imediatista. Ou seja, acho que as coisas só vão piorar para os nossos filhos, netos, descendência em geral. Vale citar o pensamento de uma amiga também desesperançada: é muita pretensão humana acreditar que temos o poder de destruir o planeta. Nós somos insignificantes perante a Natureza (com Maiúscula) -  que se adapta e mais cedo ou mais tarde nos fará desaparecer para sempre - como a dona-de-casa acaba, por exemplo, com um formigueiro debaixo da pia.

Bem, o pessimismo não é à toa. Hoje, durante as 2 horas que permaneci no clube (frequentado por gente esclarecida, politizada, com acesso à informação, bom poder aquisitivo) onde nado, ocorreram 4 situações críticas:

1.
Na entrada da piscina tem o lava-pés. Vigiado pelo salva-vidas. O lava-pés estava tão cheio que transbordava. E o encanamento continuava jorrando. O salva-vidas nem aí, teclando no celular. Não encontrei o registro para eu mesmo fechá-lo. Então me atrevi: você pode fechar o registro? parece que já encheu faz tempo. Ele me olhou com a pior cara. Puro desdém. Pensei que não tinha entendido. Mudei o enfoque: a água está transbordando. Você pode me dizer onde é o registro? Ele voltou à telinha. Grunhiu algo que eu entendi como: isso é da sua conta, velho chato? quando eu me desocupar eu fecho.


2.
No vestiário dos tenistas tem uns chuveiros bons, ducha forte, água farta. Perfeito para relaxar depois do treino. Eu cheguei, tinha um tenista tomando banho. Urinei, guardei na bolsa os apetrechos da natação, separei o xampu, o sabonete, os cremes, a toalha, tirei e torci a sunga, entrei no box e o tenista continuava no banho. Olhei, sem segundas intenções. O cara estava se alongando. Muito devagar, como deve ser. Só que debaixo do chuveiro. Deixando a água (quente e abundante) correr sobre as costas, os ombros, o corpo. Terminei o banho e o cara alongava os braços e a água ainda corria. Me enxuguei, passei hidratante, desodorante, penteei os cabelos, vesti a roupa, assoei o nariz e o tenista lá, sob a cachoeira particular. Centenas, milhares (?) de litros de água escoando pelo ralo enquanto milhões de seres humanos como ele sobrevivem da água lamacenta de cacimbas ou de esporádicos caminhões-tanque.
 
3.
Há na parte seca do vestiário 2 ventiladores de parede. Para refrescar os  tenistas exaustos e  suarentos enquanto trocam de roupa, depois dos jogo. Os rapazes e senhores chegam, a sós, em duplas ou, mais raramente, em trios - e merecidamente ligam os ventiladores no máximo. Refrescam-se enquanto se despem para o banho, conversam animados sobre a partida, os lances, as raquetes, a mulherada. Nem precisa dizer que depois de tudo, vão embora e deixam os ventiladores ligados, ventilando o vazio - ou os espíritos dos espíritos-de-porco que os utilizaram e não se preocuparam em desligá-los. Aí vou eu, o velho ranzinza, dar descanso às hélices e reduzir o gasto da água das hidrelétricas.

4.
Há no clube uma academia, onde costumo malhar depois do treino. Na academia, outro vestiário. Nele há um mictório coletivo. Antigo, daqueles de concreto azulejado, com um cano cheio de furos despejando gotas de água quando se abre a torneira. O que você faria, leitor consciente do sexo masculino, depois de urinar no mictório meio nojento? Abriria a torneira, o tempo de escorrer o xixi pelo ralo e a fecharia em seguida. Não lá. A torneira fica constantemente aberta, no máximo. Os marombeiros urinam, balançam, guardam, abotoam a braguilha, etc, vão embora e deixam a água correr. Outro dia eu falei com a faxineira. Ela explicou. Ficava constantemente aberto por causa do cheiro forte. Pode? O velho chato (eu) vai lá e fecha. Lembrando-se todas as vezes daquela história piegas do beija-flor que carregava no bico uma gota d'água de cada vez para apagar o incêndio da floresta.

Entendeu agora, leitor?

Mesmo desesperançado eu me esforço. Reclamei por e-mail com a diretoria do clube. Se não tomarem providências, eu mesmo imprimirei daqueles avisos chatos, mas necessários - desligue  / feche a torneira depois de usar / seja consciente -, colarei os avisos nos azulejos diante do mictório, nos mármores próximos às duchas, aos ventiladores - até que a umidade os apague - torcendo, do âmago do ser, para despertar a consciência de ao menos uma dessas criaturas.

É, estou mesmo ficando cada vez mais gagá.


receita de risoto saturday by night antissocial

Corte em fatias finas 6 tomates secos desidratados mais parecidos com solas de sapato (que você colocou em azeite sem hidratá-los antes). Pique em pedaços pequenos a metade da cebola que resiste firme e forte na geladeira desde o último domingo. Esquarteje em cubos o bacon e em rodelas também finas a pimenta-de-cheiro - surpresa! - que você encontrou no fundo do congelador.

Refogue tudo no azeite da frustrada conserva de tomate-seco desidratado, com uma pitada generosa de orégano e daquela erva em pó mumificada, sem rótulo, que você imagina ser manjericão, sálvia, hortelã, salsa ou, quem sabe, um banho de ervas. Quando o bacon estiver derretido e a cebola bem dourada, capriche no sal, quebre um ovo e mexa sempre. Para não grudar no fundo da panela (e amolecer as tiras de tomate-seco), despeje uma ou duas colheres de sopa de leite.

Enquanto a coisa frita (em fogo baixo), ligue o rádio, de preferência em um programa de blues e jazz. Abra aquele vinho com nome da santa melhor amiga, que você comprou na promoção do supermercado sem saber se era bom, só por causa do preço. (Admita, o vinho é mesmo bom). Volte ao fogão depressa, senão queima.

Quando a gororoba estiver consistente, despeje o arroz que sobrou da última galinhada. Se tiver sorte, pode vir junto um pedaço de frango, porém fique atento aos prováveis ossinhos misturados. Despeje mais leite, mexendo sempre. Torça para não virar sopa.

Retire da panela o mais fumegante possível. Despeje no prato chique, previamente enfeitado com a folha de alface que sobrou do almoço. Polvilhe muito queijo parmesão. Deguste cada garfada. Se for daqueles que posta fotos de comida nas redes sociais, aproveite para tirar uma.

Se sobrar na panela coma até acabar, pois provavelmente estará intragável na próxima refeição e desperdiçar comida é pecado.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

lionel shriver

A moça sempre se considerou correta com seus próprios sentimentos e com os sentimentos do marido. Porém está mentindo para ele. Pior, traindo. Ainda naquela primeira fase, em que o fascínio da paixão anula quaisquer decisões que não conduzam ao objeto e à realização da traição. A moça está em plena crise ao ver o relacionamento sólido (e os seus valores corretos) desmoronarem-se. No início ela acreditava que a traição seria um comportamento atípico. Agora (na página 115) a ficha dela caiu: está se achando uma reles "vadia fingida e traiçoeira". Só. No meio da turbulência emocional da moça, a frase totalmente anti-autoajuda, que fiquei tentado em colar no espelho do banheiro, para eu ler todos os dias ao acordar:

Quando o que você faz não se coaduna com quem você pensa que é, com certeza deve haver algo errado (e provavelmente otimista) a respeito de quem você pensa ser.

(Trata-se do romance O mundo pós-aniversário, da escritora americana  Lionel Shriver).

domingo, 20 de outubro de 2013

divina comédia - inferno - sétimo círculo (1)

(Gustave Doré, Inferno, XIV)
O amor de Dante por Beatriz era tão sublime que o poeta nem se abalou quando soube que a amada se casaria com um rico negociante florentino. No século XIV as coisas funcionavam assim. Porém Beatriz morreu em seguida ao casamento. Dante não mais pronunciou o nome da amada. Desafiando-se, propôs imortalizar Beatriz. Em uma obra artística nunca antes imaginada. Assim surgiu a Divina Comédia.

(Escrevi essa introdução para falar sobre casamentos. A ideia inicial perdeu-se. Tive pena de apagar o parágrafo, que permaneceu arquivado - ou perdido na pasta dos rascunhos - sabe-se lá quanto tempo).

...
 
Outro dia me propuseram um trabalho inspirado na Divina Comédia. Mais especificamente no Inferno. Sei, já há milhões de trabalhos artísticos, performáticos, teatrais, midiáticos sobre. Sei também que Madame torcerá mais uma vez o nariz para o projeto (Madame é aquela que vive me admoestando para deixar de lado as velharias e me permitir novidades).

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O projeto gorou. Mesmo assim retomei pela quarta ou quinta vez a descida aos círculos do Inferno. O texto é emocionante. Agora a maturidade possibilita acompanhar com mais empenho os poetas, degrau a degrau, na descida assombrosa.

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Assim, ao invés de amores e casamentos, falarei sobre o terrível Sétimo Círculo. Aquele onde se encontram os violentos contra deus, a arte e a natureza. Continuamente fustigados por uma chuva de fogo.

O Sétimo Círculo do Inferno é guardado pelo Minotauro. É dividido em 3 sessões, ou "giros". No primeiro encontram-se os violentos contra o próximo: tiranos, assassinos, salteadores. Submersos em um rio de sangue fervente. Os tiranos estão imersos até à venta; Os assaltantes, até o peito. Os assassinos, a cabeça, acima do pescoço.

O giro segundo é o dos violentos contra si mesmos e/ou violentos contra os próprios bens: os suicidas, transformados em árvores; e os dissipadores, perseguidos e estraçalhados por cães ferozes.

O terceiro giro é onde se encontram os violentos contra deus, a arte e a natureza, continuamente fustigados por uma chuva de fogo. São eles os blasfemos, condenados a vagar por um deserto de areias incandescentes, sob chuva de fogo (um temporal de lâminas ardentes). Os violentos contra a arte, dobrados sobre si mesmos, e carregando uma bolsa bordada com os brasões de suas famílias e contendo os objetos por eles destruídos eram os usurários.

E os os pecadores contra a natureza, ou seja: os sodomitas. Objeto e tema da próxima postagem.

sábado, 19 de outubro de 2013

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

deus, a gata, a morte, o pássaro e mais uma sobre o ridículo de existir

Cedo, outro dia, mal abri a porta, a gata escapuliu para o jardim. Voltou com um pássaro vivo na boca. Enfiaram-se debaixo da mesa. Puxei-a pelo rabo. Tirei-lhe o brinquedo. Era mínimo. Asas cinzentas e penugem esverdeada no peito. Unhas delicadíssimas agarradas à pele da minha mão. Mais morto que vivo.

Depositei-o no alto, entre as folhas da trepadeira. Esqueci dele enquanto preparava o café da manhã. Depois de algum tempo voltei para olhá-lo. Ele ainda estava enganchado nas folhas. Mexeu-se ao ser tocado. Pensei: outra criatura salva pelas minhas mãos.

Minutos depois ouvi o farfalhar de asas. O pássaro tinha caído da folhagem. Debatia-se descontrolado no chão. A inevitável luta interna final. Nada a fazer.

Constatei então que participávamos - a gata, o pássaro, eu - de um jogo, no mínimo, estúpido. O pássaro era a vítima. O perdedor irreversível. Morria sem motivo. Talvez por um descuido, vacilo de fração de segundos.

A gata - pretensa vitoriosa - pobre coitada!, estava à mercê do irracional e do mero instinto - para nós, humanos, adjetivado de "assassino". Inocente, a gata regozijava-se com o troféu estrebuchando no chão.

E eu? inteligente? consciente? racional? Mais que testemunha - naquela manhã luminosa de verão (parafraseando Clarice) eu era também juiz. Parcial. Pior: meu papel na brincadeira era o papel do deus onipotente (mas não onisciente) que tanto aprendi a questionar. Um deus pretensioso e babaca.

Por interferir, sem medir consequências, na existência dos seres e das coisas.

Primeiro, simplesmente por criar um felino (exterminador de pássaros). Segundo, como se a dupla tentativa de salvar aquele pássaro minúsculo me redimisse da culpa de sua morte. Ou amenizasse, desculpasse, perdoasse o instinto assassino da gata.

Constatado o irreversível, havia duas opções:
a) Deixar o pássaro agonizar até a morte natural.
b) abreviar com uma pedrada certeira o sofrimento do bicho.

(Caramba, adentrei pelos caminhos insondáveis da metafísica e filosofia).

"A" ou "b" eram únicas opções possíveis. Eram a própria regra do jogo do deus cruel. Regras ridículas. Melhor dizer: falácias.

Escolhi "b". Por compaixão. Sadismo. Covardia. Curiosidade.

A agonia do pássaro era delicada. Só o farfalhar descontrolado das asas contra o cimento.

A gata, saciada, observava de longe.

Eu, deus-canastrão, observava o tédio da gata contraposto ao desespero do pássaro.

Por fim o pássaro morreu. A gata - a mais esperta do jogo - há muito tinha encontrado outro interesse, dentre tantos, no quintal: grilos, folhas secas, lagartixas, besouros - ou a própria sonolência de existir.

Eu - deus ridículo - naquela hora, sem saber, o mais inferior  - ali parado, só de cueca, arrotando o café-com-leite, humano, demasiado humano, tirando com a língua os restos de pão grudados nos dentes, vassoura e pá de lixo a postos, diante do minúsculo cadáver do pássaro que obscurecia a luminosidade da manhã. A luz e a alegria de todas as manhãs futuras da minha existência.

diário gerúndio de atualização

lidando com a morte. conversando com espíritos. não compreendendo os sinais. esboroando por dentro. apreendendo a finitude. cavando buracos. inumando. plantando lírios para ela. sentindo saudades. confundindo tudo.

...

nadando de cachorrinho nos clássicos. visitando com o romano e o florentino os círculos mais animados do inferno. demorando a sair das vidas dos primeiros homens ilustres. comparando a caretice de numa com a porralouquice de sólon. contrabalançando com roberto piva e apimentados mexicanos contemporâneos.

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cavoucando a terra. colhendo pitangas. ajudando no parto das jacas. rastelando toneladas de folhas secas. arrancando plantas velhas pela raiz. ceifando textos antigos. morrendo de calor. suando em bicas. aspirando o perfume da laranjeira em flor.

...

rodando a saia & segurando o turbante & entrando no ritmo. tomando todas só em ocasiões especiais. vulgarizando. pegando quase sem distinção. deixando vir a padilha. parafraseando caio. tendo jogo de cintura para evitar lidar com a dama de negro que eu sei um dia virá e encostará a mão gelada no meu joelho mas agora não.

domingo, 6 de outubro de 2013

diário fotográfico. cenografia (m)eu caio:

dia 1: maquete

dia 2:início da montagem

dia 3: afinação da luz
 
dia 3: afinação da luz

dia 3: afinação da luz

dia 3: afinação da luz
 
dia 3: saída do teatro

banner com a velha olivetti

dia 5: detalhes do cenário pintados à mão

dia 5: detalhes do cenário pintados à mão

dia 5: detalhes do cenário pintados à mão

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

espaço elefante


A casa foi construída por meu pai. No começo dos anos 1970. Na W3 Norte, que era asfaltada somente até um pedaço. O Resto era poeira, buracos, barracos, ratazanas, oficinas mecânicas.

São muitas lembranças da infância. Havia mangueiras, abacateiros frondosos e um pé de cagaita na rua dos fundos. Havia também um trio de moradores de rua: João (uma espécie de Arthur Bispo), que produzia e vestia acessórios feitos de lixo (hoje chamado reciclado); Zé, torcedor fanático do time de futebol do Ceub e Maria Preta, negra, bêbada sempre, uma espécie de princesa decaída, e namorada do Zé e do João ao mesmo tempo. Dona Mariazinha, do terreiro de umbanda. Beijos furtivos nos terrenos baldios. E tantas outras.

Passados alguns anos, casamento e paternidade recentes, voltei a morar na casa. Diversas vezes. Outros  rumos, mudanças, filho, separações, reuniões, mais casamentos - Outros anos passados e lá estava eu, morando na casa de novo. Definitivamente daquela vez (ou quase): herança paterna.

 
A casa localiza-se em um beco em plena região comercial da Asa Norte conhecida pela impronunciável sigla SCLRN. (Para a velha geração: pertinho do histórico Bom Demais). O lugar sempre foi underground, desvalorizado por causa da vizinhança: as eternas oficinas mecânicas, lojas de autopeças, revendas de carros, sinucas, botecos, restaurantes a quilo.

Já havia funcionado nela um restaurante natureba, um bar-livraria-casa-de-shows anarquista louquérrimo, um ateliê coletivo, uma quase-escolinha de arte e por fim ateliê individual (onde, dentre outras coisas eu pintava elefantes).

Devido ao aluguel mais barato, foram aparecendo outros artistas nas redondezas. Madame E., pioneira dos tempos da fundação da cidade, artista plástica, desenhista, performer. Um grupo de artistas multimídia (início dos anos 2000) que projetava filmes experimentais ao ar livre, sob a marquise. Grafiteiros itinerantes. Uma companhia de teatro que morava, montava e apresentava espetáculos na casa ao lado. Um arquiteto doidão na esquina. Assim por diante.


A certa altura a casa foi reformada. Ou melhor, transformada. Com projeto intuitivo e ideias de amigos. Abrimos varandas, derrubamos paredes, furamos lajes, erguemos escada, cobogós, claraboias, telhado isotérmico, ducha, impermeabilização, revestimento, pintura branca - linda, ousada, contemporânea - verdadeiro milagre estético com o pouquíssimo dinheiro disponível.


 
Há uns 3 anos fechou-se um ciclo de vida. O destino deu uma reviravolta. Vendi a casa. Nunca mais voltei lá.

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Há pouco recebi uma mensagem no celular. Com foto. Do filho. Estava emocionado:

Ele tinha sido convidado para a abertura de um novo espaço cultural na Asa Norte. Escritório e galeria de arte, ateliê, novos artistas. Mais especificamente na 706 Norte. O espaço era projeto de uma amiga da namorada dele. Ele mal pôde acreditar: era nossa antiga casa.

O lugar se chama Espaço Elefante.

...

Eu fiquei mais emocionado ainda. Sensação de um sonho alheio realizado que de certa forma eu participei.

Que as divindades de todas as dimensões venham e derramem boas energias e proporcionem longa vida para o lugar que foi e será sempre parte essencial de mim.

(agradecimentos à Bruna e Gabriel)