sábado, 5 de maio de 2012

degustando uma madeleine


Depois da primeira tentativa frustrada de sair de casa, aos 17 anos (morar com Cassandra - melhor amiga do segundo grau - e o namorado dela, em um apê de 2 quartos na 411 Norte), surgiu a oportunidade: vestibular para Artes em Uberlândia. Às cegas: Nem imaginava para que lado ficava Uberlândia. Nenhuma informação sobre a qualidade do curso. A única certeza era o nome do reitor da universidade, o linguista Gladstone Chaves de Melo, meu xará

O que importava era ir.

Para evitar problemas em casa, menti que tinha passado para Arquitetura. Furei as duas orelhas (no final dos anos 70 no Brasil só hippies e gays usavam brincos; eu me enquadrava na primeira categoria). Desfiei a barra das calças UsTop (liberdade é uma calça velha, azul e desbotada). Comprei batas indianas, sandália de couro cru na feira de artesanato da Torre, uma flauta doce e um caderno de de papel Canson A3. Fechei a mochila de lona e parti sem olhar pra trás.

O pai acionou os contatos e conseguiu minha transferência para a agência do BB de lá (eu era menor aprendiz). Conseguiu também alojamento em uma pensão, sob a supervisão do João Rosa, amigo da família, fazendeiro e comerciante de queijos da cidade vizinha de Catalão.

Logo na primeira noite, a primeira experiência fundamental, tipo rito de passagem tardio para um período indefinido entre a adolescência e a idade adulta: vi, ao vivo, um rapaz pelado. O colega de quarto, exibicionista, ostensivamente enxugando-se. Fiquei confuso, constrangido e ao mesmo tempo curioso. Fui para a varanda tocar flauta (para desespero da filha da pensão, que queria ver a novela) e só voltei ao quarto quando tive certeza que o cara já estava vestido e dormindo. 

Não houve professores na primeira semana de aulas. O trote consistiu em cortarem uma mecha do meu black power, farinha, ovo e festa da calourada. Passava o tempo na praça (não me lembro mais o nome), no centro da cidade ainda provinciana, tocando flauta, lendo Rimbaud, sonhando ter um mico-leão no ombro, fazer artesanato e virar hippie de verdade.

Foi quando conheci Renato. Calouro do curso de Psicologia. De Cajuru, cidade vizinha, em São Paulo. Tocava piano. Usava cabelos curtos, óculos de aro grosso, testa larga com entradas. Estereótipo do cdf. Parecidíssimo com Mário de Andrade.

Nossa identificação foi imediata. Era como se nos conhecêssemos de outras encarnações. Renato era pouco menos esquisito que eu. O visual dele era certinho: calça social, sapato, camisa polo. Além de esquisitos, éramos magrelos, compridos, e cem vezes mais sensíveis e delicados que os calouros da veterinária.


Foi morar na pensão. Compartilhamos o quarto com o bofão exibicionista. Nem duas semanas depois resolvemos montar uma república. Com uns conterrâneos de Renato e uma moça da Música.

A dona da pensão encarregou-se de fazer o inferninho. Ligou para o pai. Dizendo que eu tinha me juntado a maconheiros e pederastas. E eu totalmente inocente, virgem ainda, sem nenhuma expectativa sexual a não ser a visão do peladão secando as partes e a idealização da amizade helênica encarnada em Renato.

O pai foi verificar in loco a perdição do filho. Descobriu a mentira da Arquitetura. Renato tentou argumentar: pelo menos esperasse terminar o semestre e trancar a matrícula. Pedir transferência para a UnB. As negociações para a permanência não se concluíram. O pai foi irredutível: abandonar o curso e voltar imediatamente para Brasília.

A segunda tentativa de sair de casa também tinha fracassado. Ou nem tanto. Tinham sido os 4 meses mais intensos da minha vida até então.

(Renato me levou para um grupo de ioga. Me fez respirar incenso pela primeira vez. Me fez pensar que tinha entrado em transe. Questionar a existência de Deus. Me apresentou Freud, Jung e os antropofágicos. Me fez gostar de Villa-Lobos, Doces Bárbaros e Fernando Pessoa. E amar os dicionários).

Para agradar ao pai, fiz vestibular para arquitetura na UnB. Levei pau. Passei para a 2a opção: Artes Cênicas. Entrei para um grupo de dança. Fui iniciado sexualmente. Virei funcionário. Saí de casa definitivamente.

Renato e eu trocamos algumas cartas. (nos anos 80 não havia e-mail). Eram lindas. Poesias, citações, Clarice, Rilke, Hesse - que me fazia viajar, entrar em transe semelhante ao dos incensos e da ioga em Uberlândia. A última foi só uma palavra: "moenza". Seguida de um trecho contextualizante, talvez Mário ou Guimarães Rosa (os dicionários traziam exemplos de uso literário dos verbetes).

Perdemos o contato. Há alguns anos senti saudade dele. Achei no Google. Era cantor lírico. Morava na Europa. Tinha engordado. Cantava umas coisas contemporâneas, dodecafônicas, declamativas, estranhíssimas, textos de Oswald, Mário, Pagu, Jorge de Lima.

Ou seja, nós continuávamos esquisitos. Cada um a seu jeito. Eu muito menos espalhafatoso, grisalho, escrevendo em blog, só resquícios do pezinho na sociedade alternativa. Ele com as músicas compridas, o empresário alemão e a herança antropofágica.

Até pensei em entrar em contato. Desisti. Depois de 35 anos de silêncio e esquecimento é difícil sobreviver alguma identificação entre nós. Talvez ele nem se lembrasse mais de mim. Talvez o encontro improvável servisse só para confirmarmos que continuávamos mais sensíveis e delicados que os caras da veterinária.

Ou talvez não teríamos nada a dizer um ao outro. A não ser tentar recuperar fragmentos irrecuperáveis daquele tempo de escombros.

Mas isso é coisa que se faz somente quando se está sozinho. Diante da janela. Na tarde azul, fria, brilhante, transparente, de um sábado não marcado no calendário, não precedido da sexta-feira nem sucedido do domingo. Um sábado amarrando a lembrança dos dias vividos às possibilidades improváveis dos que poderão vir.

(moenza é uma árvore utilizada para fazer tamancos e canoas).

5 comentários:

Bene] disse...

Texto limpo, bom de ler...

Gladstone disse...

a nostalgia recrudescente deve ser efeito da lua cheia em touro...

Cláudio B. Carlos disse...

Gostei.

Abraço.

Gwavira Gwayá disse...

lindo texto, Glads...
saudades...

Carolina Vianna disse...

Que delícia ler vc!!!