Ode assimétrica (do Livro dos cacos)


ode assimétrica
(impressões de tarde clara em são luís)

“cavamos a palavra. sob o seu lustro, a cal; e cavamos a cal”
(ferreira gullar)

i

às duas horas e meia da tarde
a ilha navega
acima do que os olhos podem ver

a ilha navega
acima do vômito dos mendigos bêbados nas soleiras
entre as folhas das bíblias debaixo do braço dos evangélicos
no mato dos quintais
nos muros pichados
no lixo
nas sacolas de compras das donas-de-casa
nas lentes das máquinas fotográficas dos turistas 
dinamarqueses holandeses franceses japoneses alemães americanos
nas roupas dependuradas nas janelas
cobrindo de cores intensas os festões as cornijas os padrões de azulejos desgastados das fachadas
entre os camelôs interrompendo o fluxo dos pedestres no calçamento
no sono dos garis sob as jaqueiras

a ilha navega
misturada ao cheiro de comida vindo das venezianas dos casarões depredados
invadidos pela horda de flagelados

a ilha navega
impregnada pelo suor dos marinheiros 
fodendo travestis menores de idade nos becos nas escadarias nos vãos escuros

 ii

em meias palavras
palavras descascadas
o poema serve para descrever
as mulatinhas magras saídas da escola que nos olham e riem
o amarelo amargo dos vitrais da catedral 
lavando em fel os santos os fiéis fantasmagóricos
a rua grande
esteira estreita onde se anda e anda e anda sem chegar a lugar algum
os canhões apontados para a baía sem defender nada

com palavras fétidas
o poema serve para descrever
os peixes mortos boiando entre os barcos
e o catamarã para alcântara 
ancorados no cais
as moscas pousadas no verdume da carne ao sol
os olhos esgazeados 
o grunhido do porco preto no mercado
o riso os peitos os olhos a bunda grande da preta do beiju de tapioca

com palavras mornas
o poema serve para descrever
as bilhas de água
as trouxas de roupas das lavadeiras
as bicicletas dos peões-de-obra
o cavalo atropelado 
desenhado em branco-sujo & vermelho no asfalto
na tarde em banho-maria

iii

a ilha navega
enquanto aguardamos
as horas
no mormaço da tarde

enquanto contamos
a passagem das horas 
no quarto do hotel 
com cama king-size & frigobar & ar condicionado

enquanto sobrescrevemos postais poemas & cartas 
românticos & líricos & poéticos & sentimentais

sobre o mangue
a temporada teatral
as falcatruas dos políticos

sobre a mudança da lua
a tabela das marés
o calor da paisagem
as preocupações das mães distantes

sobre o naturalismo 
os poetas franceses do século XIX
& o pós-moderno

sobre as omoplatas as coxas as nádegas a boca o pêlo
os olhos azuis-verdes de holanda
dele

iv

um papagaio grasna no beiral
oculto em um casarão antigo
hoje biblioteca
um busto de schiller espreita
& nada diz

v

ponta da areia praia suja reggae maresia
mar amargo sol amargo sal amargo amor amargo
mar amarelo sol amarelo sal amarelo amor amarelo
vento entre as pedras

vi

os olhos azuis-verdes dele
os olhos azuis-verdes dele
os olhos azuis-verdes dele
corroídos pelos vermes
do tempo
que engole tudo

vii

(vendo uma crioula de roça, parida
e três mulatinhas para o serviço de casa
muito bem aparentadas
e com todos os dentes da boca
com todos os dentes da boca
com todos os dentes da boca
mastigo)

viii

os anjos nus 
os santos beatos
as diversas categorias de mártires possessos

os leprosos os epiléticos os aleijados os ressuscitados
as virgens as prostitutas de coração sangrando
descerão dos altares

virão a cavalo os voduns das minas
o séquito das ciganas & das princesas do oriente
os mestres os encantados
os caboclos de couro & de pena
as falanges de exus & pombas-giras 

para nos esmagar as cabeças com pés & cascos sacros
para nos lanhar as carnes com cilícios de couro cru
para nos rasgar os ventres com espadas cimitarras facões incandescentes
para nos escalpelar com machadinhas de pedra
para nos empalar a ferro em brasa
para nos cegar com filtros mágicos
para nos livrar de todos os males
para não deixar de nós 
nada além de escória entulho pó e ruína
e mediocridade

ix

incoerdentremente
coisa nebrácea brota
das profundezas
em clambores
trovões
vins clarividentes
o negronegro da coisa
prancta e sagã

x

postes desalinhados
à margem do caminho de areia
que vai dar no calhau

um fio em curto-circuito fagulha
água sal oxigênio
dna rna
amebas protozoa

o mar fecundado borbulha
arraias fosfóreas
anêmonas neônicas
enguias quartzeas
polvos fluorescentes
etcétera
 
(raios elétricos tecem a cabeleira de [z]deus)

xi

a luz 
cor-de-cobre
do farol
se derramou
sobre as minha pele
sobre a tua pele
sobre a pele
sobre os olhos azuis-verdes dele
no primeiro dia
no primeiro amanhecer do planeta

a luz se fez sobre nós
ora estendidos na areia
ora sob a sombras do coqueiral
ora sentados nos bancos de tábua da barraca 
que vendia cachaça e caranguejos
enquanto o sol perfazia as horas do dia
até a primeira-última noite nos engolir
no calhau

xii

abrem-se
obscuros vaus peludos
(entranha intra entre
falo-vulva)
mar interior adentro

ostra aberta 
o gozo escorre
da minha boca
da tua boca
da boca 
dos olhos
cálcidos
vítreos
viscosos
dele

xiii

na volta
girassóis esturricados
música alta
garrafas vazias sacos plásticos
lixo queimando
ciclistas
urubus sobre a carcaça branca do cavalo
às margens da rodovia

xiv

renegada
crudelíssima
amante esposa mãe
senhora de barcos paixões & ouro
a metade de são luís na palma esquerda
na direita a outra metade


alma condenada
séquito de escravos mutilados
coche puxado por parelha de cavalos sem cabeça
donana jansen
distribui velas acesas
ossos de defuntos
aos incautos
tresloucados
aos errantes
apaixonados
aos assassinos
potenciais
aos sofredores
de todos os gêneros
às prostitutas boazinhas & às malvadas
aos travestis com gilete ao invés de língua
aos pederastas enrustidos & aos militantes
aos poetas 
aos advogados
aos fracassados & aos bem-sucedidos
aos suicidas & aos amantes da vida
a todos os desencarnados 
que vagueiam na madrugada

xv

(será que a saudade
mulher viperina
me contagiou com o olhar
ou foi a galinha pedrês
do quintal de minha avó
que botou um ovo de duas gemas?)

xvi

eletrostática
do rádio mal sintonizado 
na cozinha de paredes amarelas & ladrilhos vermelhos
as andorinhas
pousadas nos fios
enquadradas na janela
mais abaixo
um velho sobe a escada
devagar
a boca branca e seca
a mão no peito

ao fundo
telhados
coqueiros
fonte
o sino da tarde
badala 3 horas
transeuntes passam
o tempo passa
as andorinhas voam

xvii

o décimo oitavo canto
deveria ser dedicado
a dona emília branco
mãe do panteão dos poetas 
da atenas brasileira
no século xix

o décimo oitavo canto
deveria ser exultante
quase um hino
que enaltecesse & exaltasse 
as belezas naturais & arquitetônicas
os tesouros 
o folclore 
o patrimônio histórico & cultural
as riquezas materiais & imateriais 
da terra & do povo são-luisense

versos decassílabos regulares
deiva ser o décimo oitavo canto
atitude & vigor dos verbos
essência subterrânea dos substantivos
superfície volátil de um ou outro adjetivo & advérbio
ordem direta & ordem inversa equilbradas
(excelsa terra de belezas pétreas
pútridas frágeis rotas terra excelsa)

mas não
chega de falar de poetas & de poemas que ninguém lê
o décimo oitavo canto será composto
em linotipos de chumbo
em fonte simples sem serifa
linhas não-ajustadas
em papel áspero grosseiro vagabundo
que comportem todos os  lugares-comuns borrados
utilizados para homenagear a morte

xviii

a flor negra e rosada da morte ronda
espero
penso
no grito da carne ao se flagrar ausente
de si

em chama
espero
penso
em me entregar 
à flor indelével
trágica & dramática & cenicamente
qual banhista afogada
amante no leito de adultério 
atriz na cena final
heroína no epílogo

flor fetal
flor de boca dissimulada
flor de carne e ossos negros no mangue próximo
flor na areia
cresce e multiplica-se
flor repetida 

flor sôfrega
flor-herpes
flor-pústula
no canto da boca
oculta sob os pêlos da virilha
do garoto de programa
flor que ronca silva ladra tiquetaqueia
flor escrita nos fios elétricos
flor que sobe e desce escadas 
ofegante
flor-efizemaflor do mal
flor de raios cósmicos
flor que me entope os ouvidos
entorpece a língua
anuvia os olhos
amolece a carne
& consome tudo

areia
vento
mar
cerração
noite
luz
estrelas
discos voadores

xix

o poeta é velho 
o poeta dorme a sesta na rede
o poeta velho ronca
os cabelos escorridos do poeta velho escondem-lhe o rosto
o barulho dos caminhões os assobios da rua
não interrompem o sono do poeta velho
o poeta velho não sonha com fome a sede a miséria que o cerca
com a fome a sede a miséria
& a esperança intrínseca do poema
(ainda mais que se aproxima
o último canto)
o poeta velho sonha

no poema sujo do poeta velho cabem
as verminoses dos meninos barrigudos
as dentaduras das velhas desdentadas
as hemorragias das putas raquíticas
a aids dos michês
o sangue dos operários da menina do cavalo atropelados na beira da rodovia
a peroração do pastor evangélico
o transe do cavalo do vodum
cabem no poema do poeta velho
os filhos e os netos e os bisnetos dos políticos corruptos
os batedores de carteira os punguistas os meliantes
os presos de segurança máxima
os vendedores de djamba no mangue


no poema sujo do poeta velho cabe
uma divagação extensa & cansativa sobre o passado
sobre o tempo ideal
perfeito
quando o poeta era jovem
quando os companheiros jovens do exílio voluntário do poeta
amavam & se entediavam
ocultavam as sífilis as gonorreias as blenorragias
morriam de tuberculose
sobrescreviam postais
& sonhavam retornar à terra
bahia pernambuco rio de janeiro pernambuco paraíba
onde a brisa brejeira & doce & morna 
beijava balançava engalanava

mas nada disso caberá no sonho do poeta velho
no sonho do poeta velho durante a sesta caberão apenas
formas amorfas 
douradas & nacaradas & cor-de-rosa
flutuando na superfície do mar azul-verde
faiscando à contra-luz do pôr-do-sol
ou encalhadas nos bancos de areia

(a sirene da escola
a campainha
o interfone
o telefone
o aparelho celular
o grito do vendedor de gás
a buzina do carro mal-estacionado
batem palmas na porta
& o poeta velho acorda)

xx

brasília, 31 de janeiro de 2013
19 horas no horário de verão
fim de tarde dourada quente úmida
me cansei de revolver ruínas os escombros
de resgatar & identificar 
os cadáveres da memória

apesar de oco aberto & disperso
o amor arrebatava
era arco contínuo projetado
rompia retas
sem resvalar
ou ferir de raspão
etc etc etc

(mar
de soda cáustica sabão em pó inseticida cacos de vidro
mar
atiro-me bêbado
voz esganiçada
espumejando
palavras vãs
mar
atiro-me bêbado
mar)


não
nada disso 
não são
não se usam mais essas
palavras

apesar da exuberância dos adjetivos
dos verbos trágicos
dos substantivos densos
do poema antigo
quase nada foi dito

de que adianta
cantar o mar
janelas
ruínas
esquartejar baleias
desenhar cavalos atropelados
de que adianta
cortar os pulsos
morrer ao vento

se o mar está distante
se a tristeza 
grave sem nexo
prossegue
presa no verbo
esvaziado
 
o mar
as pedras os casarões o mercado os porcos 
ficaram a 3 mil quilômetros
a 30 mil anos-luz de distância


às 19 horas e 38 minutos é só vazio
as últimas luzes do entardecer
o pio dos pássaros 
os frutos maduros esborrachando-se no chão

anoiteceu quse uma hora depois
às 20 horas e vinte e cinco minutos
o tempo 
as palavras
a melancolia e a tristeza
anoiteceram junto
entre as esquadrias os concretos & os vidros blindex

(oculto em eras recônditas
no casarão antigo
o busto de schiller espreita

o vento zune
entre as pedras pretas do calhau

a ilha navega
para sempre
acima dos que os olhos podem ver