A avó paterna Mãe-Tiana era filha do bisavô Pai-Totó e da bisavó Mariquinha. Tinha muitos irmãos, mas eu só me lembro dos nomes de tia Nhazita e tio Somiro, pai de Benzica, minha primeira babá, no tempo em que as vacas eram gordas.
Mãe-Tiana nasceu em um lugar chamado Goiabal. Mas morou muito tempo em São Domingos do Prata, de onde lhe veio o apelido abreviado.
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Mãe-Tiana parecia-se com uma índia velha. Ou uma cigana de algum filme registrado no inconsciente. Sobressaíam-lhe em todas as fotos e na memória os olhos vivazes, quase pretos, sob a testa alta, de um lado e do outro do narigão adunco, a pele morena toda enrugada. Sempre vestida com o mesmo vestido cor-de-rosa apagado, cinto e fivela, e sapatinhos de meio-salto, fechados, pouco mais escuros que o vestido.
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Ela era a própria alegria de viver. Quando não havia ninguém por perto, ou quando ninguém (a não ser eu) prestava a atenção, ela arregalava os olhos e fazia um movimento rápido com a língua, projetava a dentadura para fora da boca e a recolocava no lugar. Concluía o gesto com uma piscada marota, que só nós dois entendíamos. Aquilo constrangia e ao mesmo tempo me fazia me acabar de rir.
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Mãe-Tiana acordava antes do sol nascer. Para lavar (por dentro e por fora) o táxi de Padrinho, preparar-lhe o café da manhã, e só então acordá-lo. Todos os dias, inclusive aos domingos. Anos seguidos. Décadas. Frio ou sol, chuva ou calor, saúde ou doença, até que a morte os separasse.
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Para ela, abaixo da autoridade divina só
havia o marido. Padrinho era tudo. Para ele era tudo: o prato servido, enquanto ela comia de pé, entre a mesa e o fogão; as coxas, a moela e o fígado do frango
ao molho-pardo (o coração era meu, primeiro neto); a fatia mais grossa do queijo com goiabada; o canal do telejornal ao invés do da novela; o insuportável futebol no rádio de pilha no volume máximo. De Padrinho era, para
todo o sempre, a poltrona mais confortável para o jogo de damas, a cadeira de balanço, o último cigarro do maço, o crédito para as desculpas esfarrapadas, a palavra final em quaisquer situações.
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Ningém picava couve mais fina do que ela. O angu com taioba ou ora-pro-nobis era dos deuses. Leitoa à pururuca no natal estalava ao ser mordida. Recheada com farofa dourada de fubá de milho. Bife acebolado. Feijão amassado. Rabada. Canjiquinha com linguiça e costela de porco. Até o ovo que ela fritava tinha gosto diferente. Eu me lembro dela toda vez que sinto o cheiro de alho frito e ouço o chiado da água fervente despejada no arroz que ela me ensinou a refogar.
Foi com Mãe-Tiana que comi pela primeira (e última) vez miolo de boi tostado (antigamente não se usava a palavra grelhado) na frigideira. E gostei.
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