domingo, 17 de junho de 2012

deus/deuses

Jason Shawn Alexander em: http://quam-nos-animadverto.tumblr.com/
Mesmo a gente sendo obrigado a frequentar a missa aos domingos, o catolicismo familiar era proforma. Os conceitos teológicos eram diversificados: pai marxista; avô ateu; ufólogo amigo do pai; tio ex-seminarista; tia kardecista; preta-velha benzedeira, vizinha da avó; inquilinos muçulmanos; professora de piano casada com o pastor dos crentes (naquela época não se conhecia o termo “evangélico”); terreiro de macumba na rua de baixo; etc.

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Nas aulas de catecismo representávamos Deus matematicamente: na forma de um triângulo isósceles amarelo, no meio de uma nuvem tosca emanando raios pela parte de baixo. Ainda havia a pomba, dificílima de ser desenhada, asas abertas, pousada no vértice do triângulo. Aos 7 anos era impossível entender o deus-tríplice dos cristãos: pai, filho e espírito, tão mais abstrato que aquele senhor vestido com um camisolão branco, de barbas brancas muito compridas, esvoaçantes, apoiado em um cajado, geralmente sentado ou deitado (na mesma nuvem onde repousava o triângulo amarelo), das ilustrações dos livros infantis da professora de piano.

Triângulo ou velhote, aquele deus estava em todos os lugares. Vigiava as minhas transgressões (ou travessuras?) 24 horas por dia. Conhecia todos os meus pensamentos atravessados. E era mais poderoso que qualquer outro personagem dos gibis.

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Lá pelos 10 anos, o onisciente-onipresente-onipotente Jeová passou a compartilhar espaço no imaginário com uma turma bem mais variada: os deuses e semideuses olímpicos (apresentados pela boneca Emília) e, claro, os super-heróis da TV e das histórias em quadrinhos. Havia preferências, mas nunca hierarquias: os esguios Apolo e Hermes; o louraço Thor; o fortão Heracles; Atena ao invés de Afrodite; Diana ao invés da ciumenta Hera; Odin a Zeus; etc. Todos no mesmo patamar que os vilões Loki, o irmão torto de Thor; o outro torto Hefaístos; o irracional o Minotauro. Heróis, deuses, gênios, vilões, muito além do bem e do mal.

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Na adolescência o panteão expandiu-se. Descobri os deuses zoomorfos egípcios e hindus; o gorducho Buda; o semidivino Sidarta.

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Mas Jeová retomou a primazia. Com a sofisticação renascentista. Trocou o camisolão branco dos crentes por uma túnica rosada que lhe permitia maior liberdade de movimentos e mostrar o peitoral. Penteou as cãs, a cabeleira, aparou as sobrancelhas. Continuava deitado na nuvem (agora macia, 2.0, coberta por um toldo de seda vermelho, mais confortável que as garatujadas na infância). E bem mais próximo: tocava com o dedo indicador, o dedo indicador de um rapaz peladão e sonolento chamado Adão.

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Aos 17, 18 anos, li que outro barbudo chamado Karl tinha matado Jeová e o resto da galera. Para ele, deus-deuses era lenga-lenga de capitalistas-selvagens no intuito de alienar & manipular a massa. Era empobrecedor: um mundo sem o sobrenatural era um mundo linear, sem-graça, desprovido de sentido e poesia. Claro que não compartilhei esses pensamentos secretos com o pessoal do DCE.

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Mais tarde, vieram Kierkegaard & Artaud & Nietzche.

Kierkegaard me fez entender o monoteísmo judaico-cristão. Culpa, castigo, sofrimento, redenção - só um povo acostumado à linearidade, à planura, à escassez visual do deserto seria capaz de criar um ser superior com aspecto tão irascível, tão temeroso e tão vingativo. Um ser que exigisse tanto de seus seguidores, em troca, apenas, de uma possibilidade.

Por Artaud, eu entendi que negar deus era sofrer. Cruz, cravos, chagas, vinagre, sangue, nada disso valia. Deus era carne, desejo, sexo, secreção, excremento – tudo o que fosse ou saísse do corpo. Porém, o empenho de Artaud em comprovar a teoria era o próprio paradigma, a contradição: a loucura e o sofrimento decorrente da loucura era a prova da existência, nele, daquele deus renegado.

Com Nietzche veio o sossego. Nada de culpa. Deus era prazer, era fruição, era plenitude. Aliás, deuses. Que corriam pelados pelas planícies ensolaradas da Grécia, dando & comendo todo mundo, indiscriminadamente, trepando feito cabritos pelos rochedos até o cume dos picos, vislumbrando o mar azul-turquesa jônico descortinado. Qualquer mortal podia ser deus, desde que visse, que sentisse, que curtisse, que se entregasse àquilo.

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Reafirmar ou negar a existência dele/deles é temerário. Iconoclastia, nesses tempos tão agnósticos e ao mesmo tempo tão crédulos. Até hoje caminho sobre o muro, indefinido, ignorante, confuso - mescla do traçado e erigido pelo triângulo Kierkegaard-Artaud-Nietzche. E pela formação/informação caótica, desde a idade mais tenra. Sem maiores estratégias, definições, posicionamentos.

Por exemplo: não é além do humano ouvir Bach ou Brahms no carro, em pleno engarrafamento, as 7:30 da manhã? ou Ella Fitzgerald, ao amanhecer, voltando da balada? sentir a neblina na mata e ouvir o silêncio cirucundante da lagoa no meio da ilha ao entardecer? caminhar no mato molhado de orvalho?

Ou equilibrar-se, de olhos bem abertos, sem olhar para baixo, na corda que atravessa o precipício que liga o conhecido ao desconhecido.

Um comentário:

Gwavira Gwayá disse...

que texto lindo, Glads!