sábado, 3 de agosto de 2013

cauby, palmilhas ortopédicas e preconceito

O ortopedista resolveu melhorar minha postura. Receitou uma palmilha para ser usada no pé esquerdo. Assim o eixo do quadril mudará, não entendi bem como, redistribuindo o peso entre as pernas, uma delas sobrecarregada. Esse desequilíbrio reflete-se, por uma série de cruzamentos musculares e de terminais nervosos, na escápula e ombro direitos, onde sinto dores horrorosas nas últimas semanas.

O fabrico da palmilha é especialidade de um único profissional confiável em Brasília. Pensei que era só ligar e encomendar: número 42, 1 cm de altura. Mas não. Fazer palmilhas é arte e ciência combinadas.

O fabricante de palmilha atende em um consultório longe pra caramba, em horário super restrito (menos de meio expediente), por ordem de chegada.

Pois bem, hoje eu fui lá.

Fazia as vezes de secretária uma menina de uns 8 ou 9 anos. Que me mandou aguardar na sala de espera, cheia de idosos.

Mal eu me sentei, chegou um homem acompanhado de um senhor bem velhinho, barbudo, lembrando um mestre de kung-fu. O homem sentou-se em uma extremidade da sala e o velhinho na outra.

O homem puxava assuntos com o velhinho. Falava alto, a conversa atravessando a sala.

O homem usava artifícios retóricos para atrair ou mesmo forçar os outros pacientes a entrarem na conversa. Tentava ser engraçado, espirituoso, inteligente e bem-informado ao mesmo tempo. Primeiro falou sobre tecnologias exóticas: computadores-caneta, baterias de celular feitas com água e açúcar. Enumerou orgulhoso as vantagens do seu aparelho celular comprado há 15 anos atrás, comparando com a ineficiência e descartabilidade (?) dos celulares atuais. Etc.

Ninguém deu bola. Nem o velhinho que acompanhava o homem. Eu nem olhava. Todos entretidos com suas próprias mazelas ortopédicas, iguais ou piores que as minhas.

Então, vendo frustradas as tentativas iniciais, o homem resolveu falar mal dos políticos brasileiros. Das manifestações populares. Da Presidenta. Temas que certamente arrebanhariam adeptos. Mas não ali, perto do meio-dia, todo mundo impaciente, faminto.

Aí o homem apelou. Falou da aberração que era a união estável e a adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo. Na hora eu olhei para ele. Ostentei uma expressão profunda de desprezo e desaprovação. Um dos pacientes levantou-se, também visivelmente irritado.

Parecia que o homem tinha percebido inconveniência.

Passaram-se uns 30 segundos de silêncio. O tempo de aparecer, na TV, uma entrevista com maravilhoso Cauby Peixoto.

Pois não é que o idiota voltou à carga, fazendo piada do Cauby?

Ninguém riu. Ou o homem murchou ou eu deixei de prestar atenção ao que ele ainda tentava dizer.

Eu estava fascinado por aquele idoso na tela, ícone de várias gerações gays, peruca basta, vestido com um blazer de lantejoulas vermelhas. Cauby cantava

Granada, tierra soñada por mi

e cantava e cantava e cantava outras músicas, vozeirão como que em resposta àquele poço de imbecilidade, preconceito e ignorância que alugava os nossos ouvidos.

Fiquei hipnotizado por Cauby. Até ser despertado pela atendente-mirim. Que me conduziu à sala do avô-palmilheiro. Que anotou meus dados. Desenhou na mesma folha o contorno do meu pé esquerdo. Acrescentou setas, riscos transversais e sinais parecidos com hieróglifos. E despediu-se prometendo que, depois de experimentar a palmilha fabricada por ele, meu caminhar nunca mais será o mesmo.

O homem preconceituoso era o próximo. Ao cruzar com ele no corredor, ao invés de desprezo eu desejei que a palmilha operasse nele o mesmo a mim prometido. Que o caminhar daquele homem trilhasse destinos menos obtusos. Que as paisagens surgidas no caminho lhe abrissem o pensamento. E que Cauby continuasse cantando a plenos pulmões a trilha sonora da minha e da caminhada do homem.

Um comentário:

profalice2fm disse...

Assim seja!
Vida longa a Cauby!
Belas caminhadas a você, meu querido.
Lindo texto.