quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Catira


Preta como tição. Lustrosa, magricela, baixinha, musculosa. Espichada, cara de fuinha. Irascível, fleumática, nervosa. Ao mesmo tempo derretia-se por carinho. Pulava no colo das pessoas na sala de tevê, deitava-se de barriga pra cima para ser coçada. Mijava-se de pura alegria. O rabo de vírgula sangrava de tanto bater no chão, nas paredes quando chegava alguém que gostava.
Assente e eficiente caçadora de lagartixas. Feroz como um grifo marombado, latia com qualquer ser vivente que passasse do outro lado do portão, bípede ou quadrúpede, coelho, sabiá, mico, gato, carteiro, lixeiro, vizinho, recenseador. Ai de quem tentasse pegá-la: mordida certa, de arrancar pedaço. Reinava na casa. Até as cadelas grandes tinham-lhe respeito.
Pois bem. Um belo dia descobriu-se-lhe a doença. Fatal. Não daquelas fulminantes, que matavam de uma hora pra outra, sem sofrimento, não. Doença lenta. Corrosiva, solapante, dia a dia, gota a gota. Gânglios, inflamações, perebas, comprometimento dos órgãos vitais, queda de pelo.
A veterinária deu esperanças: remédio importado, clandestino, milagroso. 85% de chances. Dispendioso, trabalhoso de ministrar, e ainda acompanhado de dez outras providências. Encomendou-se o tal remédio. Tomaram-se as devidas providências secundárias. Mas...
Os sintomas recrudesceram. Não é preciso entrar em detalhes. Decidiu-se: eutanásia. Abreviar a dor dela, dos outros.
Entrou no carro faceira. Pulou no colo do motorista, lambeu o vento da janela aberta. De vez em quando olhava agradecida pelo passeio, inusitado, plena tarde de dia útil. Desceu animada, farejou as rodas dos carros no estacionamento, fez xixi demarcatório. Só caiu na real quando entrou na sala de espera da clínica.
Na fila, um filhote de pitbull cinzento. Um viralatas cujas patas traseiras tinham sido substituídas por sistema de rodas. Um gato invisível no fundo da gaiola de transporte. Ela começou a tremer. Logo quem, a feroz, destemida que avançava na dona, que punha moral no terreiro, que espantava os intrusos, com medo de um filhote, de um aleijado, de uma gata sarnenta? Ou já estaria sentindo a presença invisível Dele, o Ceifador, próxima?
Continuou tremendo enquanto a ficha era preenchida, o cheque. Nem relaxou enquanto coçavam-lhe as orelhas, a barriguinha. Por fim a moça simpática da recepção colocou-a no colo para a despedida. Melhor não acompanhar os procedimentos. Seria indolor. Anestesia, estado de coma, e acordar no paraíso dos cães.
Foi sem olhar para trás, sem olhar de despedida. Subiu as escadas no colo da estranha. Para ela o fim já tinha começado fazia tempo. Nem ouviu as lágrimas descontroladas pingando chochas no piso de cerâmica da clínica, os adeuses, as palavras de consolo do pessoal da fila, do filhote de pitbull, da gata oculta, do viralatas paraplégico. Deixou um buraco, fundo, preto, comprido, no resto da tarde. Que se prolongou noite adentro. De madrugada ainda ouviu-se, pela última vez, seus passinhos de vidro  pela estrada de ladrilhos amarelos, a caminho da terra do nunca.

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