quinta-feira, 26 de julho de 2012

5 continhos-boleros

Arrasto os móveis. Varro os cantos. Espalho naftalina nas gavetas. Pulverizo inseticida nos ralos. Estendo os cobertores ao sol. Para expurgar o mofo do inferno dos dias da tua ausência.

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Foi com o vidro quebrado do teu retrato – aquele com cachecol vermelho e sorriso com todos os dentes – que rabisquei na carne do braço este bilhetinho de adeus.

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Despregassem as geleiras do teu sarcasmo. Engolisse-me a avalanche das tuas falácias. Esguichasse na minha cara o gozo do teu descaso - e eu continuaria ali, cão, atento, pastorando, do lado de fora, a porta de nosso corpo-casa.

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Não disfarço a ansiedade ao buscar, entre as chaves do carro e as moedas do troco da padaria largadas na mesa-de-centro, o cheiro, o pó, os resquícios, os cacos, os sachês do paraíso-céu de onde você chega e me proíbe imaginar.

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Não, eu não espero nada mais que isso. Eu construo pontes das migalhas que você espalha no meu tapetinho de dormir.

imagens da internet - gatos

Frank Patton

sábado, 21 de julho de 2012

lugares (2)


Desde a infância, as descrições dos lugares me fascinavam mais que os enredos das histórias. Enquanto ouvia (e depois lia), eu reconstruía, detalhe por detalhe, o quintal da choupana de João e Maria, a silhueta do Hispaniola ancorado em uma enseada da Ilha do Tesouro, a aurora boreal na abóbada da caverna, descrita por Axel na Viagem ao Centro da Terra, os lustres e o papel de parede do salão de baile da Gata Borralheira, as vielas do mercado árabe percorridas por Aladim, os telhados de ouro dos pagodes das Viagens de Marco Polo – estímulos e informações que redesenhavam, expandiam e transformavam, a cada narrativa, a cartografia da imaginação.
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Era uma viagem sem roteiro ou prazos preestabelecidos. Para comemorar os quarenta anos.
Perambulando por Roterdam, vi o anúncio: passagem e 1 semana em Marrakech por quase o preço de um bilhete semanal de tram.
A prévia do mundo mourisco tinha sido a Espanha: primeiro, em Toledo. Depois, no trajeto do ônibus pinga-pinga e do trem repleto de ciganos e paisagens planas e áridas pela janela, as mesmas dos filmes de Bigas Luna, pontilhadas de moinhos à la Dom Quixote e/ou silhuetas-outdoors de touros negros (marca de cerveja que virou identidade visual espanhola), no caminho entre Madri e as cidades e vilas da Andaluzia.
Já na alfândega do Marrakech Menara atravessei o primeiro umbral: o uniforme cáqui e os bigodes do policial com cara de Humprhey Bogart, o guichê de madeira torneada e vidros bisotados com as armas e a bandeira do país, a gavetinha encardida para passar o passaporte, até o carimbo me transportaram para um filme preto-e-branco da década de 1940.
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Os golinhos do chá, sorvidos na varanda de um café em frente à praça, ajudaram a atravessar o segundo portal para aquele lugar das histórias da infância, revisitado em tantos filmes e leituras da adolescência e idade adulta.
A viagem meio psicodélica era estimulada pela velocidade das imagens e das sensações, a luz do entardecer, os barulhos da rua, as rodas de metal das charretes no calçamento de pedra, as buzinas dos carros, os versos do corão distorcidos pelos autofalantes da mesquita, as túnicas escuras, os turbantes, as barbas brancas dos velhos caminhando de mãos dadas, os véus, os arabescos de henna desenhados nas mãos das mulheres, os balaios e flautas dos encantadores de serpentes e macacos, a roupa esquisita dos aguadeiros, tudo me fazia sentir como em outra dimensão, outro tempo, outro planeta, como se a qualquer momento passasse a diligente Morgiana a marcar com carvão o “X” nas portas das casas da vizinhança, como se pudesse tropeçar nas muletas de Rimbaud apoiadas na mesa ao lado, ou se fizesse parte da projeção em 3D de cena de cidade do deserto de um episódio de Guerra nas Estrelas.
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Os outros dias foram também intensos. Transpus outros portais, tanto os de adobe e pedra quanto os sensoriais. Eu vivenciava a realidade e ao mesmo tempo me transportava para camadas profundas da memória, da imaginação e do inconsciente.
Eu andava desde cedo até muito depois do anoitecer, pelos pontos turísticos marcados no guia e pelas ruas comuns, do lado de fora da medina, no labirinto do souk, regateando em francês constrangedor o preço de bugigangas, dando papo para os malandros que me ofereciam, em árabe, chás exóticos, hashish, relógios coreanos e jantares típicos, em bares esquisitos com rapazes-odaliscas a preços módicos, os roseirais floridos nos muros, jardins e canteiros, as cegonhas nos postes e no alto das ruínas, minaretes, janelas rendilhadas, fontes, espelhos d’água, camelos e cabras nos jardins do palácio, litros de chá de hortelã adoçados com quilos de açúcar e servidos em lindas chaleiras de bronze, tudo – nem precisa dizer que voltei para o Brasil surtado.
Surtado, no bom sentido. Melhor: inebriado. A readaptação demorou. Noites seguidas sonhando com o Marrocos, sentindo os cheiros, hortelã, especiarias, mijo, excrementos de animais, tanino, índigo, os barulhos, as vozes, a toada dos imãs, as cores, os arabescos, o céu.
Preocupada com o meu estado quase delirante, a amiga mística explicou: eu tinha vivido ali em encarnações passadas.
A explicação não convencia. Não era assim tão simples. Conhecer Marrakech tinha sido um mergulho muito profundo e eu estava encharcado de sensações. Eu tinha percorrido paisagens de sonho e de memória, locais imaginários e remotos surgidos das primeiras leituras, uterinas, ancestrais, arquetípicas, eu tinha atravessado territórios habitados pela alma.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

lugares (1)

Li: todas as memórias são memórias de memórias. A frase será o mote da resposta à pergunta nº 1 da caixinha-de-perguntas: “qual o lugar mais lindo que você já viu na vida”.

O autor explica: o cérebro não é um álbum no qual memórias são guardadas discretamente como fotografias imutáveis. Uma memória é, em vez disso, de acordo com uma frase do psicólogo Daniel L. Schacter, uma “constelação temporária” de atividade – uma certa excitação dos circuitos neurais que aglutina um conjunto de imagens sensoriais e informações semânticas numa sensação momentânea de um todo relembrado. Essas imagens e informações raras vezes são propriedade exclusiva de uma memória particular. (Jontathan Franzen, O cérebro de meu pai).
 
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Nosso pai era intuitivo no que se tratava da formação perceptiva e sensorial dos filhos. Houve um período (eu devia ter 7, 8 anos) em que ele nos acordava de madrugada para assistir o alvorecer no alto do morro, ouvir a vibração da eletricidade nos fios estendidos entre as torres de alta tensão que margeavam a estrada, caminhar pelas trilhas no meio do mato, ou nadar no córrego, enquanto o sol nascia.
 
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Aqueles lugares, ofuscados pela luz do sol surgindo no horizonte, ou desbotados pela mesma luz amarelada - efeito do tempo sobre uma velha foto polaroid - constituem uma beleza única, certamente não vivenciada no sentido literal, mas alimentada e potencializada pelos estímulos semânticos e sensoriais mencionados na citação.

Seriam ainda os mesmos estímulos os que alimentam as memórias dos lugares vistos depois, ao longo dos anos, criando conexões intrincadas, e quase sempre indistinguíveis, com aquelas primeiras memórias, originais. Como se na essência fossem sempre os mesmos lugares da infância mais remota, realimentados, recriados e transformados na memória de todos os lugares novos.
 
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1.
O córrego fazia uma curva, onde se formava um poço. A areia da margem era quase branca. A água refletia uma luz prateada, vinda não sabia bem de onde, talvez da primeira claridade do alvorecer, talvez apenas da luz embaçada da memória. A margem oposta era ainda uma mancha escura de mato, neblina e restos de noite. Havia cheiro de mato, umidade, cânticos religiosos quase murmurados e trinados dos pássaros. Espalhados na margem, e também na água, de pé, quase imóveis, homens, mulheres, crianças, vestidos com túnicas brancas. Extáticos, aguardavam em fila o batismo. O pastor, com água até a cintura, segurava a cabeça do fiel, mergulhava-a na água e pronunciava algumas palavras, trazia de novo a cabeça do batizado à superfície. 

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O objetivo é escrever sobre o lugar mais lindo já visto. Os lugares lindos estão sempre ligados a situações carregadas de significados. É impossível escolher “o” lugar. Optei por lugares. 

Lugares que se escondem atrás dos lugares-comuns dos cartões postais, dos guias e das máquinas fotográficas dos turistas. Lugares insuspeitados, daqueles que a gente nunca antes tinha ido, mas se sentiu como se sempre tivesse vivido ali. Mesmos lugares, renovados pelas recargas de estímulos e significados nos repositórios da memória.
 
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O jeito então será estender a resposta. Pensei em dez lugares. Diminuí para seis. Até agora, escrevi sobre três: o primeiro é o lugar-origem, a reminiscência da infância, numerada com o 1. aí atrás. Os demais, na ordem caótica pela qual emergiram da memória, virão dia a dia:
  
    •    Marrakesh
    •    Itaúnas
    •    Lagoa do Peri e Pântano do Sul
    •    Chapada dos Guimarães
    •    Aguda