Li: todas as memórias são memórias de memórias. A frase será o mote da resposta à pergunta nº 1 da caixinha-de-perguntas: “qual o lugar mais lindo que você já viu na vida”.
O autor explica: o cérebro não é um álbum no qual memórias são guardadas discretamente como fotografias imutáveis. Uma memória é, em vez disso, de acordo com uma frase do psicólogo Daniel L. Schacter, uma “constelação temporária” de atividade – uma certa excitação dos circuitos neurais que aglutina um conjunto de imagens sensoriais e informações semânticas numa sensação momentânea de um todo relembrado. Essas imagens e informações raras vezes são propriedade exclusiva de uma memória particular. (Jontathan Franzen, O cérebro de meu pai).
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Nosso pai era intuitivo no que se tratava da formação perceptiva e sensorial dos filhos. Houve um período (eu devia ter 7, 8 anos) em que ele nos acordava de madrugada para assistir o alvorecer no alto do morro, ouvir a vibração da eletricidade nos fios estendidos entre as torres de alta tensão que margeavam a estrada, caminhar pelas trilhas no meio do mato, ou nadar no córrego, enquanto o sol nascia.
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Aqueles lugares, ofuscados pela luz do sol surgindo no horizonte, ou desbotados pela mesma luz amarelada - efeito do tempo sobre uma velha foto polaroid - constituem uma beleza única, certamente não vivenciada no sentido literal, mas alimentada e potencializada pelos estímulos semânticos e sensoriais mencionados na citação.
Seriam ainda os mesmos estímulos os que alimentam as memórias dos lugares vistos depois, ao longo dos anos, criando conexões intrincadas, e quase sempre indistinguíveis, com aquelas primeiras memórias, originais. Como se na essência fossem sempre os mesmos lugares da infância mais remota, realimentados, recriados e transformados na memória de todos os lugares novos.
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1.
O córrego fazia uma curva, onde se formava um poço. A areia da margem era quase branca. A água refletia uma luz prateada, vinda não sabia bem de onde, talvez da primeira claridade do alvorecer, talvez apenas da luz embaçada da memória. A margem oposta era ainda uma mancha escura de mato, neblina e restos de noite. Havia cheiro de mato, umidade, cânticos religiosos quase murmurados e trinados dos pássaros. Espalhados na margem, e também na água, de pé, quase imóveis, homens, mulheres, crianças, vestidos com túnicas brancas. Extáticos, aguardavam em fila o batismo. O pastor, com água até a cintura, segurava a cabeça do fiel, mergulhava-a na água e pronunciava algumas palavras, trazia de novo a cabeça do batizado à superfície.
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O objetivo é escrever sobre o lugar mais lindo já visto. Os lugares lindos estão sempre ligados a situações carregadas de significados. É impossível escolher “o” lugar. Optei por lugares.
Lugares que se escondem atrás dos lugares-comuns dos cartões postais, dos guias e das máquinas fotográficas dos turistas. Lugares insuspeitados, daqueles que a gente nunca antes tinha ido, mas se sentiu como se sempre tivesse vivido ali. Mesmos lugares, renovados pelas recargas de estímulos e significados nos repositórios da memória.
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O jeito então será estender a resposta. Pensei em dez lugares. Diminuí para seis. Até agora, escrevi sobre três: o primeiro é o lugar-origem, a reminiscência da infância, numerada com o 1. aí atrás. Os demais, na ordem caótica pela qual emergiram da memória, virão dia a dia:
• Marrakesh
• Itaúnas
• Lagoa do Peri e Pântano do Sul
• Chapada dos Guimarães
• Aguda
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