Desde
a infância, as descrições dos lugares me fascinavam mais que os
enredos das histórias. Enquanto ouvia (e depois lia), eu reconstruía,
detalhe por detalhe, o quintal da choupana de João e Maria, a
silhueta do Hispaniola ancorado em uma enseada da Ilha do Tesouro, a aurora boreal na abóbada da caverna,
descrita por Axel na Viagem ao Centro da Terra, os lustres e o papel
de parede do salão de baile da Gata Borralheira, as vielas do
mercado árabe percorridas por Aladim, os telhados de ouro dos
pagodes das Viagens de Marco Polo – estímulos e informações que
redesenhavam, expandiam e transformavam, a cada narrativa, a
cartografia da imaginação.
...
Era
uma viagem sem roteiro ou prazos preestabelecidos. Para comemorar os
quarenta anos.
Perambulando
por Roterdam, vi o anúncio: passagem e 1 semana em Marrakech por
quase o preço de um bilhete semanal de tram.
A
prévia do mundo mourisco tinha sido a Espanha: primeiro, em Toledo.
Depois, no trajeto do ônibus pinga-pinga e do trem repleto de
ciganos e paisagens planas e áridas pela janela, as mesmas dos
filmes de Bigas Luna, pontilhadas de moinhos à
la Dom
Quixote e/ou silhuetas-outdoors de touros negros (marca de cerveja
que virou identidade visual espanhola), no caminho entre Madri e as
cidades e vilas da Andaluzia.
…
Já
na alfândega do Marrakech Menara atravessei o primeiro umbral: o
uniforme cáqui e os bigodes do policial com cara de Humprhey Bogart,
o guichê de madeira torneada e vidros bisotados com as armas e a
bandeira do país, a gavetinha encardida para passar o passaporte,
até o carimbo me transportaram para um filme preto-e-branco da
década de 1940.
...
Os
golinhos do chá, sorvidos na varanda de um café em frente à praça,
ajudaram a atravessar o segundo portal para aquele lugar das
histórias da infância, revisitado em tantos filmes e leituras da
adolescência e idade adulta.
A
viagem meio psicodélica era estimulada pela velocidade das imagens e
das sensações, a luz do entardecer, os barulhos da rua, as rodas de
metal das charretes no calçamento de pedra, as buzinas dos carros,
os versos do corão distorcidos pelos autofalantes da mesquita, as
túnicas escuras, os turbantes, as barbas brancas dos velhos
caminhando de mãos dadas, os véus, os arabescos de henna desenhados
nas mãos das mulheres, os balaios e flautas dos encantadores de
serpentes e macacos, a roupa esquisita dos aguadeiros, tudo me fazia
sentir como em outra dimensão, outro tempo, outro planeta, como se a
qualquer momento passasse a diligente Morgiana a marcar com carvão o
“X” nas portas das casas da vizinhança, como se pudesse tropeçar
nas muletas de Rimbaud apoiadas na mesa ao lado, ou se fizesse parte
da projeção em 3D de cena de cidade do deserto de um episódio de
Guerra nas Estrelas.
...
Os
outros dias foram também intensos. Transpus outros portais, tanto os
de adobe e pedra quanto os sensoriais. Eu vivenciava a realidade e ao
mesmo tempo me transportava para camadas profundas da memória, da
imaginação e do inconsciente.
Eu
andava desde cedo até muito depois do anoitecer, pelos pontos
turísticos marcados no guia e pelas ruas comuns, do lado de fora da
medina, no labirinto do souk, regateando em francês constrangedor o
preço de bugigangas, dando papo para os malandros que me ofereciam,
em árabe, chás exóticos, hashish, relógios coreanos e jantares
típicos, em bares esquisitos com rapazes-odaliscas a preços módicos, os roseirais floridos nos muros, jardins e canteiros, as cegonhas nos
postes e no alto das ruínas, minaretes, janelas rendilhadas, fontes,
espelhos d’água, camelos e cabras nos jardins do palácio, litros
de chá de hortelã adoçados com quilos de açúcar e servidos em
lindas chaleiras de bronze, tudo – nem precisa dizer que voltei
para o Brasil surtado.
…
Surtado,
no bom sentido. Melhor: inebriado. A readaptação demorou. Noites
seguidas sonhando com o Marrocos, sentindo os cheiros, hortelã,
especiarias, mijo, excrementos de animais, tanino, índigo, os
barulhos, as vozes, a toada dos imãs, as cores, os arabescos, o céu.
Preocupada
com o meu estado quase delirante, a amiga mística explicou: eu tinha
vivido ali em encarnações passadas.
A
explicação não convencia. Não era assim tão simples. Conhecer
Marrakech tinha sido um mergulho muito profundo e eu estava
encharcado de sensações. Eu tinha percorrido paisagens de sonho e
de memória, locais imaginários e remotos surgidos das primeiras
leituras, uterinas, ancestrais, arquetípicas, eu tinha atravessado
territórios habitados pela alma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário