sábado, 21 de julho de 2012

lugares (2)


Desde a infância, as descrições dos lugares me fascinavam mais que os enredos das histórias. Enquanto ouvia (e depois lia), eu reconstruía, detalhe por detalhe, o quintal da choupana de João e Maria, a silhueta do Hispaniola ancorado em uma enseada da Ilha do Tesouro, a aurora boreal na abóbada da caverna, descrita por Axel na Viagem ao Centro da Terra, os lustres e o papel de parede do salão de baile da Gata Borralheira, as vielas do mercado árabe percorridas por Aladim, os telhados de ouro dos pagodes das Viagens de Marco Polo – estímulos e informações que redesenhavam, expandiam e transformavam, a cada narrativa, a cartografia da imaginação.
...
Era uma viagem sem roteiro ou prazos preestabelecidos. Para comemorar os quarenta anos.
Perambulando por Roterdam, vi o anúncio: passagem e 1 semana em Marrakech por quase o preço de um bilhete semanal de tram.
A prévia do mundo mourisco tinha sido a Espanha: primeiro, em Toledo. Depois, no trajeto do ônibus pinga-pinga e do trem repleto de ciganos e paisagens planas e áridas pela janela, as mesmas dos filmes de Bigas Luna, pontilhadas de moinhos à la Dom Quixote e/ou silhuetas-outdoors de touros negros (marca de cerveja que virou identidade visual espanhola), no caminho entre Madri e as cidades e vilas da Andaluzia.
Já na alfândega do Marrakech Menara atravessei o primeiro umbral: o uniforme cáqui e os bigodes do policial com cara de Humprhey Bogart, o guichê de madeira torneada e vidros bisotados com as armas e a bandeira do país, a gavetinha encardida para passar o passaporte, até o carimbo me transportaram para um filme preto-e-branco da década de 1940.
...
Os golinhos do chá, sorvidos na varanda de um café em frente à praça, ajudaram a atravessar o segundo portal para aquele lugar das histórias da infância, revisitado em tantos filmes e leituras da adolescência e idade adulta.
A viagem meio psicodélica era estimulada pela velocidade das imagens e das sensações, a luz do entardecer, os barulhos da rua, as rodas de metal das charretes no calçamento de pedra, as buzinas dos carros, os versos do corão distorcidos pelos autofalantes da mesquita, as túnicas escuras, os turbantes, as barbas brancas dos velhos caminhando de mãos dadas, os véus, os arabescos de henna desenhados nas mãos das mulheres, os balaios e flautas dos encantadores de serpentes e macacos, a roupa esquisita dos aguadeiros, tudo me fazia sentir como em outra dimensão, outro tempo, outro planeta, como se a qualquer momento passasse a diligente Morgiana a marcar com carvão o “X” nas portas das casas da vizinhança, como se pudesse tropeçar nas muletas de Rimbaud apoiadas na mesa ao lado, ou se fizesse parte da projeção em 3D de cena de cidade do deserto de um episódio de Guerra nas Estrelas.
...
Os outros dias foram também intensos. Transpus outros portais, tanto os de adobe e pedra quanto os sensoriais. Eu vivenciava a realidade e ao mesmo tempo me transportava para camadas profundas da memória, da imaginação e do inconsciente.
Eu andava desde cedo até muito depois do anoitecer, pelos pontos turísticos marcados no guia e pelas ruas comuns, do lado de fora da medina, no labirinto do souk, regateando em francês constrangedor o preço de bugigangas, dando papo para os malandros que me ofereciam, em árabe, chás exóticos, hashish, relógios coreanos e jantares típicos, em bares esquisitos com rapazes-odaliscas a preços módicos, os roseirais floridos nos muros, jardins e canteiros, as cegonhas nos postes e no alto das ruínas, minaretes, janelas rendilhadas, fontes, espelhos d’água, camelos e cabras nos jardins do palácio, litros de chá de hortelã adoçados com quilos de açúcar e servidos em lindas chaleiras de bronze, tudo – nem precisa dizer que voltei para o Brasil surtado.
Surtado, no bom sentido. Melhor: inebriado. A readaptação demorou. Noites seguidas sonhando com o Marrocos, sentindo os cheiros, hortelã, especiarias, mijo, excrementos de animais, tanino, índigo, os barulhos, as vozes, a toada dos imãs, as cores, os arabescos, o céu.
Preocupada com o meu estado quase delirante, a amiga mística explicou: eu tinha vivido ali em encarnações passadas.
A explicação não convencia. Não era assim tão simples. Conhecer Marrakech tinha sido um mergulho muito profundo e eu estava encharcado de sensações. Eu tinha percorrido paisagens de sonho e de memória, locais imaginários e remotos surgidos das primeiras leituras, uterinas, ancestrais, arquetípicas, eu tinha atravessado territórios habitados pela alma.

Nenhum comentário: