segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

sobre sincronias da segunda-feira

Por causa do calor eu dormi com as portas e janelas da casa abertas. Mal amanheceu, o sol forte atravessou a cortina das pálpebras e dissipou as sombras das asas que esvoaçavam nas paredes e no teto dos sonhos. Acordei com grasnados (a primeira imagem que me veio foi a do corvo no beiral da janela de Poe) e um rebuliço no quarto: a gata pulou na cama. Presa na boca, e se debatendo, uma fêmea de bem-te-vi. Difícil fazer a gata largar a caça que, meio troncha, finalmente conseguiu voar para o jardim.

2. Levantei-me quase me arrastando. No meio do ritual (escovar os dentes, ferver água para o café, servir ração, trocar a água e dar os remédios ao cão), o rádio-relógio despertou: Cauby cantou Roberto, baixinho, no meu ouvido: olha você tem todas as coisas que um dia eu sonhei pra mim.

3. Depois do café a segunda-feira se povoou de projetos impetuosos: conferir o extrato bancário, escrever à prima, marcar consulta com o dermatologista, concluir o texto sobre heróis, desenhar um roteiro de viagem improvável, limpar as arandelas e organizar a estante dos livros. Desisti de correr, em razão de resquícios de ressaca e do sol escaldante já às 8 da manhã. Deitei-me de novo e esperei a taquicardia passar.

4. Deitado, tentei focar um pensamento difuso sobre (de novo) sincronias: a) no conto de Flannery O'Connor lido ontem (O calafrio constante), o escritor moribundo revê nas manchas de umidade do gesso do teto do quarto de infância uma ave de aspecto feroz e asas abertas, com um pingente atravessado no bico e outros menores que pendiam do que era o rabo e das asas; b) em Cartas de um escritor solitário, de Sam Savage, enquanto ouvia o barulho das gaivotas, no mesmo gesso manchado do teto do quarto-e-sala o personagem-redator via o contorno da Grã-Bretanha, junto com várias manchas que pareciam surpreendentemente couves-flores gigantes, e acima da janela encontrou um grande sapo com uma raquete de tênis na boca; c) as asas farfalhantes dos morcegos e mariposas do sonho e as asas castanhas do pássaro se debatendo na boca da gata. Felizmente não distingui nada nas manchas de infiltração na laje do meu quarto. Melhor levantar e tomar banho.

5. Coloquei um CD velho e chiento de Shirley Horn cantando Miles Davis antes de entrar no chuveiro. Concluí debaixo da água gelada: existir é o entretecer de infinitas coincidências, quase sempre banais, quase sempre forçadas.

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