domingo, 28 de julho de 2013

hospedar, hospedar-se, hóspedes, hospitalidade

(foto do Gabriel)

No final do século passado a socialaite Danuza Leão escreveu um livro (ou dois?) sobre etiqueta. Nesse(s) livro(s), havia um um capítulo inteiro sobre a arte de hospedar e a ciência de hospedar-se.

Danuza estabelecia regras básicas, tanto para o hospedeiro quanto para o hóspede. Ao primeiro, cabia, por exemplo, acordar antes que o hóspede; oferecer roupa de cama e toalha limpas; um sabonete novo; não servir aquele pote de requeijão pela metade no café da manhã; assim por diante. Ao hóspede aconselhava-se uma visita breve (nunca mais que cinco dias); juntar os cabelos do ralo do chuveiro após o banho; fazer pelo menos uma feira; deixar gorjeta para a empregada; etc.

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Adoro quando os amigos vêm passar uns dias aqui. Capricho na limpeza da casa, desocupo um lado do armário, troco os lençóis, ofereço a toalha mais felpuda, sabonete phebo e creme dental novinhos, às vezes até escova de dentes. Não me incomoda o tempo que o amigo vai ficar - alguns dias, duas semanas ou seis meses, como da última vez.

No começo há um certo estranhamento, natural (talvez resquícios da nossa territorialidade animal ancestral) mas rapidamente as coisas fluem, harmonizam-se, a gente se acostuma e dá uma baita saudade quando o hóspede vai embora.

(Não serei hipócrita. Misturado à saudade também rola uma pitada de alívio. Creio que de ambas as partes).

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Tendo lido Danuza, evito certas gafes quando me hospedo em casa alheia. Ou, também acontece, cometo várias, por excesso de hospitalidade do hospedeiro.

Exemplos de gafes evitadas: sempre levo um presentinho para cada membro da casa, inclusive empregada doméstica; lavo a louça depois das refeições; faço a feira da semana; se houver clima, preparo ou ofereço um jantar em restaurante legal; fico no máximo 5 dias; etc.

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Mas, como sempre, as gafes são muito mais interessantes. Exemplos:

1. Passei dias maravilhosos em casa de amigas, no Nordeste. Gostei tanto, mas tanto, que dois meses depois voltei com um casal. Seis meses depois, retornei, dessa vez com o namorado. No mesmo ano repeti a dose, com a professora de tai-chi. Apesar da veemência das negativas (as amigas são excepcionais) eu tenho a leve impressão que abusei da hospitalidade delas.

2. (essa eu morro de vergonha, mas contarei assim mesmo) aconteceu nos primórdios da civilização, antes de ter lido Danuza. Foi também no Nordeste. Fui visitar um amigo. Em uma cidade pequena. Onde todo mundo conhecia todo mundo, todo mundo dava notícia da vida de todo mundo. A casa do amigo estava em reforma. O casamento do amigo estava em crise. O amigo se matava de trabalhar o dia todo e ainda me dava toda a atenção possível quando chegava do trabalho.

Ao contrário do amigo, eu estava no auge da galinhagem e da vagabundagem. Logo na primeira noite (depois de recusar o convite para jantar) fui bater pernas. Na praça, conheci X. Sem pensar nas consequências, levei X pra dormir comigo. Não podia imaginar que X trabalhava com o amigo. Tarde da noite X tinha que ir embora. Descemos a escada no maior silêncio possível. Havia um degrau solto. X tropeçou e rolou escada abaixo. O escarcéu acordou o amigo. Que olhou para X e para mim. O olhar mais reprovador do mundo e nenhuma palavra. Ao invés de colocar o rabo entre as pernas, pedir mil desculpas e partir no primeiro ônibus do dia seguinte, ainda fiquei uns dias. Como se nada tivesse acontecido. Resultado: o amigo me excluiu definitiva e merecidamente de suas relações.

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Todo esse preâmbulo para contar sobre Igor, meu hóspede atual. Lindo, fofo, gostoso, bem-humorado - um gato. Literalmente. Mistura de vira-lata e chartrô (é assim que se escreve?). Igor pertence à amiga citada no primeiro parágrafo, cujas duas semanas de hospedagem (enquanto trocavam-lhe a pia do banheiro do apartamento) transformaram-se em 6 meses.

Pois bem, Igor veio passar uns dias comigo.

No geral comporta-se bem. Por sua essência felina (e por ainda não ter lido Danuza), condescendo alguns comportamentos censuráveis: o forro da cama box arrancado, as escaladas ao topo da geladeira ou da coifa, o sono sobre meu casaco novo, as correrias destrambelhadas (junto com Zildinha). Mas há um comportamento que quase me tira do sério: Igor mia alto, às vezes durante toda a madrugada. Um miado sobrenatural, tipo de filme de terror, que reverbera pela casa e pode ser ouvido por toda a vizinhança.

Colocar o Igor para fora de casa é arriscado, pois ele pode fugir e nunca mais voltar. Trancar o Igor no quarto de hóspedes foi pior: o miado redobra, em volume e frequência.  Pensei em alternativas heterodoxas: Empacotar o Igor com muito jornal em uma caixa de papelão e selar com fita crepe fazendo aqueles buraquinhos pro bicho não sufocar; ou ministrar-lhe meio comprimido de maracujina com lexotan.

Claro que não farei nada disso. Abro-lhe um sorriso. Coço-lhe a nuca e as orelhas. Aconchego-o sob as cobertas. E peço aos deuses, com fervor, que transformem os miados do Igor em harpejos doces e melodiosos, em sussurros da pessoa amada para me embalar o sono, pelo menos até as seis da manhã.

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Tendo lido Danuza, concluo com toda categoria: como uma espécie de freguês, o hóspede sempre tem razão.

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