Albrecht Dürer |
A gente aprende na adolescência que em Sodoma rolavam as piores perversões sexuais. Sodomita é um dos sinônimos mais preconceituososos e pejorativos para gay. Totalmente errado. Trabalhando nos últimos dias com tantas imagens de corpos, cada um mais lindo que o outro (parecidos com os anjos que se hospedaram na casa de Ló), tive vontade de recontar a história.
Ló era sobrinho de Abraão e primo de Isaque, aquele da história do guisadinho de 2 semanas atrás. Sobrinho e tio eram sócios. Prosperaram na área do agronegócio em Canaã. Mas a queda do Dízimo desequilibrou o mercado. Economistas anunciaram crise sem precedentes. Para evitar o impacto, a diretoria da A&L anunciou uma reestruturação (desmentindo os boatos sobre cortes de pessoal) com o objetivo aumentar a competitividade da empresa e prospectar mercados. Ou seja, desfazer a sociedade entre Ló e Abraão. Cada um seguiu seu rumo.
Ló mudou-se para Sodoma, que não tinha sido atingida pela crise. O nível socioeconômico da população garantia a demanda e o consequente lucro. O único problema era o perfil do consumidor.
Além de exigente, o consumidor sodomita era terrível. Ganancioso, avarento, implicante, egoísta, boca suja, sanguinário, só para listar os defeitos menos graves. Comentavam as más línguas que os sodomitas eram xenófobos extremados. E cruéis. Ló nunca tinha visto povinho tão ruim.
Abre parêntesis.
Exemplo de xenofobia: Já ouviram falar na história do leito de Procusto? Procusto era um bandido da mitologia grega. Possuía uma cama de ferro, na qual fazia deitar os hóspedes. Se o convidado era maior que a cama, Procusto cortava-lhe os pés. Se era menor, esticava-o até o pobre ficar do tamanho da cama. Os sodomitas se divertiam em imitar Procusto. De preferência com turistas.
Exemplo de crueldade: Os sodomitas odiavam os pobres. Mendigo então, nem se fala. Davam esmolas gordas ao desavisado, moedas de ouro, notas de 100, até cheques. O pobre ficava feliz acreditando ter tirado a barriga da miséria. Batia de porta em porta, de mercearia em mercearia, de lanchonete em lanchonete. Os sodomitas, sem exceção, recusavam-se a vender o que quer que seja de alimento para o miserável. Que morria de fome. Depois de morto, roubavam-lhe a esmola.
Fecha parêntesis.
Apesar disso, Ló, como eficiente administrador, estabeleceu-se. Prosperou. As 2 filhas cresciam saudáveis. Namoravam 2 sodomitas legais. Pensavam em casamento. Ló era seletivo nas amizades. Evitava frequentar a galera do mal. Pegou amor à cidade.
Um belo dia um exército chefiado por 4 reis invadiu e saqueou Sodoma. Fez de Ló, família e funcionários prisioneiros de guerra. Tio Abraão soube do sucedido. Juntou 318 soldados e resgatou Ló.
A perspectiva de negócios no período pós-guerra prometia grandes ganhos. Por isso, ao invés de recomeçar a vida em um lugar mais light, quem sabe em Gomorra ou Zoar, Ló voltou para Sodoma. Errou feio.
Aí entra Javé.
Javé, todo mundo sabe, tinha criado aquilo tudo na época do Gênesis. Já destruíra a criação uma vez no Dilúvio. Mesmo assim a criação não tinha aprendido a se comportar. Em Sodoma então, nem se fala. Gomorra não ficava atrás. Bom, pelo menos daquela vez o problema era pontual. Bastava uma chuvinha de fogo e enxofre na região e resolvia-se o problema.
Porém, por consideração ao tio Abraão e por causa da boa conduta de Ló no meio de tanta iniquidade, Javé decidiu poupá-lo e à sua família. Enviou 2 anjos até o apartamento de Ló para avisá-lo da tragédia e providenciar a retirada.
Os anjos eram muito gatos. Tipo modelo de capa de revista gls, galã de novela das 7. Ló ofereceu um jantarzinho. Convidou os amigos íntimos e os futuros genros. O pessoal do condomínio logo soube. E doidos por uma maldade, chamaram no interfone. A fim de participar da festinha. De tocar terror. Detonar geral. Quando viram os anjos, aí é que ficaram loucos. Queriam por tudo serem apresentados.
Com a confusão no hall do elevador Ló se enrolou. Tentou negociar. Ganhar tempo até surgir uma ideia. Blefou. Ofereceu as filhas aos taradões e taradonas. Dessa forma, pensava, protegeria os mensageiros de Javé. Sem resultado. Vendo que a confusão aumentava, um dos anjos interviu. Sacou um superpoder do bat-cinto e cegou a turba. Enquanto isso, o outro anjo atendeu o celular. Era o chefe Javé. Impaciente. Mandando um recado para Ló. Que ele arrumasse logo as malas se não quisesse virar churrasco com o resto do povo de Sodoma.
Os anjos deram o recado. Que Ló fugisse para as montanhas. Sob nenhuma hipótese olhassem para trás. Mas Ló era teimoso. E impetuoso. Ao invés de obecer pianinho as instruções, solicitou a Javé transferir os negócios para Zoar. Javé acreditava no tino comercial de Ló. Autorizou. E desprogramou, sine-die, a destruição de Zoar.
Então Javé passou o resto da noite se divertindo. Atirando bolas de fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra. Tudo pipocava. Parecia ano-novo. Festa junina. Fase final de videogame.
Sem tempo para procurar as chaves da caminhonete, Ló e a família fugiram a pé. Só levaram o essencial: lanche para a longa caminhada, agasalhos, pois no deserto esfriava à noite e os fones de ouvido das filhas.
A fuga corria como o planejado. Exceto um detalhe. Lá pelo meio do caminho a esposa de Ló lembrou-se das joias. Largadas sobre a penteadeira. A burra se esqueceu do conselho de Javé. Pensou: uai, o que poderá acontecer se eu espiar? Virou-se na direção de Sodoma. Vislumbrou a destruição. Na mesma hora foi transformada em uma estátua de sal.
Crédito fácil, cadastro limpo, aplicações a longo prazo e energia fora do comum possibilitaram Ló restabelecer-se em Zoar. Mas faltava algo. Ele estava cansado de abrir negócio, prosperar e perder tudo. Desmotivado por não encontrar mão-de-obra especializada. Saudoso da esposa. Desiludido com o público consumidor de Zoar, tão do ruim quanto o de Sodoma. Ló pirou. À beira de uma depressão. Tomou ansiolíticos. Fez psicoterapia. Acupuntura. Hidroginásica. Musicoterapia. Nada resolvia. Um dia acordou virado num tetéu. Tinha que mudar de vida. Largou tudo. Tornou-se naturalista. Anticapitalista convicto. Meio hippie. Fundou uma comunidade natureba com as filhas. Em uma caverna. Nas montanhas.
As filhas piraram junto com o pai. Não era para menos. Duvido alguém não pirar depois de viver tanta história hard, uma atrás da outra, em intervalo de tempo tão curto: servirem de barganha para acalmar a turba de tarados; perderem o status de filhas de empresário; perderem a mãe virada em estátua de sal; mudarem-se para uma cidade desconhecida; segurarem a barra da depressão do pai; morarem em uma caverna úmida, desconfortável, escura, isolada e de difícil acesso; e, pior, permanecerem - sabe-se lá até quando - solteiras e virgens.
A piração na comunidade durou alguns anos. Tempo suficiente para elas se acostumarem. Esquecerem-se do resto do mundo. Ao ponto de acreditar serem elas e o pai os únicos seres humanos sobre a face da terra. Tinham pouco o que fazer nos longos dias na montanha. Como diz o ditado, cabeça vazia é oficina do diabo. Encasquetaram com a ideia de perpetuar a descendência de Ló.
Um belo dia, passeando pela encosta, encontraram um cesto. Dentro, meia dúzia de garrafas de vinho. Vinho bom, boa safra, produzido pela vinícola de Noé há mais de 5 séculos, dizia no rótulo. Perfeito para por em prática a ideia que vinham matutando.
Prepararam um jantar macrobiótico. Serviram vinho. “Bebe mais, papai, afinal de contas não é todo dia que a gente acha meia dúzia de garrafas de vinho do tetravô Noé”. As filhas embriagaram Ló.
Quando Ló estava pra lá de Bagdá elas diminuíram a luz na caverna. Ligaram o som, um lounge meio oriental. Dançaram. Dança do ventre. Da espada. Da garrafa. Dos 7 véus. Com o intuito que nem precisa dizer. Bêbado como estava, A ficha de Ló não caiu. Nem se tocou que aquelas gatas eram suas próprias filhas. Quando viu, Inês era morta. Fato consumado. Ló tinha transado e engravidado as meninas.
Os filhos-netos de Ló originaram as nações dos amonitas e dos moabitas, aparentados aos povos árabes.
2 comentários:
Muito boas essas suas releituras! São viciantes, mas não são drogas...kkkk São ótimas!
Glads, muito bom! Parabéns!
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