terça-feira, 5 de julho de 2011
Noé
A história da Arca de Noé todo mundo conhece. Mas uma passagem eu descobri há pouco tempo. Vendo reproduções dos afrescos da capela Sistina. Uma cena pouco edificante: Noé embriagado. Certeza de que ele tinha aprontado naquele dia. Pesquisei. Milhares de sites religiosos, sociológicos, psicanalíticos, místicos, ocultistas no Google. Nada desabonador. A conduta de Noé sempre foi ilibada e irrepreensível. Ou seja, a carraspana foi a exceção para confirmar a regra.
Comecemos pelo Gênesis. Ou pela Wikipedia: Noé era filho de Lameque, que era filho de Matusalém, que era filho de Enoque, que era filho de Jarede, que era filho de Malael, que era filho de Quenã, que era filho de Enos, que era filho de Sete, que era filho de Adão, que era filho de Javé. Precisa dizer mais?
Noé nasceu na cidade de Churupaque. Sério, o nome da cidade era esse. Foi um bebê diferente: pele muito branca, tenra, bochechas rosadas, cabelos loirinhos e cacheados. Até aí nada demais. Mesmo no meio do povo moreno e rude do deserto. O esquisito estava nos olhos. Quando ele os abria, a tenda toda se iluminava. As más línguas apócrifas lançaram o boato (não confirmado) de tratar-se de filho de anjo.
A missão de Noé todos sabem: repovoar o mundo depois do Dilúvio.
Javé estava irritado com sua obra - a terra e seus habitantes. Ao invés de amassar tudo como se fosse massinha de modelar e recomeçar do zero, optou por uma solução criativa: Acabar com o mundo com um toró que duraria 40 dias e 40 noites.
Porém o precavido Javé era avesso ao retrabalho. Quis preservar pelo menos os moldes melhores.
Javé curtia o jeito legal de Noé. Ordenou ao sangue-bom construir um barco de 3 andares chamado Arca; encher a Arca com esposa, filhos & noras, 7 casais de cada espécie de animal cosher e 1 casal de cada não-cosher (só não foram os peixes, porque na chuva eles nadavam de braçada); e renovar a criação.
Choveu, choveu, choveu. A roupa na Arca não secava. As paredes umedeciam. Os armários mofavam. Em torno dela inundações, deslizamentos de encostas, desabamentos de palácios, desabrigados alojados nos templos e nos anfiteatros. Uma trabalheira homérica e inútil para bombeiros, voluntários, Defesa Civil. Sem resultado - todo mundo morreu. Menos a galera da Arca.
Cabe ressaltar os dotes estratégicos e administrativos de Noé durante o Dilúvio: reservar comida para tanto tempo e tantas bocas; manter paz & harmonia na arca superlotada (a boa vizinhança entre leão e cordeiro, entre serpente e camundongo, entre raposa e coelho); minimizar o estresse da esposa (a roupa úmida, o piso da cozinha sempre molhado, as goteiras); contemporizar as crises de relacionamento entre os filhos e respectivas esposas. Dentre outros.
Depois de 40 dias parou de chover. A Arca encalhou. Na Turquia. Noé mandou a pomba monitorar o terreno. A pomba voltou com o ramo de oliveira. Sinal de que a água baixava. Alguns dias depois mandou a pomba em nova missão de reconhecimento. A pomba não voltou. Sinal de que estava tudo bem. Ou então que tinha sido abatida.
Então surgiu um arco-íris. Outro sinal? Noé arriscou. Todos desceram da Arca. E o mundo começou a ser repovoado.
Depois Noé aposentou-se. Tinha completado 565 de contribuição previdenciária (a qualidade de vida naquela época era excepcional). Noé recusou-se a frequentar com a esposa o grupo da Melhor Idade. Para não ficar à toa aprendeu a cultivar uvas e produzir vinho. Vinho do bom. Finalmente chegamos onde o primeiro parágrafo quis nos levar: ao porre de Noé.
Uma bela tarde, entediado e sozinho na tenda, Noé resolveu experimentar o vinho que produzia. Só um golinho. No começo achou horrível, afinal, nunca tinha provado alcool. Quando viu, tinha entornado 2 garrafas. Aí começou a aprontação. Se é que se pode chamar aquilo de aprontação. O vinho esquentou o sangue do idoso. Noé sentiu calor. Tirou a roupa. Não havia problema, estava sozinho em casa, o pessoal só voltava à noite. Nuinho como estava, dormiu. Esse foi o vacilo.
Cam, o caçula, voltou da aula mais cedo. Entrou em casa, jogou a mochila na almofada e deu de cara com o pai. Peladão. Roncando como um nababo. Ao invés de ficar na dele, cobrir o pai com a capa do sofá e fingir que nada tinha acontecido, Cam resolveu zoar com Noé. Correu para contar o mico do velho aos irmãos Sem e Jafé.
Os irmãos repreenderam o caçula. "Nada a ver, respeite os mais velhos", eles disseram. Entraram na tenda de costas, os rostos virados. Não se atreviam a olhar a nudez do pai. Cobriram Noé com a colcha de seda mais fresquinha (fazia um calor horroroso no deserto) e se retiraram calados.
Imaginem a ressaca física e moral quando Noé acordou. A boca seca. A dor de cabeça. O gosto de guarda-chuva. O mau humor. Quando soube da estripulia do caçula, enfureceu-se. Naquela época o diálogo entre pais e filhos era curto e grosso: Bênção (vide a história de Jacó) ou maldição. A maldição de Noé incluía o escurecimento de pele de Cam e de sua descendência; e a submissão destes aos irmãos e descendentes dos irmãos mais velhos Sem e Jafé. Depois disso Noé nunca mais bebeu. Nem bombom de licor.
E fim.
Fim, não. Os descendentes de Jafé tornaram-se os povos europeus. Os de Sem os semitas ou hebreus. Os de Cam os povos africanos. A maldição de Noé serviu como uma das desculpas esfarrapadas aos nossos bisavós, descendentes de Sem e Jafé, para justificar a escravidão dos descendentes de Cam no Brasil e no resto da América.
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6 comentários:
Deliciosa revisita à história de Noé! Beijos!
Divertidíssimo... muito bom! Gosto muito dessas releituras! Lembrei do Livro Caim, de Saramago, que particularmente adoro.
Divertidíssimo o texto. Lembrei de Saramago, e seu livro Caim, que particularmente adoro. Muito Bom o texto!!!
adorei
adorei
Uma leitura muito divertida, e um excelente censo de humor. Parabéns!
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