domingo, 14 de agosto de 2011

Toni

Vou pular de contar uma parte que demorou bastante a passar e aconteceu pouca coisa. Mamãe saiu do hospital e papai foi transferido pra trabalhar mais perto da gente. Ele me pegava no primeiro final de semana de cada mês. Ele vinha no sábado de manhã. De carro novo. Vovó arrumava minha mochila. Mamãe não saía do quarto. Ela chorava na hora de se despedir. Papai esperava no carro. Eu esperava mamãe parar de chorar e de me abraçar. Demorava. Papai me trazia mais cedo no domingo porque na chácara a gente dormia antes das dez da noite. Eu ajudava papai a dirigir na estrada de terra. Depois de passar a porteira ele me colocava no colo e deixava eu segurar o volante. Papai se mudou pra um apartamento em um prédio com elevador. O apartamento estava bagunçado. Papai arrumou um colchão na sala. A gente assistia televisão deitado no colchão. Papai perguntou se eu queria morar com ele. Eu ia ter um quarto só pra mim, ele ia me dar um videogame, eu ia brincar com os outros meninos do prédio. Eu não tinha certeza se queria. Ele ia me deixar passar os finais de semana na chácara. Se tudo desse certo ele me matriculava na escola. Eu decidi morar com ele quando fizesse sete anos. Eu nem tinha seis anos e meio quando mamãe foi internada. Ela não ia sair tão cedo. O juiz mandou papai cuidar de mim enquanto ela não se curasse. Por isso papai mudou-se pra mais perto. Eu ia morar com papai pra sempre. Papai comprou o videogame. Instalou na sala de televisão. Eu só sabia jogar um jogo. Hugo me ensinou os outros. Hugo é um amigo do papai. Eu conheci Hugo na época que papai me pegava nos fins de semana. Hugo passava o fim de semana com a gente. Hugo é legal. Eu gosto dele. Papai também gosta. Eu tomo banho sozinho. Papai me ensinou a enxugar o banheiro. Hugo sai do trabalho mais cedo pra jogar videogame comigo. A gente espera papai chegar. Depois da janta a gente assiste televisão deitado nas almofadas. Às vezes eu durmo e papai me acorda pra eu ir deitar na cama. Papai gosta de conversar. Ele quase não tem tempo, ele sai cedo e chega tarde do trabalho. Papai nunca briga comigo. Ele só não gosta quando eu entro no quarto dele sem bater na porta. Eu já vi várias vezes Hugo deitado na cama. Um dia eu perguntei por que Hugo entrava no quarto sem bater e deitava na cama. Porque papai dormia em cama de casal se não era mais casado. Ele respondeu que dormia na cama de casal porque gostava de espaço. Que Hugo podia ficar lá porque era adulto. Quando eu crescesse, ele me explicava melhor. Esperei ele dizer mais alguma coisa, papai gosta de explicar tudo, mas ele não explicou mais nada. No outro dia papai deixou eu e Hugo no shopping. Combinou lanchar com a gente mais tarde. Não dava tempo de ver um filme. A gente olhou as vitrines das lojas de roupa. Hugo gostava. Hugo comprou dois sacos de batatas fritas, um pra ele outro pra mim. A gente foi na Divertilândia. Tinha fila em todos os brinquedos. A gente não foi em nenhum. Estava na hora de encontrar papai na praça de alimentação. Papai queria conversar. Perguntou se eu preferia lanchar naquela hora. Eu não sentia fome por causa das batatas fritas. Era melhor comer depois. Só não podia demorar demais porque eu não sabia a hora que ia sentir fome. Hugo foi dar uma volta. Eu preferia ir com ele. Quando papai fica sério é meio chato, eu não gosto de ouvir. Ele fala muitas palavras. Papai me chama a atenção quando percebe que eu estou distraído. Aí começa a explicar tudo do começo. Eu descobri um jeito dele não perceber. É só balançar a cabeça. Ele continua, ele pensa que eu entendi e eu não preciso ter medo de pensar outras coisas. Ele começou a falar. Se eu não entendesse, eu pedia pra ele explicar. Se mesmo assim eu não entendesse, eu compreendia quando fosse mais velho. Se eu interrompesse ia demorar mais de uma hora, Hugo voltava e a conversa ainda não teria terminado. Ficava tarde, eu ia sentir sono e prestava menos atenção. A conversa ia ser difícil. Eu tive medo dele falar sobre mamãe. Ele nunca falava dela. Eu pensei que ele ia me contar que ela tinha morrido ou que foi internada outra vez ou então que ele não era meu pai de verdade, que eu tinha sido adotado no orfanato. Não era nada disso, ainda bem. Ele falou que eu devia saber certas coisas pra entender quem ele era de verdade. Ele amava mamãe. Por isso se casaram. Eu nasci por causa do amor deles. Eles gostavam de mim. Não sei se era verdade, Pedro me explicou que os filhos nascem depois que o pai e a mãe fazem sexo. Eu não sei bem como é, devo lembrar de perguntar. O amor do papai por mamãe tinha acabado. Por isso eles se separaram e mamãe adoeceu de tristeza. Ele mesmo tinha ficado triste, só não adoeceu. A separação tinha sido melhor pra nós três. Eu não me lembrava, eu tinha só cinco anos na época. Papai mudou-se pra ganhar dinheiro pra pagar a minha pensão. Pensão era um dinheiro que o juiz mandava ele depositar no banco, na conta da mamãe. Com o dinheiro da pensão, mamãe comprava leite em pó, brinquedos, pagava o médico e essas coisas pra criança crescer com saúde. Papai parou de falar. Eu pensei que tinha acabado. Não tinha. Era pra mudar de assunto. Existiam muitos tipos de amor além do amor do marido e da mulher ou do amor dos pais pelos filhos. Por exemplo, uma mulher podia amar outra mulher. Ou um homem podia amar outro homem. Quem amava outra pessoa do mesmo sexo podia namorar, morar na mesma casa, dormir na mesma cama, poderiam até se casar. Não era errado. O amor era o mais importante de tudo pra qualquer pessoa do mundo. Eu nunca tinha ouvido falar sobre homem que namorasse outro homem. Eu pensava que homem só podia namorar mulher. Pedro tinha uma fotografia da namorada dele na carteira. A namorada de Pedro morava em outra chácara. Ele se encontrava com a namorada todo domingo. Vovó tinha um portarretratos com a fotografia do meu avô Antônio, o marido dela, pai do papai, eu já contei que meu nome era Antônio por causa de vovô Toninho, que ele morreu antes de eu nascer. Eu só não me lembrava se mamãe tinha um retrato do papai. Eu não entendia bem a explicação. Não deu tempo de falar. Papai perguntou se eu gostava de Hugo. Eu gostava. Hugo vivia lá em casa, brincava comigo, me ensinava as dicas pra passar de nível no videogame, me dava presentes legais. Papai gostava de Hugo. Hugo gostava de nós dois. Eles eram namorados. Perguntou se eu achava bom Hugo morar com a gente. Eu falei que no meu quarto cabia outra cama. Papai riu. Eu me senti meio bobo. Eu entendi porque papai tinha sorrido. Hugo já dormia junto com ele na cama de casal. Hugo era o namorado do papai. Foi isso que papai disse. Hugo ia dormir na cama de casal junto com ele. Eles se amavam. Era como se eles casassem. Do mesmo jeito como papai se casou com mamãe. Eu ia ser uma espécie de filho deles. Eu perguntei se eles iam ter outro filho. Só se fosse adotado. Porque homens não engravidam. Mesmo sem entender direito, era ao mesmo tempo bom e esquisito papai namorar o Hugo. Hugo ia morar lá em casa, a gente ia brincar mais tempo. Esqueci de pedir pra ele explicar como os filhos nasciam, se era mesmo depois dos pais fazerem sexo ou se era por causa do amor. Não sei se Hugo também ia ser meu pai. Eu tentei lembrar tudo pra poder explicar a mamãe e vovó no sábado. Papai falou que eu podia tentar, mas era difícil fazer as duas entenderem. Eu devia explicar de jeito que mamãe não ficasse triste e voltasse pro hospital. Papai podia fazer as pazes com a mamãe pra me ajudar a explicar. Se mamãe arranjasse um namorado ou uma namorada talvez ela entendesse, talvez ela se curava de vez. Papai riu. Ia conversar de novo. Meu sono aumentou. Abri a boca pra bocejar. Por sorte Hugo chegou. Ele olhou pra papai e papai olhou pra ele. Eles sorriram. Eu olhei os dois e ri também. Eles riram pra mim. Eles estavam sem graça. Hugo passou a mão na minha cabeça. Deu a volta na mesa e passou a mão na cabeça do papai. Eu senti um pouco de vergonha, parecia que todo mundo da praça de alimentação olhava pra gente. A conversa tinha terminado. Hugo piscou pra mim. Hugo tinha visto um tênis na loja de esportes, ia me dar o tênis de presente quando eu fizesse oito anos, ou antes. Ele estava com fome. Pediu um sanduíche. Papai perguntou se eu estava com fome, se eu não queria dividir uma pizza com ele. Fiquei na dúvida de pedir pizza ou sanduíche igual ao de Hugo. A gente esperou um tempão pra pizza chegar. O assunto tinha acabado. O sanduíche de Hugo veio antes, com refrigerante, torta de maçã e um saquinho com um brinquedo de montar. Hugo me ofereceu um pedaço, eu não queria. Eu queria o brinquedo. Eu estava curioso pra abrir o saquinho. Era um ovo de plástico com um dinossauro verde dentro. Não gostei. Era um brinquedo pra criança pequena. Eu já estava crescido. Comi só uma fatia da pizza. Deitei a cabeça no colo do papai. Pensei no tênis. Lembrei de perguntar com qual idade a gente deixava de ser criança. Quando eu crescer, eu quero ter um amigo igual a Hugo.

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