quarta-feira, 24 de outubro de 2012

diário

Chego bem cedo no trabalho. Para não ser obrigado a responder os bons dias e nem ouvir os comentários sobre a programação televisiva do final de semana. Coloco os fones de ouvido e me isolo na tela do computador. Só ouvindo Etta James para consertar o dia que mal começa.

Perdi o sono: dor-de-cabeça e câimbras noturnas que nunca tive (sinais da idade). Estresse e pensamentos repetitivos. Lembrança, na madrugada, de compromissos bobos. Sonhos com situações não resolvidas.

Marcas irreversíveis das eras: rugas nos cantos dos olhos; pele-de-galinha nas mãos e pescoço; vísceras inchando por dentro; desejo e libido anulados. Nem glúteos bem proporcionados, peitorais lisos na piscina, cortes de cabelo redesenhando pescoços – nada me tira do sério.

Bloqueio criativo. Escrevo lasso. Leio: teoria literária, vaidades, Onetti. Resgatei, da adolescência, as maravlihosas Metamorfoses, de Ovídio.

Na internet eu me especializo em aberrações. Desde comentários preconceitosos de leitores de jornais on-line sobre crimes e assassinatos até banalidades da vida das celebridades. Recolho amostras dos absurdos que o ser humano é capaz de fazer, pensar e se expressar.

Além disso, pesco exotismos. Ontem, li sobre um santuário de gorilas, no coração da África. Trechos do diário de Sontag. Epigramas do velho Cioran. Hoje vi paisagens que simulam pinturas. E uma baleia a imitar a voz humana. Depois ouvi Jeff Buckley. 

Preciso estudar inglês. Consertar o telhado da casa. Levar o cão ao veterinário. Cuidar das costas. Fazer acupuntura. Me inscrever no curso de gastronomia. Preparar o almoço da mamãe que faz 100 anos. Satisfazer instintos sublimados. Remodelar a construção das frases. Riscar pleonasmos. Maneirar nos clichês e nos vícios de linguagem. Preciso pedir ao doutor dose extra do elixir para suportar os dias que se acumulam.


(trecho de carta-e-mail a uma amiga)

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