(foto: Mila Petrillo) |
O espectador senta-se diante do espelho. Ele vê, nítido, o quarto refletido no vidro. Ouve bolhas, cigarras, pios, música das estrelas. Mais nada. A não ser o espaço vazio onde ele deveria se refletir.
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De acordo com o Dicionário dos Símbolos, especular era observar o céu e os movimentos das estrelas com o auxílio de um espelho (speculum). Sidus (estrela) deu considerar, que significa olhar o conjunto das estrelas.
Então: diante do espelho o espectador especula. Para considerar. Será ele a silhueta difusa, aquele que não se vê no vidro? Ou será ele também a sequência de Outros, os personagens-Eu que surgem e ocupam o lugar do reflexo, do outro lado do espelho? Eles misturam-se. O espectador defronta-se com a impossibilidade de distinguir. E se embaça ao considerar sobre o espelho.
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O conto “O Espelho”, de Machado de Assis, é o ponto de partida para a instalação concebida por Simone Reis e Iain Mott. Trata-se de uma estória dentro da estória. Cinco senhores cinquentões especulam sobre a consistência da alma. Segundo Jacobina, que narra um episódio de seu passado, cada ser humano possui duas almas: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro.
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O Espelho é um espetáculo. No sentido de Farsa, Teatro, Encenação. Ver e ver-se – e quem sabe, refletir-se por meio de símbolos, códigos, imagens, sons, palavras, disfarces articulados, no ator, performer, encenador – o Outro.
Também é circo, é burlesco. Pois apesar da tecnologia sofisticada, Iain Mott faz surgir os personagens-Eu criados por Simone Reis por meio do jogo de vidros/espelhos chamado pepper-ghost, utilizado no teatro inglês do século XIX e nas apresentações da mulher-gorila dos circos e dos parques de diversão.
(O burlesco e circense foram captados ereproduzidos com maestria na cenografia de Nelson Maravalhas).
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Por falar em Mulher-gorila...
Seriam os personagens-Eu de Simone Reis desdobramentos polidos, adestrados, educados, adequados, sobrepostos e humanizados da burlesca mulher-gorila que habita o espectador? O vidro-jaula que separa o espectador do monstro há de conter a fúria de Monga, caso falhe algum comando na casa das máquinas que funciona nos fundos da instalação?
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Ao adentrar a instalação, o espectador não deve cometer o mesmo erro da estouvada Alice, de Lewis Carroll, de impor as suas próprias razões ao aparente disparate que prevalece do outro lado do espelho.
Da mesma forma que rainhas, sufis, santas, divindades, cangurus salteadores, suicidas – e tantos outros personagens-Eu podem não ser apenas aquilo que aparentam, a lógica de O Espelho pode estar disposta em camadas e mais camadas de i-lógica.
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Ao invés do espectador perguntar ao espelho (como a madrasta má): “existe alguém mais bonita do que eu?”, são os personagens-Eu questionam a vaidade, os valores, os medos, os rompantes, a sanidade mental do espectador. São eles que perguntam: “você acha que eu sou louca?” “Você me acha bonita?”
O Espelho é puro teatrinho. Brincadeira de criança. Jogo ao qual Simone Reis e Iain Mott convidam o espectador a participar. O espectador não é mais um dos cinquentões do conto de Machado. É criança a transformar a realidade palpável: usa a coroa de cartolina e papel laminado da rainha, da santa; fuma o charuto-de-alface do magnata; veste o cobertor velho virado em manto sagrado; percute as castanholas-chocalho de bebê; disfarça-se com óculos, nariz e bigode postiço; atira com revólveres de espoleta e provoca suicídios, assassinatos, golpes de estado, revoluções.
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Em O Espelho fica evidente a maturidade da atriz e performer Simone Reis. Ao compartilhar a direção com Iain Mott, combinam-se o arrebatamento e a fleuma com resultado surpreendente. As contradições aparentes são recobertas por uma camada delicada de poesia. Quase luz. Quase aura.
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Zé Celso Martinez coloca Simone Reis no patamar das cômicas-zen Regina Casé e Dercy Gonçalves: O espectador-eu ampliaria a lista. Com os nomes das eternas juradas da tevê brasileira, referenciais estéticos e antifilosóficos com quem Simone Reis certamente aprendeu, diante de outra tela/espelho: Elke Maravilha; Aracy de Almeida; Wilza Karla; Márcia de Windsor; Maria Alcina. Cada uma segurando um lírio branco (ou uma rosa vermelha ou amarela, de plástico) distribuída pelo rabugento Pedro de Lara.
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Para concluir, o espectador pode recorrer ao sufismo e ao Tao: o espelho é o atributo da rainha. O homem se utiliza do homem como espelho.
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(O Espelho é uma instalação teatral mostrada na Galeria de Artes Van Gogh, em Sobradinho, de 21 de setembro a 21 de outubro, e no Foyer do Teatro Newton Rossi, em Ceilândia, de 26 de Outubro a 26 de Novembro).
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