segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

diário gerúndio 8

espelhando o insondável do outro. bebendo o elixir da juventude até a última gota. desmarcando o chá com o chapeleiro louco & a lebre de março. mascando cogumelos venenosos & alucinógenos com a lagarta nonsense. destilando cicuta & incompreensões com o filósofo da hora.  

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desabando com os edifícios do centro velho. dançando no baile funk. sambando com clementina & jovelina & a dama do encantado sobre os escombros. recebendo marisa-monte em gotas homeopáticas & arquivos compactados. redesenhando a rota dos tumbeiros. cantarolando adeus batucada até o dia raiar. implorando o pronto restabelecimento do ídolo dos mal-amados.

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restaurando elos perdidos. catando pérolas espalhadas pelo chão de ladrilhos. dando porcos às pérolas. teclando horrores enquanto seu lobo não vem. esperando a chuva passar. esperando o maremoto. dando um rolé em jericó & reforçando as muralhas & esperando as trombetas.

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escrevendo pornografia nos intervalos. engolindo la leche buena toda en mi garganta. contabilizando o haver & o dever. preenchendo a planilha do ainda-não-realizado. avistando o descortinar dos maremotos da sacada do sobrado da velha são salvador.

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arrancando matinhos. plantando avencas. despetalando girassóis. bem-me-querendo. mal-me-querendo. bem-me-querendo. desmascarando os ídolos de pés-de-barro. desbaratando a quadrilha da autocomiseração.  extirpando os hífens & as aliterações.

mariposa fora de foco

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

os mortos-vivos (parte 15)

As lembranças, as saudades, as reminiscências, as mágoas revividas, a ausência irrevogável do filho, da irmã caçula, da esposa, da avozinha, do amante, perdidos, e suscitadas pela presença deles, os mortos-vivos. O temor implícito, o confronto com a fatalidade, a finitude palpável, o efêmero, o derradeiro, o urgente dos dias contraposto ao vagar irrestrito da morte, tão semelhante à clausura de se vagar no vivido, como única diferença a eternidade. As entranhas revolvidas, o embrulho no estômago, a ânsia de vômito, a náusea, provocados pelo cheiro de terra, de naftalina, de formol e de carne em decomposição. O pavor irracional ao cruzar inadvertidamente com um deles no ermo, nas bermas, nas estradas desertas, hesitando às margens dos córregos, protegendo-se do sol sob as pontes, no sopé dos morros. A simples visão, a qualquer hora do dia, de grupos deles, crianças, velhos e velhas, homens, mulheres, como se fossem famílias, se famílias pudessem constituir, remexendo os monturos de lixo, arrancando com as unhas as cascas das árvores, debruçados sobre a carniça, ou andando em círculos, cambaleantes, ou parados, oscilando, emitindo um som oco, grave, monocórdio, mais parecido com um zumbido, confundidos pelo escuro da noite ou da madrugada. O arrepio ao se cruzar o olhar com o olhar de um ou outro deles, na praça, em um beco escuro, transeuntes extraviados sob a chuva, olhar opaco, o azul esmaecido das pupilas quase tão brancas quanto as córneas, exceto pelo brilho vermelho, esvaído, brilho não, melhor seria fosforescência avermelhada, à guiza de íris, no centro das pálpebras turvas, quase indistinguíveis. Enfim, todos esses motivos, todas essas razões juntas, separadas, ou combinadas, tornou insuportável, repulsiva, odienta mesmo a presença deles, os mortos-vivos, o verdadeiro e único, o maior de todos os incômodos, não para nós, os mais pequenos, pois que a nós não nos era permitido vê-los, mas para o restante dos outros, que se diziam vivos, e dentre eles os nossos irmãos mais velhos.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

diário gerúndio 7

tomando o vinho amargo da saudade. batendo à mesma porta. evitando comportamentos recorrentes. seguindo o conselho das cartas-que-não-mentem-jamais. desarmando auto-arapucas. estudando a sintaxe & a gramática das frases não-ditas. endereçando declarações de amor & pedidos de casamento. desobstruindo ouvidos moucos. cortando os pulsos da insistência. apontando o dedo no próprio nariz. desencantando o príncipe. procurando te esquecer.

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programando férias na ilha da fantasia. desfazendo a mala das desculpas. comendo siriguelas. dobrando o cabo da boa esperança. engarrafando mensagens para lançar no mar revolto. caminhando & cantando & escrevendo versos na areia da praia. rascunhando minutas de cartas de amor. rabiscando bilhetes de despedida.  vestindo o colete salva-vidas. ouvindo arto lindsay. contando os minutos para o próximo naufrágio.

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sambando. ouvindo rock'nroll. assistindo à agonia da mariposinha de asas douradas. vestindo o camisolão de anjo &/ou a ceroula de renda &/ou o avental com gola de marinheiro sem nada por baixo. descongelando os restos do pernil & das nádegas do garoto-elástico. fornicando pelos cantos. ordenando o tamanho das formas fálicas. destemperando o frango assado. contando vantagem. cozinhando para o banquete dos mortos-vivos. perscrutando a alma do insensível. 

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revisitando as narrativas parentais. removendo o limo das letras maiúsculas dos nomes dos ancestrais. gravando adjetivos & advérbios nos mármores das campas. esmerilhando frases para o próximo necrológio. recebendo augusto dos anjos na mesa da jurema.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

os mortos-vivos (parte 14)

Enfim, quando os mortos-vivos se multiplicaram, no decorrer dos meses, sempre pelas incontáveis, indescritíveis, incríveis, impossíveis, improváveis, porém inevitáveis causas, naturais ou artificiais, suaves ou violentas, sofridas ou indolores, comuns ou trágicas, previstas ou antecipadas, os ataques cardíacos, os edemas pulmonares, as paralisias cerebrais, os cânceres e as demais enfermidades, a velhice dos velhos, a miséria, a fome, o frio e as mortes provocadas pelos próprios vivos, a tristeza, a dor, os suicídios, os assassinatos, os acidentes automobilísticos, os desabamentos, as mortes provocadas pela força descontrolada da natureza, tempestades, enchentes, deslizamentos, a gripe, a febre, as quantas e tantas razões de se morrer. Enfim, por alguma razão inexplicável morriam os vivos sem morrer, ou reviviam os mortos sem viver, dependendo do ponto de vista, incabível atribuir pontos de vista ou digressôes aos mortos-vivos, uns pobres, uns coitados, que literalmente não tinham onde cair mortos, nada disso importava a eles, os mortos vivos, explicações e justificativas cabiam a nós, os vivos, mesmo que toda a explicação, nem toda justificativa, toda causa e efeito, aos vivos não evitaríamos o fato, o fado, o destino, a certeza de que, cedo ou tarde, a nós bastava morrer, como para o morto bastou estar vivo. Enfim, depois que os mortos-vivos se multiplicaram, a ponto de primeiro se igualar, e rapidamente superar em muito a população dos vivos, não havia cova, túmulo, cripta, campa, sepultura para o repouso, nem número suficiente de coveiros que os mantivessem, que os contivessem, durante o dia, circunscritos aos muros dos cemitérios, os mortos-vivos se multiplicavam, vindos de sabe-se lá onde, mulheres, homens, crianças brotando da terra, pelas estradas, pelas encostas dos morros, esbarrando com os vivos, tropeçando nas ruas de terra batida, revolvendo os monturos, batendo com as caras nos vidros das janelas, foi como uma invasão, uma revolução silenciosa da massa acéfala, do rebanho sem pastor, da horda desgovernada, manada desnorteada, desprovida de qualquer razão ou explicação, aos mortos-vivos não cabia explicações.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

os mortos-vivos (parte 13)

No começo, quando ainda eram poucos, os mortos-vivos somente saíam das sepulturas à noite, mãos descarnadas brotando da terra, apoiando-se nas bordas das covas, cravando as unhas nos troncos dos choupos, dos ciprestes, em volta dos túmulos, nas ranhuras, deslocando as lápides, as campas, o som do metal dos ferrolhos, dos cadeados das criptas destrancados. Caminhavam cambaleantes, estropiados, inofensivos, pelas aleias, em filas indianas que se avolumavam, na direção do portão de ferro da saída dos cemitérios e se espalhavam, vagando sem rumo pelos monturos de lixo, sobre carcaças de bichos mortos, cavoucando buracos nos cupinzeiros, roubando ovos nos ninhos, ou mesmo apenas andando, desnorteados, em círculos alguns, em elipses mais ou menos abertas outros. A alguns dava bater-se nas vidraças das casas que habitavam quando ainda eram vivos, conduzidos talvez por um resquício de memória, ou pelos cheiros familiares, do caldeirão de sopa, do sabão em pedra, do toucinho defumado dependurado nas traves da cozinha, ou atraídos pelas luzes das velas, ou pelo próprio reflexo nos vidros. Outros rodavam, trôpegos, em volta dos candeeiros dependurados nos postes da praça nas vilas, tentando alcançar os insetos, os besouros, as mariposas. Ao alvorecer, como se por um sinal da natureza, o brilho dos primeiros raios do sol, o gorjeio dos primeiros pássaros, como se atendessem ao chamado, ao apito ultrassônico, o ressoar da campainha do relógio interno, quase ao mesmo tempo os mortos-vivos interrompiam-se, largavam o lixo catado, cuspiam o pedaço de carniça, a casca da árvore, abandonavam as larvas, os cheiros familiares, os farrapos das lembranças, deixavam quebrar-se nas mãos os ovos roubados, engoliam os torrões de barro, e de onde estivessem voltavam suas cabeças na mesma direção, de onde tinham vindo, no começo da noite, e reagrupavam-se, em filas, primeiro desordenados, atropelando-se, para aos poucos se ajeitarem, o lugar de cada um, as distâncias entre uns e outros, horda caminhando, lentos, sob a contraluz do amanhecer, pelas estradas desertas, pelas encostas dos morros, ou mesmo abrindo trilhas pelo mato, de volta até os respectivos túmulos nos cemitérios.

sábado, 14 de janeiro de 2012

os mortos-vivos (parte 11)

Ocorreu no intervalo de tempo entre o apagar das luzes, no instante em que a aba do chapéu de nosso pai tocou a palma da mão erguida de nossa mãe, e o em que as luzes reacenderam, imprevistas, ofuscando as nossas pupilas acostumadas ao escuro. Não durara mais que hora ou duas, no máximo, e nesse intervalo, fosse possível, provável ou exequível, teria passado, já, a noite de natal, teria decorrido a eternidade, quando nossa mãe abriu a boca para falar.

os mortos-vivos (parte 12)

Para nós, os mais pequenos, os mortos-vivos só existiam quando, proibidos que éramos, por nossa mãe, de nos levantar da cama, até o término da distribuição dos presentes, normalmente à hora do almoço, nossos rostos amassados no vidro da janela do quarto, nós os víamos, vinte ou trinta, velhos e velhas, homens, mulheres, crianças, na manhã chuvosa da véspera do natal, no gramado entre o curral e a varanda da casa, de pé, imóveis, bamboleando, emitindo um som contínuo, abaixo do tom, quase um zumbido. No entanto, viemos a saber depois, aqueles eram uma parcela ínfima, composta por familiares falecidos, amigos, agregados, empregados, antigos conhecidos. Os mortos-vivos eram centenas, milhares, a perambular pelas estradas, pastos, trilhas de gado ao sopé dos morros, debaixo das pontes, às margens dos córregos, de fazenda em fazenda, nas portas das igrejas e dos armazéns, nos povoados, e somente se distinguiam dos vivos pelas roupas um pouco fora de moda e pelo cheiro de cânfora, formol, naftalina, misturado ao da carne em decomposição e, à noite, pelo brilho fraco, avermelhado, dos olhos, nos fundos das olheiras quase negras.