terça-feira, 17 de janeiro de 2012

os mortos-vivos (parte 13)

No começo, quando ainda eram poucos, os mortos-vivos somente saíam das sepulturas à noite, mãos descarnadas brotando da terra, apoiando-se nas bordas das covas, cravando as unhas nos troncos dos choupos, dos ciprestes, em volta dos túmulos, nas ranhuras, deslocando as lápides, as campas, o som do metal dos ferrolhos, dos cadeados das criptas destrancados. Caminhavam cambaleantes, estropiados, inofensivos, pelas aleias, em filas indianas que se avolumavam, na direção do portão de ferro da saída dos cemitérios e se espalhavam, vagando sem rumo pelos monturos de lixo, sobre carcaças de bichos mortos, cavoucando buracos nos cupinzeiros, roubando ovos nos ninhos, ou mesmo apenas andando, desnorteados, em círculos alguns, em elipses mais ou menos abertas outros. A alguns dava bater-se nas vidraças das casas que habitavam quando ainda eram vivos, conduzidos talvez por um resquício de memória, ou pelos cheiros familiares, do caldeirão de sopa, do sabão em pedra, do toucinho defumado dependurado nas traves da cozinha, ou atraídos pelas luzes das velas, ou pelo próprio reflexo nos vidros. Outros rodavam, trôpegos, em volta dos candeeiros dependurados nos postes da praça nas vilas, tentando alcançar os insetos, os besouros, as mariposas. Ao alvorecer, como se por um sinal da natureza, o brilho dos primeiros raios do sol, o gorjeio dos primeiros pássaros, como se atendessem ao chamado, ao apito ultrassônico, o ressoar da campainha do relógio interno, quase ao mesmo tempo os mortos-vivos interrompiam-se, largavam o lixo catado, cuspiam o pedaço de carniça, a casca da árvore, abandonavam as larvas, os cheiros familiares, os farrapos das lembranças, deixavam quebrar-se nas mãos os ovos roubados, engoliam os torrões de barro, e de onde estivessem voltavam suas cabeças na mesma direção, de onde tinham vindo, no começo da noite, e reagrupavam-se, em filas, primeiro desordenados, atropelando-se, para aos poucos se ajeitarem, o lugar de cada um, as distâncias entre uns e outros, horda caminhando, lentos, sob a contraluz do amanhecer, pelas estradas desertas, pelas encostas dos morros, ou mesmo abrindo trilhas pelo mato, de volta até os respectivos túmulos nos cemitérios.

Um comentário:

Benedito disse...

Bom de ler, escorre quase doi.
Belo texto.