segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

os mortos-vivos (parte 15)

As lembranças, as saudades, as reminiscências, as mágoas revividas, a ausência irrevogável do filho, da irmã caçula, da esposa, da avozinha, do amante, perdidos, e suscitadas pela presença deles, os mortos-vivos. O temor implícito, o confronto com a fatalidade, a finitude palpável, o efêmero, o derradeiro, o urgente dos dias contraposto ao vagar irrestrito da morte, tão semelhante à clausura de se vagar no vivido, como única diferença a eternidade. As entranhas revolvidas, o embrulho no estômago, a ânsia de vômito, a náusea, provocados pelo cheiro de terra, de naftalina, de formol e de carne em decomposição. O pavor irracional ao cruzar inadvertidamente com um deles no ermo, nas bermas, nas estradas desertas, hesitando às margens dos córregos, protegendo-se do sol sob as pontes, no sopé dos morros. A simples visão, a qualquer hora do dia, de grupos deles, crianças, velhos e velhas, homens, mulheres, como se fossem famílias, se famílias pudessem constituir, remexendo os monturos de lixo, arrancando com as unhas as cascas das árvores, debruçados sobre a carniça, ou andando em círculos, cambaleantes, ou parados, oscilando, emitindo um som oco, grave, monocórdio, mais parecido com um zumbido, confundidos pelo escuro da noite ou da madrugada. O arrepio ao se cruzar o olhar com o olhar de um ou outro deles, na praça, em um beco escuro, transeuntes extraviados sob a chuva, olhar opaco, o azul esmaecido das pupilas quase tão brancas quanto as córneas, exceto pelo brilho vermelho, esvaído, brilho não, melhor seria fosforescência avermelhada, à guiza de íris, no centro das pálpebras turvas, quase indistinguíveis. Enfim, todos esses motivos, todas essas razões juntas, separadas, ou combinadas, tornou insuportável, repulsiva, odienta mesmo a presença deles, os mortos-vivos, o verdadeiro e único, o maior de todos os incômodos, não para nós, os mais pequenos, pois que a nós não nos era permitido vê-los, mas para o restante dos outros, que se diziam vivos, e dentre eles os nossos irmãos mais velhos.

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