Acordo com a claridade atravessando o vidro da janela. Com o barulho dos pássaros. Com o canto do galo desregulado do vizinho. Com a chuva fina pingando nas calhas, nas folhas, na grama. Esfrego os olhos para tirar a poeira e a umidade dos sonhos.
O cão ainda ressona. A gata sobe na cama
enquanto afofo os travesseiros e dobro o cobertor. A lâmpada acesa durante a noite na varanda
(para afugentar ladrões) só serve para atrair milhares de besouros, pequenos,
feios, cinzentos, desnecessários, desemborcados, espalhados pelo chão.
Para além do vidro, tomateiros a disputar terreno nos vasos de
espadas-de-são-jorge e comigo-ninguém-pode. Ramas de hortelã nas frestas
da calçada. O pomar: jabuticabas coladas ao tronco, como olhinhos sem piscar. Acerolas que já sobram, pontilhando o chão de vermelho. O pé de tangerina, só flores brancas. A
bananeira que cresceu pelo menos um palmo desde a última chuva. Ramos
raquíticos de hera subindo pelo reboco. Depois do muro, a mancha verde-escura
do mato e das árvores do parque. Mais longe ainda, nos intervalos do mato, a água que começa a pratear.
Ligo o rádio, nas notícias. Varro os besouros da varanda. Coloco comida e troco
a água do cão e da gata. O cheiro de café, de pão quente e manteiga derretida exala
pela casa. Seguro a caneca com as duas mãos e penso, cada vez mais distante, cada
vez mais fraco, cada vez menos dolorido: um dia houve angústia, insatisfação
e ânsia com o desejo da tua presença.
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