Libar é um verbo estranho. Relacionado ao sentido do sagrado. Eu libo, tu libas, ele liba, nós libamos, vós libais, eles libam.
Eu libo à insônia e à sonolência. À macarronada, ao churrasco e ao vegetarianismo. À orgia e ao celibato. Ao sábado de sol e chuva. Ao domingo de tédio. À segunda-feira de desesepero.
Ao doido Lear que me habita. Libo aos bobos vitoriosos e bobos derrotados. Aos momentos felizes e à insatisfação em cada hora, cada minuto, cada instante do dia. Ao lírico e ao ridículo. À pompa e à circunstância. Ao compromisso e ao desleixo. Ao sério e ao excesso. Ao desespero de ser. À integridade inata e ao politicamente correto.
Também libo aos mortos em geral. Aos mortos que povoam o sono e a vigília. Aos mortos que viverão na memória. Aos mortos que, mais cedo do que tarde, serão esquecidos. Aos mortos que insistem em permanecer vivos. Aos mortos que dançam sob a chuva do entadecer. Aos mortos insepultos. Aos que morrem dormindo. Aos mortos ressuscitados que padeceram e voltarão no terceiro dia.
Eu libo às aberrações e aos amores fugazes. Às emoções, os sentimentos e sensações. Aos plantonistas e aos coveiros. Ao haver e ao dever dos contadores. Ao fluxo menstrual das vendedoras de cremes rejuvenescedores. Às floristas. A todos aqueles que convivem com a Inevitável.
Eu libo aos sufocamentos e às transcendências. À superação do ser e à submissão do espírito. Ao funâmbulo que despenca da corda bamba estendida entre os décimos-segundos andares de dois edifícios do Centro.
Eu libo às danças: ao tango e à doença de São Guido. Aos atores e aos impostores. Eu libo às divas e aos canastrões acometidos do mal de alzhaimer. Às prostitutas blenorrágicas e aos poetas clássicos. Aos romances vividos ou escritos. Aos contos de terror inacabados. Às personagens secundárias e aos protagonistas mal-amados.
Voltando ao início, eu libo a Dionisos. Ao sol, à chuva. À vida em geral. À escuridão da noite. Ao cinzento da madrugada. Sucedida, sempre, da claridade dos dias.
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