terça-feira, 27 de novembro de 2012

o neurologista, a tia e o atentado

1.
No início dos anos 90, o neurologista inglês Oliver Sacks ficou conhecido no Brasil por conta do filme Tempo de Despertar (sobre o tratamento revolucionário de pacientes catatônicos em um hospital psiquiátrico nova-iorquino).

Na onda do filme, foram publicados vários livros dele, dos quais li “Um antropólogo em Marte”. O texto acessível e envolvente discorre sobre patologias esquisitas provocadas por disfunções cerebrais. Por exemplo: um pintor que, após um acidente automobilístico, passa a enxergar o mundo em preto-e-branco; um cirurgião que só se alivia de tiques nervosos ao pilotar seu monomotor; um cego que, ao recuperar a visão, percebe que não sabe ver; uma professora autista que ama os animais, mas sente-se perplexa diante das emoções humanas, como um antropólogo em Marte.

2.
Tia Hemicênia (nome que nunca descobrimos a origem) era professora. Das boas. Das antigas. Alfabetizou, educou e ensinou pelo menos 3 gerações de alunos. Famosa no tempo dela pela capacidade de incutir nos alunos, com carinho, ou a ferro e fogo, as agruras, os espinhos, os mistérios da língua portuguesa e a escapar de suas inúmeras armadilhas.

Tia Hemicênia me ensinou a ler. Apresentou-me, aos 7 anos, a obra completa de Monteiro Lobato, infinitos volumes de capa dura, verde, com os títulos e vinhetas prateados. Depois, José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Maria Clara Machado, José Mauro de Vasconcelos, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Bernardo Élis, Cassiano Ricardo e tantos outros.

Tia Hemicênia vivia 24 horas atenta aos erros ortográficos e gramaticais: nos trabalhos escolares, no rádio, novelas e telejornais, nas manchetes de revistas, placas de anúncios, embalagens - nada escapava ao seu crivo. Ficava possessa, furiosa quando os encontrava. Escrevia às redações, telefonava às emissoras, às empresas, ou, quando ocorria ao vivo, ela pagava um sermão didático ao infrator.

3.
Quando eu os encontro na leitura, broxo na hora. Execro o autor. Mando e-mail. Envio torpedo. Mensagem privada. Intolerância herdada de tia Hemicênia.

No entanto, condescendo aos erros relacionados às armadilhas da língua. Ou às confusões da pressa. Principalmente quando nos escritos efêmeros da internet. Afinal, atire a primeira pedra quem nunca os cometeu.

Busco o bom senso: alguns são menos erros que desvios da Norma, que como todo mundo sabe, pode variar quando visitada pelo falante comum ou pela elite dominante (como afirmam os estudiosos). A língua é dinâmica e a gramática é burocrática.

4.
Porém, escrever “flecha” com “x”? “xingar” com “ch”? “Texto” com “s”? Fulano e sicrano “chegou”? dói na alma. É demais. Me dá (Dá-me) tonteira, ânsia de vômito e faz tia Hemicênia se revirar no túmulo.

5.
Admitir o erro é o primeiro passo no caminho do acerto.

Pois eu, herdeiro direto da intolerância de Tia Hemicênia, admito. Expio. Bato no peito três vezes: minha culpa, minha tão grande culpa (adoro essa construção). Nos últimos 10 dias eu pequei os 4 pecados do item 4: escrevi “flecha” com “x” em uma correspondência oficial. Por duas vezes, escrevi “xingar” e “xinguei” com “ch”; e emendei a concordância absurda em um mesmo texto publicado no blog. Ontem - horror dos horrores! - escrevi “texto” com “s” em pleno compartilhamento do facebook.

Perdi o sono. Erro de digitação? Corretor ortográfico do programa desativado? Pressa? Displicência? Desatenção? Estresse? Dor de dente? Dor de cotovelo? Lapso senil? Ignorância? Desculpas sempre haverá.

Então surgiu a lembrança do Dr. Sacks da parte 1. Será que fui acometido de alguma síndrome neurológica ainda não descoberta, que apaga momentaneamente a atenção? Que cega o senso crítico? Que converte, de uma hora para outra, um pretenso autor em monstro capaz das piores taras e atrocidades, assassino da própria língua-mater?

6.
Depois de tia Hemicênia eu aprendi a ler o texto 2, 3, 20 vezes antes de torná-lo público. De preferência, passar pelo revisor. Aprendi que, depois de publicado, não se volta atrás, não se corrige de forma digna. Que erratas são atestados de negligência. Que, por mais anuentes, os leitores não perdoarão jamais. Que, por mais banais, os erros fragilizam o autor, expondo-o à chacota, ao apedrejamento, às feras, à pena capital.

Por isso, peço: ao leitor (se é que ainda haja algum), desculpas pelo indesculpável. Aos críticos, vista grossa, ao menos essa vez. Ao Dr. Oliver Sacks, please, encontrar a cura dessa patologia hodienda. À tia Hemicênia, por amor ao vernáculo, que interceda junto às Musas pela salvação da minha  alma (atrofiada) de escritor.

5 comentários:

Yaminah Garcia disse...

Desculpe-me se errar .ou foi um lapso ou o dedinho que bateu na tecla errada.Adorei o seu texto ,lindo muitissimo bem elaborado ,nos conhecemos a tantos anos e nunca tive a oportunidade de ler coisas escritas por voçê . Sinceramente viajei lendo esta estória ou história que me parece real.bjos lydia

Gladstone disse...

Lydia, grato pelos elogios! o texto não é uma apologia ao "liberou geral" da língua portuguesa. Todo mundo erra. É isso: uma tecla mal digitada, um descuido, ou desconhecimento mesmo. Assim aprendemos! Bjs

Gwavira Gwayá disse...

Eu não tive uma Tia Hemicênia, mas uma Profa Maria Mardine Fraulob, também rigorosa e atenta aos nossos trânsitos pelo vernáculo. Talvez por isso a paixão pela palavra escrita, suas nuances, poesias pulsantes, sentidos abertos a conexões e enredamentos...
Como sempre, Glads querido, lindo texto!

Mauricio de Assis Borges disse...

Teu texto é muito bom. Enxuto, correto. Escrever bem, em poucas palavras, é para poucos. Parabéns.
Os amantes da boa leitura, em sua maioria, certamente conheceram, alguma Tia Hemicênia, mas será que esse "fanatismo" pela linguagem totalmente correta tem essa importância toda?

Gladstone disse...

Maurício, valeu! também não gosto de preciosismos e o rigor em excesso engessa a expressão. No entanto, deve haver um padrão, um conjunto de regras que garantam a fidelidade e a efetividade da expressão. Como a pessoa que dança, por exemplo, ter domínio sobre os movimentos de seu corpo, o cantor da voz, o pintor do olho e da cor, etc etc.