quarta-feira, 7 de novembro de 2012

desabafo

você sabe tudo, você tem opinião sobre tudo, você conhece tudo, onde comprar barato cerveja importada, onde encontrar endívias, como cozinhar arroz arbóreo, qual a melhor época para viajar de carro pelo sul da França, como escolher um bom restaurante em São Paulo, quais as praias mais bonitas do Nordeste, os nomes dos vinhos a se comprar em Portugal,

tudo tem defeito pra você, de tudo você reclama, encontra problema, o engarrafamento pela má engenharia de trânsito, o débito automático da conta da operadora de telefonia, o tempero da comida do restaurante self-service, o atraso da faxineira, a fedentina do banheiro masculino, a greve da polícia federal, a irresponsabilidade do teu chefe,

eu queria tapar os ouvidos para não escutar a tua dicção quase perfeita, a tua articulação mastigada das frases, a tua pronúncia como se esfarelasse as vibrantes, eu queria não enxergar as tuas expressões faciais, tua sobrancelha arqueada ao perguntar sem interesse, sem ouvir a resposta, a tua insistência em olhar nos olhos, os teus gestos de mãos, a tua mania de girar a aliança no dedo,

eu daria tudo pra não ouvir a humildade falsa dos teus auto-elogios, a tua empáfia dissimulada, em ressaltar que tudo teu - os teus pensamentos, as tuas convicções, a tua moral, a tua formação, a tua família, as tuas ironias politicamente corretas, o teu bairro, o teu carro, o teu modo de vida - são os melhores, os mais corretos, os mais honestos, limpos, intensos e profundos,

eu não quero mais ouvir o teu tom condescendente para, como quem não quer nada, apontar nos outros qualidades que você não enxerga em mim, a minha inabilidade para organizar a casa, a estreiteza dos meus pontos de vista, os meus objetivos tímidos de professora, a minha insegurança na criação dos meninos, a minha origem, a minha  paixão ridícula pelas plantas, o meu comodismo, a minha indisposição para o novo, o incerto, a aventura, o desconhecido,

eu queria poder colar com esparadrapo a tua boca, furar a carne do teu braço, até o osso, com a agulha desse catéter, lábios ressecados de sede, te deixar mijado e cagado e assado, esfregar gaze até tua virilha ficar em carne viva,

eu queria poder rir dos teus balbucios, do teu olhar perdido que graças a deus não intimida mais o meu, te fazer saber que a cama automática é importada, que estamos hospedados no melhor quarto do hospital, que o médico que te acompanha é o mais conceituado, que o teu plano de saúde é o mais caro e que apesar da minha incompetência, o nosso casamento ainda está valendo, eu estarei aqui, ao teu lado, sempre, até no último fiapo da tua lembrança, no último resquício do teu raciocínio, no último espasmo, eu estarei aqui, ao teu lado, até que ela venha e finalmente nos separe. 

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