quarta-feira, 16 de outubro de 2013

deus, a gata, a morte, o pássaro e mais uma sobre o ridículo de existir

Cedo, outro dia, mal abri a porta, a gata escapuliu para o jardim. Voltou com um pássaro vivo na boca. Enfiaram-se debaixo da mesa. Puxei-a pelo rabo. Tirei-lhe o brinquedo. Era mínimo. Asas cinzentas e penugem esverdeada no peito. Unhas delicadíssimas agarradas à pele da minha mão. Mais morto que vivo.

Depositei-o no alto, entre as folhas da trepadeira. Esqueci dele enquanto preparava o café da manhã. Depois de algum tempo voltei para olhá-lo. Ele ainda estava enganchado nas folhas. Mexeu-se ao ser tocado. Pensei: outra criatura salva pelas minhas mãos.

Minutos depois ouvi o farfalhar de asas. O pássaro tinha caído da folhagem. Debatia-se descontrolado no chão. A inevitável luta interna final. Nada a fazer.

Constatei então que participávamos - a gata, o pássaro, eu - de um jogo, no mínimo, estúpido. O pássaro era a vítima. O perdedor irreversível. Morria sem motivo. Talvez por um descuido, vacilo de fração de segundos.

A gata - pretensa vitoriosa - pobre coitada!, estava à mercê do irracional e do mero instinto - para nós, humanos, adjetivado de "assassino". Inocente, a gata regozijava-se com o troféu estrebuchando no chão.

E eu? inteligente? consciente? racional? Mais que testemunha - naquela manhã luminosa de verão (parafraseando Clarice) eu era também juiz. Parcial. Pior: meu papel na brincadeira era o papel do deus onipotente (mas não onisciente) que tanto aprendi a questionar. Um deus pretensioso e babaca.

Por interferir, sem medir consequências, na existência dos seres e das coisas.

Primeiro, simplesmente por criar um felino (exterminador de pássaros). Segundo, como se a dupla tentativa de salvar aquele pássaro minúsculo me redimisse da culpa de sua morte. Ou amenizasse, desculpasse, perdoasse o instinto assassino da gata.

Constatado o irreversível, havia duas opções:
a) Deixar o pássaro agonizar até a morte natural.
b) abreviar com uma pedrada certeira o sofrimento do bicho.

(Caramba, adentrei pelos caminhos insondáveis da metafísica e filosofia).

"A" ou "b" eram únicas opções possíveis. Eram a própria regra do jogo do deus cruel. Regras ridículas. Melhor dizer: falácias.

Escolhi "b". Por compaixão. Sadismo. Covardia. Curiosidade.

A agonia do pássaro era delicada. Só o farfalhar descontrolado das asas contra o cimento.

A gata, saciada, observava de longe.

Eu, deus-canastrão, observava o tédio da gata contraposto ao desespero do pássaro.

Por fim o pássaro morreu. A gata - a mais esperta do jogo - há muito tinha encontrado outro interesse, dentre tantos, no quintal: grilos, folhas secas, lagartixas, besouros - ou a própria sonolência de existir.

Eu - deus ridículo - naquela hora, sem saber, o mais inferior  - ali parado, só de cueca, arrotando o café-com-leite, humano, demasiado humano, tirando com a língua os restos de pão grudados nos dentes, vassoura e pá de lixo a postos, diante do minúsculo cadáver do pássaro que obscurecia a luminosidade da manhã. A luz e a alegria de todas as manhãs futuras da minha existência.

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