sexta-feira, 4 de outubro de 2013

espaço elefante


A casa foi construída por meu pai. No começo dos anos 1970. Na W3 Norte, que era asfaltada somente até um pedaço. O Resto era poeira, buracos, barracos, ratazanas, oficinas mecânicas.

São muitas lembranças da infância. Havia mangueiras, abacateiros frondosos e um pé de cagaita na rua dos fundos. Havia também um trio de moradores de rua: João (uma espécie de Arthur Bispo), que produzia e vestia acessórios feitos de lixo (hoje chamado reciclado); Zé, torcedor fanático do time de futebol do Ceub e Maria Preta, negra, bêbada sempre, uma espécie de princesa decaída, e namorada do Zé e do João ao mesmo tempo. Dona Mariazinha, do terreiro de umbanda. Beijos furtivos nos terrenos baldios. E tantas outras.

Passados alguns anos, casamento e paternidade recentes, voltei a morar na casa. Diversas vezes. Outros  rumos, mudanças, filho, separações, reuniões, mais casamentos - Outros anos passados e lá estava eu, morando na casa de novo. Definitivamente daquela vez (ou quase): herança paterna.

 
A casa localiza-se em um beco em plena região comercial da Asa Norte conhecida pela impronunciável sigla SCLRN. (Para a velha geração: pertinho do histórico Bom Demais). O lugar sempre foi underground, desvalorizado por causa da vizinhança: as eternas oficinas mecânicas, lojas de autopeças, revendas de carros, sinucas, botecos, restaurantes a quilo.

Já havia funcionado nela um restaurante natureba, um bar-livraria-casa-de-shows anarquista louquérrimo, um ateliê coletivo, uma quase-escolinha de arte e por fim ateliê individual (onde, dentre outras coisas eu pintava elefantes).

Devido ao aluguel mais barato, foram aparecendo outros artistas nas redondezas. Madame E., pioneira dos tempos da fundação da cidade, artista plástica, desenhista, performer. Um grupo de artistas multimídia (início dos anos 2000) que projetava filmes experimentais ao ar livre, sob a marquise. Grafiteiros itinerantes. Uma companhia de teatro que morava, montava e apresentava espetáculos na casa ao lado. Um arquiteto doidão na esquina. Assim por diante.


A certa altura a casa foi reformada. Ou melhor, transformada. Com projeto intuitivo e ideias de amigos. Abrimos varandas, derrubamos paredes, furamos lajes, erguemos escada, cobogós, claraboias, telhado isotérmico, ducha, impermeabilização, revestimento, pintura branca - linda, ousada, contemporânea - verdadeiro milagre estético com o pouquíssimo dinheiro disponível.


 
Há uns 3 anos fechou-se um ciclo de vida. O destino deu uma reviravolta. Vendi a casa. Nunca mais voltei lá.

...

Há pouco recebi uma mensagem no celular. Com foto. Do filho. Estava emocionado:

Ele tinha sido convidado para a abertura de um novo espaço cultural na Asa Norte. Escritório e galeria de arte, ateliê, novos artistas. Mais especificamente na 706 Norte. O espaço era projeto de uma amiga da namorada dele. Ele mal pôde acreditar: era nossa antiga casa.

O lugar se chama Espaço Elefante.

...

Eu fiquei mais emocionado ainda. Sensação de um sonho alheio realizado que de certa forma eu participei.

Que as divindades de todas as dimensões venham e derramem boas energias e proporcionem longa vida para o lugar que foi e será sempre parte essencial de mim.

(agradecimentos à Bruna e Gabriel)

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