quarta-feira, 21 de julho de 2010

A entrevista

O entrevistado sai do trabalho mais cedo. Chega 10 minutos antes. Não se lembra do nome do entrevistador. Recorre à memória do celular. Mandam aguardar no estúdio. O pessoal age como médicos na sala de cirurgia em filme americano. Enquanto toca música, conversam assuntos variegados. Quando acende a luz vermelha "no ar", silêncio de sepulcro. Só a voz de veludo da apresentadora.

Troca de turno, de equipe, de programa. Chega o entrevistador. Distribui sorrisos e deseja "um feliz dia do amigo" (dia 20/07). Senta-se diante do microfone. Inicia a transmissão. O entrevistado repassa mentalmente o que dirá ou não na entrevista, ao vivo, à tarde.

O entrevistador anuncia o entrevistado. Pronuncia o nome errado, muda a sílaba tônica e engole a última vogal átona, quem manda ter nome estrangeiro. Depois da primeira música (Ivete Sangalo ou Claudia Leitte), convida o entrevistado ao microfone.

O primeiro bloco começa bem. Perguntas de praxe: o primeiro livro, porque escreve, formação acadêmica, poesia marginal, artes cênicas e plásticas. O entrevistado responde seguro. Bem-humorado. Inteligente. No meio, a primeira situação desagradável: o entrevistador pergunta se o entrevistado é funcionário público. Por causa da roupa. Risos simpáticos.

Intervalo, Renato Russo, Pais e Filhos. Entra-se no tema dos contos. Na razão da escolha do título: "não basta a desagradável realidade?" é a pergunta da vez. O entrevistado pensa nos ouvintes antes de responder: serve para refletir. Desagradável é a nossa situação. A nossa condição humana.

O entrevistador muda de assunto. Pergunta sobre novos projetos. O entrevistado ia falar do livro sobre candomblé, no prelo. Não precisou. O entrevistador abre o blog do entrevistado. Cai direto (forças do além?) no post onde o entrevistado fala do título provisório do seu próximo livro (7 histórias do além). O entrevistado cai na armadilha. É obrigado a narrar o enredo da primeira nova história (a menina atropelada). E imagina a cara do ouvinte. Mas não perde o rebolado.

Novo intervalo. O entrevistado está tenso. Nem presta atenção na música. O entrevistador navega no blog. Pergunta, em off, se é um homem nu na foto da capa. Caiu a ficha dele. O entrevistado prepara-se para abordar o tema "gênero" no próximo bloco. Mudança de rumo. O entrevistador prefere focar as imagens do convite.

O entrevistador implica com a cruz desenhada na testa da imagem do manequim do convite. O entrevistado conclui ter o entrevistador entrevisto simbologias místicas negativas. Na mosca. O clima da entrevista obnubila-se. A névoa do Letes, os vapores sulfúricos dos círculos dos infernos envolvem o entrevistado. O entrevistado mantém a calma. A entrevista era para divulgar o livro ou para afugentar os leitores potenciais?

O entrevistado explica. Trata-se de manequim de estúdio fotográfico. A cruz na testa só representa o ponto onde os alunos devem focar as lentes, a incidência da luz. O entrevistador parece insatisfeito com a resposta. A entrevista acaba, incompleta. Toca uma música regional para encerrar o programa. Bonita música.

O entrevistado sai da rádio feliz por não ter perdido a classe no atropelamento. Para sua sorte não houve ligação dos ouvintes.

Nenhum comentário: