sexta-feira, 17 de agosto de 2012

lugares - chiloé & pedro lemebel

Trauco
Fiz como nos filmes: girei o globo terrestre sobre a escrivaninha e, de olhos fechados, parei o movimento com o dedo indicador, no destino-surpresa escolhido pelo acaso: Tombuctu, Reykjavik, Tangulla, Kilauea, lugares exóticos, nomes impronunciáveis.

Caiu em Chiloé. No meio do Chile. Eu nunca tinha ouvido falar.

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Primeira parada, Santiago: pontos turísticos, shopping, museus, parques, cerros, vinho, teleféricos, baladas e o rio Mapocho cascateando rápido, gelado, direto da Cordilheira, pano de fundo majestoso da cidade.

Segunda parada, Valparaiso: pontos turísticos, museus, cerros, vinho, baladas, casas de madeira em cores vivas contra o mar azul-escuro ao fundo, pelas janelas dos ascensores.

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Chiloé uma linda região. Conhecida pelo Parque Nacional, pelos vulcões cobertos de neve e pelas igrejas de madeira, delicadas como brinquedos de outro tempo (segundo os guias turísticos, elas foram erguidas por encaixe das peças, sem utilizar pregos). Vi e ouvi rappers-índios em uma praça com o mar azul-cinzento ao fundo. Comi curanto (mariscos, charque, carne de porco, e batatas assados em um buraco na terra coberto por folhas gigantes de uma planta local, preparado por pescadores mapuches). Escrevi postais e diário na plaza  de Ancud, rodeado por seres mitológicos chilotas. Conheci uma trupe de teatro. Dormi com eles no sótão de uma palafita. Quase me apaixonei. Etcétera.

Mas foi em Castro, enquanto esperava a barca que me levaria de volta ao continente, já no fim da viagem, que a viagem propriamente dita aconteceu. Em uma livraria de shopping.

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Eu conhecia pouco mais que o escolar da literatura chilena: Neruda, Gabriela Mistral e Isabel Allende (que é limenha de nascimento). Desta, tinha lido a Casa dos Espíritos e comprado Eva Luna e Hija de La Fortuna para ler na viagem.

Revirando as estantes, chamou atenção uma capa com coração vermelho preenchido com balas douradas de fuzil: Tengo miedo torero, de Pedro Lemebel. Além dele, Adiós Mariquita linda (Lemebel maquiado de Frida Kahlo na capa); Loco afan - crônicas de sidario (Lemebel e Francisco Casas - que formavam o grupo performático Las Yeguas del apocalipsis - posando de “As duas Fridas”) .

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Pedro Lemebel é um dos grandes autores chilenos. Nasceu na metade dos anos 50. Viveu a contracultura, o fim do sonho socialista de Allende, a ditadura de Pinochet. La loca militante: homossexual; comunista; poeta; performer; travesti.

Eu me identifiquei de imediato. Primeiro por causa dos títulos: Tengo miedo torero e Adiós Mariquita linda são canções populares, bolerões, típico gosto queer latino.  Depois por causa do texto em si: fluente, fácil, verdadeiro, intenso, político, contundente, excessivo, trágico, rude, barroco e acima de tudo, humano e bem humorado.

Os últimos momentos de uma loca sidosa (assim mesmo, no dialeto cru dos travestis, “mona aidética”) em "El último beso de Loba Lamar" é considerada uma das mortes mais cômicas da literatura.

Em uma cena do documentário Corazon en fuga (Veronica Quense, 2008), Lemebel fala sobre ela (a morte), enquanto gravavam seu nome em um epitáfio, no túmulo dos pais. “É estranho colocar o nome de uma pessoa viva ao lado dos nomes dos mortos”, mais ou menos o que ele diz; “na verdade, eu nunca saí daqui”.

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Há lugares que desenham roteiros sensoriais na geografia da memória. Colorem os trajetos com sensações, paisagens, aromas, temperos, sonoridades.  Os 10 dias em Chiloé percorreram trajeto menos exuberante. Era como se a cada trecho de estrada percorrido, a cada parada à beira de um precipício, a cada mirada ao vulcão ao longe, a cada pouso após a jornada, a cada beijo do amante ocasional, a cada crônica lida, fossem encravadas na carne da alma os minúsculos traucos, sirenas e  pincoyas de pedra concágua das metáforas e das imagens do Chile de Pedro Lemebel.


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