José de Alencar escreve a Machado pedindo que este publique uma crítica sobre o jovem poeta Castro Alves, vindo direto da Bahia. É uma carta toda empolada, o oposto do estilo do destinatário. Como não podia deixar de ser, para conseguir o intento, Alencar finaliza a missiva com uma bajulação descarada:
Lembrei-me do senhor. Em nenhum concorrem os mesmos títulos. Para apresentar ao público fluminense o poeta baiano, é necessário não só ter o foro de cidade na imprensa da Corte, como haver nascido neste belo vale do Guanabara, que ainda espera um cantor.
Seu melhor título, porém é outro. O senhor foi o único de nossos modernos escritores, que se dedicou sinceramente à cultura dessa difícil ciência que se chama crítica. Uma porção de talento que recebeu da natureza, em vez de aproveitá-lo em criações próprias, teve a abnegação de aplicá-lo a formar o gosto e desenvolver a literatura pátria.
Do senhor, pois, do primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante vocação literária, que se revelou com tanto vigor.
Seja o Virgílio do jovem Dante, conduza-o pelos ínvios caminhos por onde se vai à decepção, à indiferença e finalmente à glória, que são os três círculos máximos da divina comédia do talento.
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A carta é rebuscada. Alencar cita o tempo o todo os clássicos, em uma erudição empoeirada aceitável no século XIX mas quase hilária na pós-contemporaneidade. Em 8 páginas, são inúmeras as figuras, trocadilhos, aforismos e eruditismos pérolas que Alencar pontua o texto. Vale a pena:
Nasceu na Bahia, terra de tão belos talentos; a Atenas Brasileira que não se cansa de produzir estadistas, oradores, poetas e guerreiros.
A genealogia dos poetas começa com seu primeiro poema.
O talento é uma religião, a palavra um sacerdócio - para elogiar o caráter do Dr. Fernandes da Cunha - um dos pontífices da tribuna brasileira.
Receber Cícero que vinha apresentar Horácio, a eloquência conduzindo pela mão a poesia, uma glória esplêndida mostando no horizonte da pátria a irradiação de uma límpida aurora.
Carecia de ser Hugo ou Lamartine, os poetas-oradores, para preparar esse banquete de inteligência.
Em literatura não há suspeições: todos nós, que nascemos em seu regaço, não somos da mesma família? Mas a todos o vento da contrariedade os tem desfolhado por aí, como flores de uma breve primavera.
Alguns têm as asas crestadas pela indiferença; outros, como douradas borboletas, presas da teia d'aranha, se debatem contra a realidade de uma profissão que lhes tolhe os voos.
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Sobre a Tijuca, no Rio de Janeiro, onde Alencar morava:
O senhor conhece essa montanha encantadora. A natureza a colocou a duas léguas da Corte, como um ninho para almas cansadas de pousar no chão.
Aqui tudo é puro e são. O corpo banha-se em águas cristalinas, como o espírito na limpidez deste céu azul.
Respira-se à larga, não somente os ares finos que vigoram o sopro da vida, porém aquele hálito celeste do Criador, que bafejou o mundo recém-nascido. Só nos ermos em que não caíram ainda as fezes da civilização, a terra conserva essa divindade de berço.
A Tijuca é um escabelo entre o pântano e a nuvem, entre a terra e o céu. O coração que sobe por esse genuflexório, para se prostrar aos pés do Onipotente, conta três degraus: em cada um deles, uma contrição.
A chuva borrifou de aljôfares; as névoas delgadas resvalavam pelas
encostas como as fímbrias da branca túnica roçagante de uma virgem
cristã.
O primeiro degrau seria o Alto da Boa Vista, de onde se descortina longe, serpejando pela várzea, a grande cidade réptil, onde as paixões pululam, etc etc. O segundo degrau é para as bandas da Gávea, em um lugar chamado Vista Chinesa. Ali, escreve Alencar, Deus entregou a um de seus arcanjos o pincel de Apeles, e mandou-lhe encher aquele pano de horizonte. O terceiro degrau é o Pico da Tijuca, de onde os olhos deslumbrados veem a terra como uma vasta ilha a submergir-se entre dois oceanos, o oceano do mar e o oceano do éter.
Prossegue:
Nessas paragens não podia meu hóspede [Castro Alves] sofrer jejum de poesia. Recebi-o dignamente. Disse à natureza que pusesse a mesa, e enchesse as ânforas das cascatas de linfa mais deliciosa que o falerno do velho Horácio.
A natureza da terra de Castro Alves era comparável à exuberância da Tijuca. Lá, ela abandona-se lasciva como uma odalisca às carícias do poeta.
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Depois dessa breve introdução, Alencar desmancha-se em elogios às excelências da língua portuguesa no estilo de Castro Alves. Afirma que o poeta é discípulo de Vitor Hugo. Chama-o de Ticiano da Literatura. Fala que os moldes ousados da frase de Castro Alves são como os de Bevenuto Cellini. Afirma faltar maturidade e de pequenos senões em alguns trechos da peça Gonzaga, justificáveis pela tenra idade do poeta. Assim por diante.
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Alencar, aos 40 anos, era já um escritor consagrado. Machado, aos 30, era um jornalista reconhecido mas ainda não tinha alcançado o auge literário. Castro Alves, 21 anos, apresentava ao grande Alencar os manuscritos da peça Gonzaga, encenada algumas vezes mas só publicada postumamente, 3 anos depois da visita ao Rio de Janeiro.
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Dever de casa para o leitor que conseguiu ler até aqui: pesquisar na Wikipedia os nomes próprios citados nos trechos extraídos da carta escrita por José de Alencar a Machado de Assis, em fevereiro de 1868.
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