quinta-feira, 5 de junho de 2014

para morrer basta estar vivo

A boa escrita tem regras esquisitas. Por exemplo, a de se evitar os jargões, os lugares-comuns, as frases feitas, os ditos populares. Eu gosto e as utilizo, talvez para expor a ironia da pretensão, nata ou inata em todos nós, de criar algo novo e grandioso. Por trás da obviedade algumas dessas construções de mau gosto têm muita sabedoria. Como o título acima.

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Moro em uma casa com portas largas de vidro transparente. Ver o tempo todo o verde e grande parte co céu do mundo exterior provoca uma sensação agradável de se estar integrado e ao mesmo tempo protegido de tamanha exuberância.

Porém o vidro não é bom para os pássaros. Quando as portas estão fechadas em certas horas do dia, a paisagem reflete-se com tanta nitidez nelas que os pássaros se confundem. Eles não enxergam a barreira invisível. E se esborracham  no vidro. Geralmente o choque é tão forte que (talvez devido à oleosidade das penas) o contorno do pássaro fica desenhado na superfície transparente.

Desenho delicado e terrível do momento exato em que a morte veio. Súbita, fulminante e inexplicável.

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Como agora pouco, o pombo. Ou a pomba, para dar mais dramaticidade à narrativa.

Eu estava me preparando para trabalhar (leia-se: jogando candy crush) quando ouvi o estrondo. Já conhecendo os precedentes, nem me assustei.

Tinha sido na varanda. Estava lá o corpo encolhido no chão. Uma pomba grande, silvestre, da cor de cinza e prateado. Patas vermelhas, olhos fechados, um fio de sangue escorrido pelo bico. Penugem e grãos de ração semidigeridos espalhados em volta. No vidro, ao invés do contorno, um borrão pastoso escorrendo.

Pobre pomba. Tinha acabado de se alimentar. Pelo visto uma refeição lauta, compartilhada da vasilha de comida de algum cão da vizinhança. Tinha bebido água. Provavelmente os grãos inteiros de ração ela levaria para os filhotes no ninho.

A pomba devia estar feliz. Voava distraída, satisfeita depois das responsabilidades cumpridas: barriga cheia, alimento para a prole. Devia estar pensando em tirar o dia de folga, para simplesmente existir, aproveitar o céu muito azul, a temperatura agradável, o verde da grama e das árvores revivido depois da chuva do dia anterior, algum fruto do pomar - enfim, a manhã tão linda, em toda a sua plenitude.

Devaneio interrompido bruscamente pela barreira implacável do vidro.

Para sorte da pomba (será coerente associar os sentidos de morte e sorte?) de tão violenta, a passagem da dimensão real para alguma outra inexplicavelmente paralela, deve ter sido imperceptível. Pouco mais que um soluço.

Afirmar que na dimensão paralela o céu é mais azul ainda, a temperatura ainda mais agradável, o verde mais verde, a manhã mais linda e, espalhados pelo chão, pululam milhares de vasilhas de cães transbordantes de ração é pura pieguice ou carolice.

Depois do soluço-morte, imagino, a pomba adentrou no nevoeiro cinzento, úmido e denso onde voará sem pouso ou descanso por toda a eternidade.

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