domingo, 9 de dezembro de 2012

necrológio atrasado

Praça da Soberania

Todo mundo escreveu sobre Niemeyer no dia da sua morte. Toneladas de elogios.

Eu também escrevi. Um texto ranzinza, implicante, do-contra, chato, estraga-prazer, reclamão. Por isso eu o guardei nos rascunhos. Agora que o assunto deixou de ser manchete, aí vai.

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Niemeyer foi um dos grandes homens do século. Um herói brasileiro. Humanista. Comunista. Ateu. Sua arquitetura monumental é pura poesia de formas e linhas curvas. Trabalhou até os últimos momentos, aos quase 105 anos de existência. Levou a arquitetura brasileira, junto com o samba, a bossa-nova e o futebol para o resto do mundo admirar.

Isso foi dito e redito, escrito e reescrito, até a exaustão. No rádio. Na tevê. Na internet. Nas revistas e nos jornais: do Le Figaro ao Washington Post, do El País ao Corriere Della Sera, do Estadão ao Diário de São Raimundo Nonato.

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Meu pai foi candango. Veio trabalhar na construção de Brasília, em 1957. Na certa trabalhou em algum dos edifícios-monumentos de Niemeyer. Meu tio perdeu a mão em outro deles. Assim, sou daqueles brasilienses que, como disse um político daqui, respiro Niemeyer, tenho Niemeyer no sangue.

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100% das matérias que li (e ouvi) elogiavam a arquitetura poética de Niemeyer. Citando: Palácio da Alvorada, 3 Poderes, Catedral, Igreginha, em Brasília; Pampulha, em Belo Horizonte; Ministério da Educação (hoje Gustavo Capanema), no Rio de Janeiro; Edifício Copan em São Paulo; e inúmeros outros.

Mas todos calaram-se sobre as obras polêmicas. É natural. Os defeitos dos mortos são rapidamente esquecidos e as qualidades ressaltadas.

Admito, leitor: a partir daqui eu me exponho aos impropérios e ao apedrejamento estético-ideológico. Por entrar no campo do gosto pessoal.

Niemeyer (como humano que foi) também teve seus defeitos. Também criou obras de estética duvidosa. Ruins mesmo.

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Algumas obras polêmicas de Niemeyer têm sua graça. Transitam no grupo das grandes citadas acima. Exemplos? a Passarela do Samba, no limite do aceitável; o Museu da República, pesadão, mas integrado à paisagem sci-fi de Brasília: (Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente  para aquele mundo. - Clarice Lispector); o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, ferindo ou harmonizado com a paisagem; o Museu de Arte de Curitiba, olhão desajeitado, tanto por dentro quanto por fora, mas instigante.

No entanto, tem muita obra que, mesmo com boa vontade, pouca gente consegue defender: os "vulcões"do Centro Cultural de Le Havre, na França; a mão sangrando do Memorial da América Latina, em São Paulo; a "tulipa do cerrado" da Torre Digital; as linhas retas destoantes, hoje encobertas pelas árvores, do hotel em Ouro Preto; e basta.

(Ia me esquecendo do projeto da grotesca Praça da Soberania, contendo, dentre outros, o memorial dos presidentes e um obelisco de 100 metros que, graças a um grupo de arquitetos e cidadãos brasilienses, teve sua construção vetada).

Não que seja culpa do arquiteto. A fama internacional, a competência, a maestria, a produção incessante, as articulações políticas, o discurso, a respeitabilidade da idade, a ocasião, a demagogia, tudo foi motivo para Niemeyer projetar. Foi convidado pelos governantes e aceitou. Quem não aceitaria?

Mas, em se tratando de obra pública, de monumento para a posteridade, de patrimônio histórico, a hegemonia Niemeyer não se justifica. Por que sempre ele? não se deveria consultar antes especialistas? trazer a discussão a público? chamar gente nova? promover concursos, como o próprio, junto com Lúcio Costa ganharam para construir Brasília? perguntar se a população quer e concorda?

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Não quis em nenhum momento denegrir Niemeyer. Reafirmo sua genialidade. O arquiteto foi o máximo. E, humano, além de maravilhas, também legou criações infelizes.

Passear pela primeira ou milionésima vez, à noite, no Eixo Monumental, da Rodoviária até a Praça dos 3 Poderes é um deleite para o olhar. Uma epifania clariceana. Porém, é uma agressão para o mesmo olhar tropeçar, até o fim dos tempos, na feiosa e desproporcional Torre Digital.

Concluo, então, com uma prece agnóstica aos deuses (?): que Oscar Niemeyer descanse em paz. Que seja eterna e que inspire as gerações futuras a beleza e a harmonia das curvas dos edifícios-esculturas dele. E que livrem Brasília do desengavetamento do projeto da Praça da Soberania.


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