sábado, 1 de dezembro de 2012

o herói diante do espelho

é estúpido eu me ver nu no espelho grande do banheiro logo cedo
o riso de quem bebeu demais
o olhar de quem cheirou demais
a pança de quem jantou demais
de quem fodeu demais depois do jantar
de quem bebeu, cheirou, fodeu
depois dos jantares dos últimos dez anos

eu quem frequentava palestras, seminários, workshops
cursos à distância e os presenciais
quem reaquecia o ânimo da galera desatenta
e concluía discursos motivacionais com uma piada inteligente
quem distribuía charutos, os brindes
e servia espumante na festa de confraternização dos subgerentes

eu que até ontem, depois do jantar
fui simpático, engraçado, bem-humorado, de-bem-com-a-vida
eu que sempre contribuí, facilitei
viabilizei projetos
propus soluções
superei metas
sem nunca perder o foco

eu quem cedo ou tarde galgarei o melhor cargo
que sentarei na cabeceira da mesa de reuniões
que estacionarei o carro na vaga privativa
que serei imprescindível e terei direito às melhores comissões
não sou eu o idiota refletido no espelho grande do banheiro

não é minha a cara frágil
o olhar apavorado
de quem teme uma congestão
uma doença venérea
um ataque cardíaco
um avc
uma congestão intestinal 
um mau jeito na coluna
uma gastrite, uma úlcera, um câncer no estômago

não é minha essa cara aparvalhada
de quem teme novos desafios
a contenção de gastos
a redução do quadro
a reestruturação do plano de saúde
as variações da bolsa
a apólice do seguro de vida
o complemento da aposentadoria por invalidez
a prestação da casa própria
a demissão 
o processo por danos morais
(afinal, nunca se sabe, essas putas, esses filhos das putas)
depois do jantar

eu ligo a torneira de água quente e espero o vapor embaçar o vidro
eu espero o vapor embaçar a ridícula imagem refletida

antes de qualquer coisa eu devia fazer a barba
tomar um anti-ácido
pedir suco de melancia com laranja e adoçante
um energético

e vestir o terno, a camisa branca e a gravata dependurados no cabide dos bem-sucedidos

definitivamente não sou eu esse parvo, esse gordo ridículo
úmido, peludo, recurvado
coçando a bunda e mal reprimindo um peido
cintura larga, a barriga escondendo
o pau murcho, encolhido
inútil como o pau de um menino velho

Nenhum comentário: