terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Órfã


Era uma vez uma órfã. Coitada. Quase meia-noite. Da noite de natal. A órfã vendia fósforos no semáforo. Chovia, trovoava, relampejava, ventava, nevava e a órfã lá, oferecendo fósforos para janelas de vidro espelhado fechadas. A órfã vestia um short velho e uma camiseta rasgada. Até àquela hora a órfã ainda não tinha vendido nem uma caixa sequer. Nem uma moeda de esmola. A órfã tinha tremia de frio e de fome. Tinha saído cedo do abrigo. Sem nada pra forrar o estômago. A não ser o pedaço de coxinha que a mulher do Pajero jogou pela janela antes do semáforo abrir.
A órfã achava lindas as luzes, tos enfeites de natal da cidade. Pensava que o trenó cheio de presentes de Papai Noel ia se despregar da fachada do shopping, dar um loop no céu, parar no sinal vermelho e Papai Noel comprar logo um pacote de caixas de fósforos, o estoque todo escondido no bueiro. Ou então mandar a órfã subir no trenó, abrir a cesta de piquenique e oferecer um pedaço de panetone, um copo de fanta-uva e sobremesa de pêssego em calda.

Mas não. Naquela hora só tinha na rua os carros com os vidros fechados e os meninos de rua. Dormindo debaixo de caixas de papelão.
A órfã não perdia as esperanças. Papai Noel não tinha vindo porque estava ocupado demais distribuindo os presentes das criancinhas. Podia voltar então a fada madrinha, a mulher da coxinha da Pajero. Podia voltar e abrir um pouquinho mais o vidro, só pra órfã ver melhor o rosto dela, os cabelos louros presos pela tiara de diamantes, a vara de condão largada no banco do passageiro, o vestido de fofo de tule atrapalhando passar a marcha, as fitas desamarradas da sandalhinha embaraçada no pedal da embreagem, a nuvem de perfume de desodorante dos bancos de couro, ouvir a música de sininhos, harpas e vozes de anjos do rádio.

O movimento dos carros tinha diminuído. A órfã sentou-se no meio-fio, sobre a neve, molhada de chuva, assustada com os trovões, os cabelos pingando, os olhinhos brilhando com o reflexo dos raios. Riscou um fósforo para aquecer as mãozinhas enregeladas. O fósforo apagou-se com o vento, com a chuva. Outro. Mais outro. Até acabar a caixa. O pacote que Papai Noel não quis comprar. O resto do estoque do atravessador, escondido no bueiro.

A órfã ficou triste. Chorou. Logo que saíam as lágrimas viravam gelo dos olhos. Sentia saudade da mãe, dos dez irmãozinhos espalhados pelos orfanatos do mundo. Junto com a lágrima, um brilho de luz azul surgiu na frente dela e começou a aumentar, aumentar, e envolveu a órfã. Era uma luz quentinha, amolecia o corpo, dava sono, preguiça, vontade de deitar na neve de algodão, fofinho, quente, ninho, colo, pele do casaco do papai Noel. A luz dos farois de uma Pajero.

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