quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

diário de viagem (parêntesis literário)

Para não fazer peso na bagagem só levei 3 livros: "Extremamente alto, incrivelmente perto", de Jonathan Safran Foer; "Itinerância dos artistas - a construção do campo das artes visuais em Brasília - 1958-2008", de Angélica Madeira; e "Mala na mão & asas pretas" - vol. 2 das Obras reunidas, de Roberto Piva.

(Extremamente alto, incrivelmente perto. Jonathan Safran Foer. Editora Rocco. 2011. Tradução de Daniel Galera)

Safran Foer surpreende. Eu já tinha lido dele (e gostado) o "Tudo se ilumina", sobre um jovem americano que a partir de uma foto antiga, vai procurar suas origens na Ucrânia.  "Extremamente alto" é a história de um garoto, judeu, que perdeu o pai no ataque às torres gêmeas, no histórico 11 de setembro. Talvez seja politicamente incorreto dizer isso: o livro, como em 99,9% da literatura feita por judeus, dedica um longo capítulo sobre o holocausto (o bombardeio de Dresden). Muito bem escrito, por sinal, mas meio forçado.

O que mais me impressionou foi a estrutura do romance. Por onde a narrativa flui, sem bloqueios. Creio que a estrutura sólida faça uma analogia, contraponto (consciente ou inconsciente) à sólida e ao mesmo tempo frágil dos edifícios gêmeos destruídos por Osama Bin Laden.

O autor utiliza com grande propriedade de vários recursos gráficos - textos sublinhados em vermelho, sequências de imagens, fontes sobrepostas, etc, como se fosse um caderno de diário. Há 3 personagens-narradores: Oskar, o garoto de 9 anos que perdeu o pai no 11/09; a avó; e o avô mudo que só se comunica escrevendo frases em um caderno ou longas cartas para o filho (abandonado antes de nascer e depois morto). Sendo que os avós são uma espécie de  desdobramento do personagem Oskar.

Me pareceu que o livro é uma homenagem ou referência a "O Tambor", filme de Volker Schlöndorf (Polônia, Alemanha, França, Ioguslávia, 1979). Os personagens principais possuem muitas semelhanças e o mesmo nome: Oskar. O Oskar de "Extremamente alto toca um pandeiro nos momentos de tensão interna; o de "O Tambor" toca tambor. O Oskar de Foer não quer que a mãe se relacione com outro homem. Oskar de "O Tambor" parou de crescer por ter descoberto o amante da mãe. O universo interno dos dois é infinitamente rico e angustiado. Há nos dois Oskar um impulso ou necessidade de busca de sentido existencial. As duas histórias referem-se ou se desenrolam sob o pano de fundo do nazismo. Assim por diante.

O capítulo final de "Extremamente alto" é impressionante. Talvez fosse mais adequado chamá-lo de sequência, por sua proximidade do cinema. Foer/Oskar mergulham em uma vertiginosa sequência, como o efeito de inverter o rolo do filme e consequentemente inverter a sequência natural dos acontecimentos - a queda transforma-se em ascensão, a destruição em construção, o fim em começo, o começo em fim.



(Itinerância dos artistas - a construção do campo das artes visuais em Brasília 1958-2008. Angélica Madeira. Editora UnB, 2013)
A segunda leitura da noite e madrugada foi "Itinerância dos artistas", de Angélica Madeira. O livro conta a história das artes visuais na cidade. Angélica escreve de uma forma erudita e ao mesmo tempo muito agradável de ler. Começa, como os textos acadêmicos, apresentando a metodologia de pesquisa, as fontes de referência, as opções de direcionamento. Para em seguida abandonar esse formalismo (necessário) e embarcar em um texto fluente e agradabilíssimo de ler.

Os primeiro capítulo fala dos primeiros tempos, anteriores à inauguração da cidade até o final da década de 1960. Angélica transforma fatos históricos em um texto quase literário, de tão imagético. Sem abrir mão do rigor histórico, da análise estética e sociológica e da elegância da escrita.

É como se estivéssemos lá, no descampado de uma cidade em construção, presenciando fatos históricos - as encomendas oficiais de monumentos/esculturas para os espaços públicos, o preparo da terra para o plantio dos jardins e espelhos d'água de Burle Marx, Athos Bulcão coordenando a disposição dos cubos da fachada do Teatro Nacional, Ferreira Gullar organizando a festa do primeiro aniversário da cidade, o encontro das grandes arte-educadoras Mirtes Macdowell, Renee Simas, Laís Aderne e Ana Mae Barbosa, a Escola-Parque, os ateliês nos barracões de obra na construção da Universidade de Brasília, as palestras do Congresso da Aica (Associação Internacional dos Críticos de Arte) - enfim, pura História - e viva.

"Itinerância dos artistas", juntamente com "Entre poéticas e políticas", de Renata Azambuja são os livros pioneiros em organizar, definir, registrar e delimitar os fatos dispersos e às vezes quase perdidos da história da arte brasiliense.


(Mala na mão & asas pretas. Obras reunidas. Volume 2. Roberto Piva. Editora Globo. 2006)
Por fim, o deslumbramento dos poemas de Roberto Piva. "Mala na mão" reúne "Abra os olhos e diga ah!", "Coxas", "20 poemas com brócoli"e "Quizumba", escritos entre 1976 e 1983.

Ler Piva é gozar (metaforicamente talvez) a cada poema. É puro tesão deixa-se levar pela sequência vertiginosa das palavras, dos versos truncados, sincopados. Das imagens improváveis, eróticas, pornográficas, sonoras, contundentes, intergaláticas. Piva cria sentidos inusitados, desloca o tempo todo o sentido dos conceitos, rompe qualquer possibilidade de interpretação de significados preestabelecidos.

Muito além do surrealismo ou da escrita automática, a poesia de Piva é mística e primordial. Extremamente erudito - mistura milhares de referências clássicas, filosóficas, textos sagrados - Dante da Divina comédia à frente - à pornografia dos michês e de garotos sodomizados em saunas de periferia, praticando várias modalidades de sexo em praças públicas, ninhos-de-amor-quitinetes ou coberturas de edifícios da Avenida Paulista, etc.

Para além da escrita automática dos surrealistas, a poesia de Piva aciona os mecanismos internos do inconsciente, impulsionando o leitor, como se estivesse no primeiro carro de uma montanha russa radical a se conectar com o telúrico, o dionsíaco, a kundalini, energia sexual, a ejaculação cósmica.

(Como brinde, as análises da obra de Piva por Alcir Pécora no prefácio e Eliane Robert Moraes, no posfácio).

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