terça-feira, 30 de novembro de 2010

O pato que queria ser o Tio Patinhas - parte 6


O peixe já entregava os pontos quando veio o pato. O peixe pediu para o pato desenroscar a rede de náilon. O pato demorou a compreender, pois também queria escapar. O peixe teve paciência com a lerdeza do pato. O pato era sua salvação.

Finalmente foi libertado.

O peixe simpatizou-se com o pato. Aplicou neurolinguística, psicologia comportamentalista. O pato foi receptivo. A onda cerebral do peixe penetrou o intelecto do pato. O peixe descobriu o ponto fraco do pato. A história de querer ser o Tio Patinhas.

O pato representava o consumidor potencial. Uma tábula rasa em termos de desejo de bens materiais. O pato pensou com seus poderes, conferidos pelo Tio Patinhas em pessoa: Tudo o que o pato desejasse o capitalismo selvagem proveria.

Nem que fosse em forma de frustração.

Ou de ilusão.

Dia de Gbe



segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O pato

Finalmente uma foto original

O pato que queria ser o Tio Patinhas - parte 5


Era uma vez um peixe. Um peixe de classe média. Nasceu no meio dos juncos, cercado do carinho dos pais e da companhia dos irmãos. Frequentou os melhores jardins de infância Montessori, Piaget. Cursou o ensino básico e médio em escola alternativa, eubiose, método Paulo Freire. Fez aulas de inglês. Guitarra. Mergulho. Passou em primeiro lugar no vestibular. Cursou Direito, Administração, Contabilidade. Trabalhou nas empresas mais top do lago, galgando a ascensão profissional degrau a degrau. Até chegar a ouvidor na empresa subaquática do Tio Patinhas.

A função do peixe era, óbvio, ouvir. E solucionar. Ouvia reclamações das mais coerentes às totalmente esdrúxulas. E resolvia problemas em geral.

O dia em que fora salvo pelo pato foi péssimo. Se fosse possível, o peixe teria fumado um cigarro para desestressar. Problemas insolúveis. Pressão do chefe. Corte de gastos. Engarrafamento. Para completar, a tarrafa.

Embaraçou-se por pura distração. Quanto mais debatia, mais se embaraçava. Mínima chance de sobrevivência. Destino inglório o do peixe, tão estudado, tão competente, virar moqueca.

domingo, 28 de novembro de 2010

Presente-história para o blog Escolhas, da amiga C:

Domingo, 17:30. Chegando em casa pra lá de Bagdá depois de um happy hour pra lá de alcoólico com amigos pra lá das antigas:
Sobrinho de 7 anos:  Vamos jogar futebol?
Eu: (com a fala engrolada e empastada pelas 17 cervejas): Não. Tou com sono. Vou dormir.
Sobrinho de 7 anos: O que você tem na boca?
Eu, crente que enganava o sobrinho: chiclete.
Sobrinho de 7 anos: só vou poder mascar chiclete depois dos 15 anos.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Explicação necessária

As imagens que ilustram a história do pato que queria ser o Tio Patinhas são pirateadas a partir de pesquisa no google. As que eu gostaria de postar estão em livros encaixotados, sabe-se lá guardados onde.

O pato que queria ser o Tio Patinhas - parte 4


Depois do ocrrido a pata obrigou o pato a fechar o bico. Por receio dele gastar o último desejo.

A pata enfrentava um dilema tripartido: a) como conciliar a convivência com o horroroso pato-burro e ainda por cima pobre; b) convencer o pato a aceitar sua condição híbrida, desejar ser rico de novo, nem que fosse só quaquilionário como o Tio Patinhas; c) tirar o máximo proveito do desejo do pato e em seguida pedir o divórcio.

Quanto à alínea “a” era moleza. Ela nunca tinha sido de grandes arroubos amorosos. Quanto à “c” também não teria dificuldades. O pato era um sujeito fácil de se convencer. O problema estava em “b”. O pato era turrão.

Enquanto a situação no ninho dos patos não se resolvia, vejamos a história do peixe.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O pato que queria ser o Tio Patinhas - parte 3

Para o pato, ter sido o Tio Patinhas bastava. Mas a pata era insaciável. O pato repetiu as palavras do peixe. A pata exasperou-se: Jumento! Só mais 3 desejos?
 
Pois eu preferia que me nascessem orelha e rabo a aguentar tanta falta de respeito - o pato retrucou. 
A pata viu horrorizada surgirem orelhas e rabo cabeludos surgirem no pato.
 
Tomado de fúria, o pato não notou a transformação. Continuou: eu preferia voltar a ser pobre, mais pobre que o Tio Patinhas, pobre do jeito que a gente era antes de encontrar o peixe do que pedir a ele nem que fosse um alfinete.
 
Ai, meu deus! gemeu a pata. No mesmo instante o edifício de 152 andares se transformou-se primeiro na caixa forte e por fim no velho e miserável ninho. As roupas chiques da pata viraram molambos. As joias, bijuterias. O perfume francês virou colônia paraguaia.
 
Além do mais – continuou o pato – eu queria mesmo...
A pata era rápida em matemática. Fez as contas: o pato tinha desperdiçado 2 desejos. Faltava 1. Precisava salvar a situação, custasse o que custasse. Interrompeu. Implorou:
Nem mais uma palavra ou você põe tudo a perder.

(continua amanhã)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O pato que queria ser o Tio Patinhas - parte 2

Certo dia o pato pobre enrolou-se em uma tarrafa quando nadava no lago. Ao desembaraçar-se, notou um peixe aprisionado nela. Apesar de néscio, o pato era bondoso. Libertou o peixe. Em troca, o peixe ofereceu gratidão eterna. Caso o pato necessitasse, era só chamar.

O pato contou o sucedido à pata. A pata enfureceu-se. – Otário – vociferou – não vê que era um peixe encantado? Volte e peça a ele te transformar no Tio Patinhas.

O pato obedeceu. Chuviscava. Chamou o peixe. O peixe atendeu o pedido. Ao invés do ninho, ao voltar o pato encontrou a caixa-forte do Tio Patinhas. Ao olhar-se no espelho, viu-se vestido com o jaquetão vermelho, a cartola, as polainas e os óculos de leitura do Tio Patinhas.

Nadou em dinheiro. Almoçou em Paris. Jantou em Nova Iorque. Rodou o mundo. Aproveitou. Gastou.

Até baixar o nível do dinheiro da caixa forte. A pata repreendeu o pato: - Simplório até no desejo! Tio Patinhas é mendigo ao lado de Bill Gates! Mandou o pato procurar de novo o peixe.

O pato foi. Chovia a cântaros. O peixe atendeu o desejo. O pato encontrou, ao invés da caixa-forte, um edifício de vidro espelhado de 152 andares. A pata fez cirurgia de redução do estômago, esticou as rugas, diminuiu o bico, suspendeu os supercílios.

A pata não tinha mais tempo para o pato. Esteticista. Massagista. Psicanalista. Costureira. Etcétera. Brigavam nos poucos momentos que passavam juntos. Por descontentamento da pata. Reclamava de tudo. Da internet. Do celular. Do mordomo Garnett. Da falta de ambição do pato.

A pata mandou o pato voltar ao peixe. O pato, mesmo burro, sabia. Não era boa ideia. Mas tanto a pata atazanou que ele foi. Caía uma tempestade. O pato quase foi arrastado pelo vento. Quase foi atingido pelo raio. Quase ensurdeceu com os trovões.

O peixe estava contrariado. Apesar de considerar a dívida mais que paga, concederia ao casal palmípede três desejos-bônus. E que se escafedessem ou se arrependeriam para sempre. 

(continua amanhã)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O pato que queria ser o Tio Patinhas


Era uma vez um pato. Um pato pobre. O sonho do pato era ser muito rico. Rico como o Tio Patinhas.

Para ser o Tio Patinhas o pato até vestiria o jaquetão vermelho ridículo. O cinto preto de fivela larga. As polainas. A cartola. Morreria de medo dos irmãos-metralha levarem-lhe a moedinha nº 1. Cercar-se-ia de sobrinhos-urubus interesseiros, que só esperavam a herança. Qualquer coisa. O pato não via desvantagens em ser o Tio Patinhas.

Só que para ser rico era necessário ser, antes de tudo, inteligente. Esperto. Ousado. Atirado. Oportunista. O pato não era nada disso. Era apenas um pato.

Se fosse rico o pato construiria uma piscina. Igual à do Tio Patinhas. Nadaria em dinheiro. Tudo bem, seria nojento, incômodo, o cheiro deveria ser horrível, dinheiro passa de mão em mão, é cheiro de bactérias, dinheiro é sujo, dinheiro é isso, dinheiro é aquilo. Não importava. Para o pato, dinheiro era bom. E quanto mais, melhor.

Se fosse rico o pato andaria de limusine. Helicóptero. Jatinho. Submarino. Mandaria e desmandaria. Investiria na bolsa. Negociaria poços de petróleo. Abraçaria causas humanitárias. Sonegaria impostos. Teria o que quisesse. Na hora que quisesse.

Contrataria um mordomo chamado Garnett. Alfaiate. Barbeiro. Chapeleiro. Dama de companhia. Estagiário. Faxineira. Geriatra. Homeopata. Intérprete. Jardineiro. Lavadeira. Nutricionista. Ourives. Personal Trainer. Quiropata. Relações Públicas. Segurança. Tradutor. Urologista. Vidente. Webdesigner. Xerife. Zelador. De A a Z, tirando o K e o Y.

Mesmo sem ter nada de seu, o pato repetia para quem quisesse ouvir: pagaria o que estivesse ao alcance para ser o Tio Patinhas. Nem que fosse por um dia. Um dia não. Uma semana.

Já pensou passar o dia no shopping? Comprar o que lhe desse na telha? objetos com a letra “c”? Carro. Cafeteira. Creme. Celular. Computador. Cristais. Chocolate. Caviar. Colônia. Chantili. Cigarreira. Frequentar os melhores restaurantes só para comer só pratos começados com “f”? Foundi. Frapê. Fromage. Focaccia. Faisão. Framboesa.

Uma semana não, um mês. Para viajar na primeira classe. Fechar os olhos e apontar o mapa-múndi: Montevidéu. Miami. London. Taiwan. Pirâmides do Egito. Palácio de Versalhes. Caribe. Esqui nos Alpes. Ser recebido pelo papa no Vaticano. Tomar caipirinha no terraço do Copacabana Palace. Assim por diante.

O pato apregoava em alto e bom tom: dinheiro traz felicidade sim. Pato sem noção. De Política. De História. De Economia. De Sociologia.

Continua no próximo post

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

X, o telefone, Y

(versão gay de historinha publicada em outubro de 2010)
X apaixonou-se por Y em uma reunião de trabalho. Já o tinha visto antes, de patins, fone de ouvido, no Parque. Exultou quando soube que trabalhariam no mesmo projeto. Houve muitas reuniões. E um coquetel para comemorar o fim delas. Serviam champanhe. X tomou vários.
Y aproximou-se. Charmoso como um ator francês. Lindo como um modelo italiano. Ardente como um dançarino de tango. Conversaram banalidades. Separaram-se, outras rodas, o mesmo papo. Mas mesmo afastados, de qualquer ponto onde estavam, como ímãs, os olhares de X e Y atraíam-se. Até a hora de ir embora.
X estava certo de que Y também estava interessado. Seria muita areia para seu caminhãozinho?, X perguntava-se, no carro, cantando junto com o rádio no último volume: ...aí eu te prometo te deixar mole... mole... mole...
Nem dormiu direito. No dia seguinte, no trabalho, o pensamento fixo em Y. Até de noite.
Jogou o tarô na internet. O Pajem. Alerta vermelho: pensar dez vezes antes de dizer algo, discernimento na palavra falada; a palavra de prata, o silêncio de ouro.
Mas a paixão é cega. X estava obcecado. Precisava agir. Urgente. Graças à terapia (coragem!), à carência (vire-se!) e a paixão cega (o amor remove muralhas!), não deixaria a oportunidade passar. Era fácil. Era só telefonar. Desconsiderou o conselho esotérico.
Decorou um texto divertido. Confiante de que o resto do papo fluiria. Certo de quebrar o gelo do coração mais empedernido:
- Procurei uma desculpa para te telefonar. Não encontrei, mas resolvi ligar assim mesmo.
Ligou. Y atendeu. Foi horrível.
X engasgou-se, a timidez. O texto saiu em fragmentos, meias palavras, frases interrompidas. Os segundos no celular pareceram horas. Y demorou a entender.
Não havia como voltar atrás. Só restava a X pulverizar a situação. Respirou fundo. Retomou o controle do caminhãozinho desgovernado ladeira abaixo, jogou a pá de cal:
- Queria conversar. Que horas você sai daí?
Apesar de incisiva, a emenda foi pior. Y desconversou. Saía às sete. Mas não ia dar, estava enroladíssimo. X raciocinava lento. Faltaram palavras pra arrematar. Balbuciou. Palavras lacônicas, inconclusivas, imbecis:
- Então fica pra outra hora.
Y foi educado. Coitado de X, tão tímido... Não bateu o telefone (sinal de nenhuma esperança); não disse quando X poderia ligar de novo (sinal de quase nenhuma esperança); mas deixou no ar a palavra hoje.
- Amanhã, quem sabe, X ainda murmurou.
Y já tinha desligado. X esperou passar a taquicardia, a falta de ar.
Depois da tormenta veio o alívio. E a frustração. X sentiu-se aliviado por ter ligado, resolvido, lutado contra a procrastinação. E frustrado pela ausência do final feliz. Nunca ligaria de novo.
Imaginou a reação de Y:
1. Y atendeu, desligou e comentou com o colega do lado, entre gargalhadas, que o tiozinho tinha pirado de vez e cinco minutos depois esqueceu o assunto;
2. Y atendeu, emocionou-se (por isso não conseguiu falar) e estaria ansioso por receber outra ligação de X.
Ou nada disso, mania de X fantasiar.
Riu sozinho diante do Pajem na tela do computador. O chefe o abordou:
- Você está bem?
Sim, estava. Há tempos não se sentia tão bem. Teve a cara de pau de sugerir ao chefe marcar outra reunião com Y para avaliar os resultados do projeto.
A esperança de X era dura na queda.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Painho

Não perdoava. Ai da mãe se desse um pio. Fazer o quê?
Eu me escondia no quarto. Em mulher não se bate nem com flor.
Aos 7, me deu cigarro e sermão. Mil vezes morrer que ver filho ladrão, pederasta ou gigolô.
Levou a gente na zona. Puta boazinha. Feliz dele. Morreu sem saber que o filho brochou.
Velório sem choro e sem vela.
Sobrou dinheiro. Ela suspirou aliviada da mão pesada dele. Mãe a gente perdoa.
Primo não. Aos 12. Filho-da-puta. Me obrigou. Meia garrafa de vodca. Fez gato e sapato. Nem aí. Se eu contasse quem se ferrava era eu.
Pelo menos nunca roubei.

domingo, 14 de novembro de 2010

Cachorrada!

Ouvindo Goran Bregovic & His Wedding and Funeral Band (baixado no Eu Ovo) e postando fotos da cachorrada que me cerca.
Pandora

Duda na janela

 Ectoplasmas
 Os vizinhos Sirius e Mila
Valsinha, clonada da Cachtánca, de Tchécov
Filhos de Catira, in memoriam

sábado, 13 de novembro de 2010

Padecer no paraíso

Meu filho, vai tomar banho. Meu filho, já escovou os dentes? Meu filho, só janta depois de lavar as mãos. Meu filho, não seja malcriado, eu sou sua mãe. Meu filho, hoje não tem sorvete, você está com dor de garganta. Meu filho, é pecado deixar comida no prato. Meu filho, já falei mil vezes pra fazer xixi antes de dormir. Meu filho, mijou na cama outra vez? Meu filho, o que será de você se eu morrer de repente? Meu filho, dinheiro não nasce em árvore.

Meu filho, quebrou os óculos de novo? Meu filho, hoje não precisa ir à escola. Meu filho, cadê o boletim? Meu filho, foi injustiça da professora. Meu filho, sem estudo você nunca será nada na vida. Meu filho, já pensou se eu morrer amanhã? Meu filho, toma um dinheirinho pro lanche. Meu filho, sai do computador. Meu filho, para de olhar pelo buraco da fechadura. Meu filho, respeite os mais velhos.

Meu filho, deixa a filha da empregada em paz. Meu filho, abaixe a música. Meu filho, nunca mais aponte o dedo pra mim. Meu filho, ah, se seu pai estivesse vivo! Meu filho, você vai calçar esse tênis imundo, essa calça rasgada? Meu filho, fumar dá câncer. Meu filho, isso no seu bolso é maconha? Meu filho, quando você vai aprender a arrumar a cama e a jogar a roupa suja no cesto? Meu filho esse amigo não é flor que se cheire. Meu filho, qualquer dia desses eu bato as botas e você fica sozinho no mundo.

Meu filho, avise quando dormir fora. Meu filho, seu tio quer conversar de homem pra homem com você. Meu filho, quando você vai tomar vergonha na cara e arranjar emprego decente? Meu filho, eu não tenho mais condições de te sustentar. Meu filho, vai sair de novo? Meu filho, eu só durmo quando te ouço chegar. Meu filho, chegou bêbado de novo? Meu filho, meu sonho era ter um netinho. Meu filho, nunca mais traga essa sirigaita na minha casa. Meu filho, tudo bem, eu tiro o dinheiro da poupança pra comprar seu carro.

Meu filho, não levante a mão pra mim. Meu filho, larga essa faca. Meu filho, de quem é o revólver debaixo do travesseiro? Meu filho, só pode ser brincadeira. Meu filho, o que eu fiz de errado agora? Meu filho, largue essa arma agora. Meu filho, não me assuste desse jeito. Meu filho, que loucura é essa? Meu filho, você nem sabe atirar. Meu filho, atira que eu não aguento mais!

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Reizinho Ricardo

Era uma vez o reizinho Ricardo. Discursar no natal, abrir o bailinho do ano-novo e distribuir moedinhas de chocolate no dia de cosme-e-damião eram as suas atribuições. O resto do tempo o reizinho Ricardo tomava chá de rosinha do alto de seu troninho no salão mais chique da torrinha mais ajeitada do castelo.
Um belo dia a paz do reininho foi ameaçada. O generalzinho do reino vizinho rebelara-se, condenara à guilhotina a pobre rainha Barbie e declarara guerra ao reizinho Ricardo, ao reininho de Vitória Régia e ao principado dos Teletubbies.
O reizinho Ricardo convocou o Conselho de ministrinhos. Nunca tinham passado por situação semelhante. Telefonou para Vitória Régia. Se ela também não sabia o que fazer, imagina o destrambelhado príncipe dos Teletubbies!
À noite o reizinho não tomou a sopinha. Não comeu a maria-mole da sobremesa. Perdeu o sono pensando, abraçava os travesseirinhos, empurrava o edredon bordado com coelhinhos. Quando o dia amanheceu, o reizinho Ricardo urinou no peniquinho e decidiu aliar-se aos reinos ameaçados para enfrentar o generalzinho golpista.
O coração de Vitória Régia bateu forte pelo reizinho Ricardo. O príncipe dos Teletubbies decretou feriado. Elegeram o reizinho Ricardo chefe da tríplice aliança.
O reizinho Ricardo trocou o cetrinho pela espingardinha de chumbo. A coroa pelo elmo do bisavô. O manto com gola de pele pela roupinha a prova de balas. As meias de seda e as sapatilhas de cromo alemão pelas botinhas do Pequeno Polegar.
O coração de Vitória Régia bateu forte de novo, tão bonitinho era o reizinho Ricardo vestido de soldadinho.
O reizinho Ricardo passou em revista às tropas. Montado em seu cavalinho de platiplanto. Partiram. Era lindo o exército do reizinho Ricardo avançando pelos morrinhos verdes, os primeiros raios do sol incidindo nas cores das mil florezinhas das encostas e refletindo-se no laguinho azul. Mas a beleza durou pouco. Cem, mil, dez mil inimigos surgiram perfilados, bandeirinhas cor-de-rosa e fúcsia desfraldadas, cercando o exército do reizinho Ricardo.
O reizinho Ricardo fingiu que não viu. Insuflou patriotismo na tropinha, ao som dos clarins e tambores de música lounge. O exército do reizinho Ricardo avançava, como se se dirigissem para o piquenique da florada das cerejeiras.
A batalha foi sangrenta. Carnificina total. O reizinho Ricardo resistiu bravamente. Ele, que só sabia manipular as luzes laser do cetrinho a pilha. O exército do reizinho Ricardo foi dizimado. O estertor da morte dos soldadinhos, os cavalinhos estrebuchando em câmara lenta no campo de batalha, a agonia do reizinho Ricardo atingido no calcanhar pela flecha do generalzinho golpista.
Os sobreviventes voltaram como puderam para noticiar a derrota. O príncipe dos Teletubbies assinou armistício. Vitória Régia entrou muda em seus aposentos. Esperou a aia dormir. Tirou do bolso da anágua um punhalzinho de prata e o cravou impiedosamente no coração. Ao abrir as cortinas no dia seguinte a aia gritou. Viu uma rosa, mais rubra que os lábios da foto do reizinho Ricardo no portarretratos da cabeceira, brotada do peitinho branco de Vitória Régia.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

D & J

Le diable au corps

Tinha o diabo no corpo. Bebê, jogava-se da cadeirinha por nada, a sopa quente, ou fria, ou com beterraba, ou. Na escola, piscina do clube, barbeiro, dentista, birras, pirraça, convulsões. Dúzias de pediatras, psicólogos, homeopatas, alternativos. Inútil. Era mesmo o diabo. Adolescência de sexo, sexo e sexo. Aos 10, os lençóis e colchão manchados, a parede ao lado da cama; horas no chuveiro; no banheiro da escola; na matinê do cinema. Aos 12 aconteceu. No vestiário. Com um cara de 18. O primo? O faxineiro? O professor de educação física? O monitor do 3º ano? Seguiu-se a lista. Médico, tio, os caras da antena parabólica, da natação, etc. O diabo muito bem alojado no plexo sacro, sexo, pelve, nádegas, coxa, pernas, pés. Corpo modelado por arte e vontade dele. Aos 17, pleno dos poderes. Levava a boate à loucura, anjo erguido, Jônatas. Dançava e dançava e dançava, o peito liso, branco, suor de lavanda escorrendo pela fenda nas costas, o cós baixo da calça. Divindade de todos e de nenhum. 18,19, 20. Ritmo alucinado, prazer, desejo, beleza. Orgia de viver. Aos 23, fotos na revista, filme. Rei todo-poderoso, senhor de si, e dele, o diabo. O que viria aos 30? O escuro, o medo, o nada, o vazio? Pulou do 20º, no dia em completaria 25.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Suavidades cotidianas 1

Hoje saiu A Força, décimo primeiro arcano. Conselho: controlar a raiva. Influenciado pela nigeriana do post passado, comecei a escrever uma historinha raivosa que talvez venha a ser publicada. Sobre alguém que odeia a própria mãe! Ficção pura, adianto. Minha relação filial é resolvidíssima.
......................................................................
Estou mais para a fragilidade da moçoila elegantérima ao lado tentando delicadamente enfiar-lhe goela abaixo uma jujuba que para a virilidade do bofão feioso, sarado e seminu abaixo, querendo sodomizar o choroso e sufocado leão.
 ......................................................................
O mar não tem estado pra peixe. Tufões, tsunamis, erupções subaquáticas e mudanças abruptas das fases da lua. Então a mensagem da carta foi oportuna.
........................................................................
Enquanto historinhas não vêm (são pelo menos 2 na linha de produção: a do filho e a de dois amigos) postarei suavidades cotidianas. Para o blog não fenecer. M que me perdoe se se misturarem nesses dias o público e o privado.
........................................................................

Parafraseando as palavras da canção de Renato Mattos: "um telefone é muito pouco pra quem ama como um louco e mora no Plano Piloto. Se o cara que o cara ama tá pra lá do Gama, mata de desgosto".
 .........................................................................
"A seu turno a gramática abria-se como um cofre de confeitos pela Páscoa. Cetim cor de céu e açúcar. Eu escolhia a bel-prazer os adjetivos como amêndoas adocicadas pelas circunstâncias adverbiais da mais agradável variedade; os amáveis substantivos! voavam-me à roda, próprios e apelativos, como criaturinhas de alfenim alado; (...) Quando muito, as exceções e os verbos irregulares desgostavam-me a princípio; como esses feios confeitos crespos de chocolate: levados à boca saborosíssimos."
Raul Pompeia (ou será Pompéia?), em O Ateneu.
..........................................................................
O que seria de mim sem os adjetivos e os advérbios?

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Deixe o prazer fluir

A carta de hoje, o 3 de copas, vigésimo quinto arcano, me manda deixar o prazer fluir. Pergunta há quanto eu não faço coisas que gosto. Sugere que eu relaxe e curta mais a vida. Que eu me abra ao prazer para que ele flua na direção do mundo. Que eu saia com os amigos, conheça pessoas, permita-me estar no mundo. Só assim o mundo me atenderá, possibilitando desfrutar dias agradáveis. Só assim minha alma ficará mais leve. Só assim minha visão sobre as coisas se alargará.
 ................................................................
 Tenho feito aquilo que gosto, sim. Talvez não com tanta intensidade. Fazer o que se gosta é difícil. Exige uma porção de coisas chatas: planejamento, estratégia, tempo, calendário, cartão de crédito, etc. Sobre relaxar e curtir a vida, conselho dificílimo de ser seguido pelos capricornianos. Estranha é a imagem do prazer fluindo na direção do mundo. Lembra golfada, enxurrada, ejaculação. Talvez seja por aí.
 ..................................................
 As últimas semanas aconteceram no piloto automático. Energia mal mal para assistir filmes gays sofríveis baixados na internet - garotos bonitinhos e seus draminhas existenciais e sexuais mais ou menos intensos – amores impossibilitado pela droga, pelos laços familiares, pelo álcool, pela loucura, pela incompetência. Salvam-se as trilhas sonoras ultracult de uns e de vez em quando cena erótica digna de rewind. 
 .............................................................................................................
 Leitura homeopática do romance-thriller da nigeriana Helen Oyeyemi, A menina Ícaro. Compra aleatória na promoção de R$ 9,90. Narrado por uma menina de 8 anos que lê Shakespeare, conversa sobre passagens bíblicas obscuras, escreve haicais, tem crises histéricas na escola  e – a parte previsível – encontra uma amiga imaginária ou do Além, malvadérrima. Morro de medo!
 .............................................................................................................
 Poema da garota:

Quando ela se foi, fiquei vazia.
Pensei que a lembrança eu guardaria
Mas ao procurá-la em minha mente
Fiquei sabendo que ela estava morta
Pedi para ir bater à sua porta
Para me encontrar e seguir em frente.
Não me deixaram, pois seu intuito
Era prender-me para todo sempre.
..............................................................................................................
 Com a chuva veio a melancolia. Da secura de alguns dias atrás à umidade relativa de 99%. A cidade úmida, as roupas úmidas, a alma, tudo cinzento, vontade de dormir, acordar, dormir de novo, dormir até chegar de novo a seca: a eletricidade no ar, a estática, só o essencial, a síntese, o estéril, a poeira vermelha em oposição ao excesso, a fertilidade, a terra, úberes, as sementes inchadas. 
 ..............................................................................................................
 Para completar a histérica alegria consumista natalina. Preparar o fígado, o estômago o sorriso colgate para as incansáveis festas de confraternização.
 ..............................................................................................................
 Exposição de nus masculinos comportados na quinta-feira. Fotos daquelas que se dá pra mãe no aniversário, alguém disse. Faltou o espírito transgressor dos anos 80, pitada de Mapplethorpe? No sábado, teatro. Fragmentos do Desejo, da Cia Dos a Deux. Lindas cenas sem palavras sobre, como sempre, relacionamentos. Pedofilia, abuso e incesto tudo junto logo na segunda cena. Luz, marcação, ritmo, cenário, interpretação, figurino, ritmo, sonoplastia, objetos e movimentação cênicos, até programa impecáveis. Sobrou final. Sempre sobra. Sensação de “podia ter acabado antes”. Fim do domingo sozinho no café pensando na vida e assistindo o bêbado dormir por cima do copo de uísque.
...............................................................................................................