Na véspera havia a possibilidade. Eu me esmerei em salamaleques, nobreza, generosidade e solicitude inúteis. Pois que tudo isso revelava, ao invés de encobrir as verdadeiras intenções:
meu coração era uma flor carnívora (ou, se existisse) um grande fruto úmido, escancarado, exsudando aquele líquido viscoso, aquele cheiro inebriante e pestilento e intenso de paixão, de desejo, de tesão, de amor mesmo. Mil tentáculos-pistilos prontos para envolver & te abraçar, para engolir o corpo-ave, o corpo-coleóptero, o corpo-carne suado que era o teu, que eu via estendido, que eu desejava e me desesperava por tocar sem tocar, por não possuir, por saber ser interdito, mesmo antes, para sempre.
Depois, a possibilidade que havia deu lugar ao vazio, ao silêncio & à solidão. Tratei de encharcar o vazio de dentro da flor-fruto morta com vinho. De ressecar os pruridos com cinzas & tocos de cigarro do cinzeiro. De preencher o silêncio com poemas lidos à meia voz pastosa & arrastada & antipática. De ocupar a solidão trocando a água dos vasos, conversando com as fotografias dos porta-retratos, pulverizando inseticida, esfregando óleo de peroba no verniz velho das cadeiras, rabiscando o teu nome & o teu falo & os dias que nunca mais
virão na parede de gesso & limo da prisão da tua ausência.
Restou um gozo choco. Povoado de fantasmas com rostos & corpos misturados, o teu inclusive, indistinguível, projetados no teto. E uma nódoa fosforescente, em forma de caveira ou coração, no meio do lençol.
...
O alvorecer foi melancólico. Por causa da noite mal dormida, do calor de verão, da brisa morna do céu muito azul e sem
nuvens avistado pela fresta da janela. Aquela vontade de permanecer imóvel, olhos fechados, o corpo lasso e suarento resistindo ao contato desagradável do lençol. Um morto-vivo esperando uma bala de prata no peito, uma estaca fincada no coração, um copo de cicuta com coca-cola corroendo as entranhas - ou uma simples chamada telefônica (a cobrar, que fosse) para me restituir a existência.
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