terça-feira, 28 de junho de 2011

Iago, Jacó & Esaú


Assustadora a forma como a maldade de Iago contamina o bom senso do Mouro durante o desenrolar de Otelo. Como funcionam bem os ardis utilizados por ele para engambelar o General, que deposita nele confiança crescente e irrestrita.

O nome Iago vem do latim Iacobus que por sua vez é a versão do hebraico Yaakov, aportuguesado para Jacó.

A partir dessa informação pouco embasada eu concluí superficialmente que o nome Iago carregava negatividade, maldade. Que Shakespeare tinha aproveitado e potencializado ao máximo as espertezas e a sede de poder do Jacó bíblico para criar seu arquivilão, pai de todos os vilões e vilãs telenovelísticos.

A suposição morreu na origem por falta de argumentos. Esperteza e maldade são coisas muito diferentes.

Mas a pesquisa me fez relembrar a história de Esaú e Jacó. É uma das minhas preferidas. Devo ter decorado a trama nas aulas de catecismo aos 7 anos. Li a versão de Machado de Assis, cheia de sutilezas psicológicas, na adolescência. E só depois de adulto compreendi nela a metáfora do conflito étnico que atravessa os séculos. Mesmo batida, vale a pena recontar. Só pelo gosto.

A mãe chamava-se Rebeca. O pai, Isaque, descendia direto do patriarca Abraão. Rebeca era estéril. De tanto o casal pedir, Javé concedeu-lhes 2 filhos. Com um porém: (Voz estereofônica de Javé): Duas nações há no teu ventre, e dois povos se dividirão das tuas entranhas, e um povo será mais forte do que o outro povo, e o maior servirá ao menor. Ou seja, os gêmeos Esaú e Jacó.

Esaú nasceu primeiro. Pela lógica da tradição, Esaú seria o povo forte; e Jacó o povo subjugado.

Esaú era peludo, forte, rude, impulsivo e gostava de caçar. Jacó era liso, delicado, racional e gostava de ficar de bobeira na tenda. Nas barras da saia da mãe Rebeca. Tentando conquistar sem sucesso as graças do quase vetusto Isaque.

A primeira vez que Jacó passou a perna no irmão foi no próprio parto. Diz o Gênesis que ele nasceu segurando o calcanhar de Esaú. Talvez uma tentativa de retê-lo um pouco mais no ventre de Rebeca e assim vir à luz em primeiro lugar.

Lá pela adolescência o senso de oportunidade de Jacó manifestou-se. Junto com o imediatismo e a falta de visão a longo prazo de Esaú. Jacó aprontou de novo.

Jacó, sem muito o que fazer durante a tarde, tinha preparado lentilhas. O cheiro estava ótimo. Esaú chegou exausto e faminto da caçada. Salivou. Pediu para comer as lentilhas. Jacó negociou: Só se você me der o direito da primogenitura, brother. Esaú topou: De que me servem os direitos de primogênito se eu estou morrendo de fome? Negócio fechado.

Mais alguns anos se passaram sem muitas novidades. Até acontecer a terceira e definitiva rasteira de Jacó. Isaque envelhecera. Estava quase cego e provavelmente meio surdo. Desejou comer guisadinho. Ordenou a Esaú preparar-lhe um, com carne de caça. Mal Esaú saiu, Rebeca chamou Jacó. Mandou o filhinho matar 2 cabritos do rebanho. Ela mesmo preparou o guisado que o marido gostava. Vestiu Jacó com as roupas de Esaú. Borrifou em Jacó o perfume de Esaú. Cobriu-lhe as mãos e o pescoço com pedaços de pele de cabrito para disfarçar a delicadeza da cútis de Jacó.

Dito e feito. Antes de comer, Isaque apalpou as mãos e o pescoço de Jacó. Caiu como um patinho, crente que o embusteiro era o peludo Esaú. Isaque comeu que se fartou. Por fim, feliz e de barriga cheia abençoou Jacó como se fosse Esaú.

Quando Esaú chegou com a caça, Inês era morta. Isaque gastara a única bênção que possuía com o caçula Jacó. O herdeiro da tradição hebraica era Jacó. Sem possibilidade de anulação ou revogação do mandato.

Os irmãos romperam relações. Com medo de ser morto pelo irmão, Jacó fugiu para a Mesopotâmia. No caminho sonhou com anjos subindo e descendo escadas. Também com uma voz estereofônica (a mesma da profecia) anunciando que o povo de Jacó seria mais numeroso que a areia do deserto.

E o enganado Esaú? Coube-lhe o espinhoso prêmio-consolação: originar os povos árabes.

Diz-se que os irmãos fizeram as pazes na velhice.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Górgona

Em pouco mais que meia hora ela despejou a amargura acumulada por 50 anos. Os olhos vermelhos, secos, furiosos e ao mesmo tempo desamparados. Ouvi calado. Entre o fascínio e o horror. O tom de voz exaltado beirava ao teatral. Um teatro empoeirado, teias de aranha, lâmpadas queimadas, morcegos, traças no cordame, baratas nas frestas e pulgas nos veludos das cadeiras. Tanto tempo longe, eu não me lembrava mais do ódio concentrado que havia ali. Fascínio: aquilo dava um romance. Pelo menos 700 páginas atravessando 4 ou 5 gerações; dezenas de personagens medíocres; cenários de horror e sofrimento; traições; maledicência; acusações. A matemática inexata da dor. Horror por conhecer o lado podre de gente viva, dos mortos, de gente próxima, distante, gente que eu nunca mais tinha ouvido falar. Mágoa fermentada. Aumentada pelos anos. Eu não permiti que aquilo me respingasse. Eu não me permiti ser contagiado pela amargura. Só fiquei triste. Mas com esperança. De que ao falar ela tenha se esvaziado. Tenha se aliviado de carga tão turva. Esperança que o mesmo tempo que se encarregou de petrificar o passado dela - que o mesmo tempo sirva para apagar, clarear, suavizar tantas recordações da casa dos mortos.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Bate-papo na UnB Planaltina

Mais fotos na página Conversas, ao lado.

Wilza Carla

Que descanse em paz, iluminada por um céu de estrelinhas de estrasse e purpurina, deitada em uma nuvem de marshmellow, sentada na banca de jurados do apocalipse e rodeada de uma legião de anjos-drag-queens...

sábado, 18 de junho de 2011

A linda rosa juvenil

Tentava abrir a porta do caixa eletrônico. Ela, dentro, veio ajudar. "Você é Gladstone?", perguntou. "Eu sou E..." "Nós já fomos princesa e príncipe um dia". Eu me lembrei. Da foto. Na segunda série. A linda rosa juvenil juvenil juvenil. Perguntei como ela tinha me reconhecido. Ela não soube explicar. Falamos sobre o que fizemos durante essas mais de 4 décadas. O tempo suficiente para a máquina entregar o dinheiro dela, o meu extrato. Haveria algo mais a dizer? Nós nos separamos. Felizes, talvez. Com um aperto de mão.

colagens com ciúmes



quarta-feira, 15 de junho de 2011

Doutor Cezinha

Tenho duas perguntas que vêm rolando há dias, cujas respostas não consigo concluir. Porém, diante das atuais e alarmantes circunstâncias (a queda considerável de pontos de audiência, a crise existencial & depressiva, o sentimento de culpa por me sentir improdutivo e sem objetivos), aqui registro, a quem interessar possa. São elas: 1 - emitir opinião sobre as três políticas mais importantes; e 2 - dizer aos leitores qual é o meu grande dever para com o meu país. Quanto ao 1, por mais que eu tentasse eu não sairia do óbvio: as 3 políticas mais importantes são a política da educação, a política da saúde e a política da distribuição de renda. Sem o tripé social nenhuma outra proposta se sustenta. Quanto ao 2 eu reafirmo: Limites geográficos ou patriotismos pueris não me contêm. Deveres, se os tenho, são deveres de ser humano. De homem do mundo. Por falar nisso, será que ainda dá tempo de jogar na megassena?

terça-feira, 14 de junho de 2011

Dalton Trevisan

68.

Pronto me calo, a minha mão ponho na boca. Todas as noites do velho são dores, eis que vem o fim. No tempo das aflições minha alma é uma lesma aos uivos que retorce o chifre e se derrete no sal grosso. Devo catar as migalhas debaixo da mesa? Morder a pelanca do meu braço? Comi a gordura, engoli as delicadezas, cuspi os ossinhos da sambiquira. E fui deixado só com o buraco do meu umbigo. Agora me deito e sem falta morrerei.

(101 Ais)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Kiko

Médico. Eu prometi a vovó. Para curar os doentes. Para receitar remédio de pressão. Vovó tem pressão alta. Papai queria que eu fosse jogador. De futebol. Vôlei não. Vôlei é jogo de mariquinha. Papai que disse. Eu não gosto de futebol. Nem de vôlei. Eu gosto de jogar queimada. Queimada também é jogo de menina. Ou de mariquinha. Foi meu primo quem disse. Mamãe quer que eu seja artista de novela. Papai diz que novela é coisa de mulher. Que ator de novela é gay. Na novela tem um gay. Papai é do Corinthians. Eu sou do Botafogo. Aquele da estrela branca no meio do escudo preto. Eu acho a estrela linda. Eu sei desenhar estrela de 5 pontas. Só não sei direito ainda desenhar o escudo. Se eu for jogador eu quero ser goleiro. Goleiro tem a roupa mais bonita do time. Camisa de manga comprida. E luvas. Tudo preto. Com a estrela branca no peito. Se eu for médico eu só vou me vestir de branco. Jaleco, camiseta, calça, sapato, meia. Até cueca. Jaleco é aquele tipo de camisa comprida que o médico usa por cima da roupa. Vou ter um óculos de armação branca. E ouvir o coração das pessoas pelo estetoscópio. Es-te-tos-có-pio. Vovó me ensinou. Outro dia eu levei uma bolada. No jogo da escolinha. Eu quase desmaiei. Meu primo falou que quem desmaia é gay. Ainda bem que eu não desmaiei. Só fiquei tonto. O professor chamou meu pai. A gente foi para o hospital. Eu fiz todo tipo de exame. Radiografia raio xis. Raio xis é uma espécie de fotografia dos ossos. Tomografia computadorizada é para fotografar o cérebro. Não deu nada. O médico que me atendeu era muito legal. Perguntou o que eu queria ser quando crescer. Médico. Claro. Eu perguntei porque raio xis se chama raio xis. Ele me explicou mas eu me esqueci. Me deu alta. Dar alta é deixar o doente ir para casa depois de curado. Quando a gente saiu do hospital meu pai me disse que ia me dar uma camisa do Botafogo. Eu queria mesmo era outra coisa. Eu não vou contar o que é. Se eu pedir o meu pai vai me chamar de gayzinho. Eu não sou gayzinho não. Quando eu crescer eu vou ser médico. Pediatra ou veterinário. Vou me casar com uma esposa. E vou ter 2 filhos. Um menino e uma menina. Davi e Celina. Davi é o nome do médico que me atendeu. Celina é o da minha professora de música.  Eu não vou chamar o Davi de mariquinha se ele gostar de jogar queimada. A Celina podia ser loira.

domingo, 12 de junho de 2011

George Orwell

O Abate de um Elefante: Ouçam o áudio - gravação da crônica de George Orwell - em chicoecarvalho.blogspot.com

Intervalo com elefantes 2

vietnamswans.com
(...)
Este mesmo elefante era ainda notável por outra habilidade original. O guarda, quando o montava, instalava-se numa grande colcha que lhe cobria o lombo. Quando descia dava-lhe ordem para retirar a colcha, o que o animal fazia não com a tromba, porém contraindo e distendendo alternativamente os músculos das costas. O movimento da pele pouco tensa fazia deslizar a colcha pelo flanco, até cair no chão. O elefante estendia-se então com cuidado e inteiramente sobre a relva, dobrando-a como se faz com um guardanapo; finalmente enrolava-a com a tromba e atirava o volume para as costas, onde ele ficava tão seguro como se fosse colocado por mãos humanas. (Richard Carrington, Os Elefantes, 1963)

Elephant day

"Elephant Day", northern Thailand - http://www.bbc.co.uk/news
(...) É assim que o retórico Eliano conta como 12 animais, dos mais bem ensinados, foram um dia levados a um teatro, onde fizeram uma perfeita demonstração de passos variados, umas vezes marchando em círculo, outras dividindo-se em vários grupos e jogando à passagem flores para cada lado. No fim da representação, sempre imperturbáveis, foi-lhes oferecido, pelos romanos, um banquete régio. Enormes leitos foram colocados na arena, cobertos de ricas tapeçarias e decorados com pinturas. Ao lado dos leitos foi servido um banquete em mesas de marfim e madeira de cedro, em baixela exclusivamente de ouro e prata. Os 12 elefantes aproximaram-se com dignidade; 6 estavam vestidos de homem e 6 de mulher. Com imenso à vontade instalaram-se nos coxins, e uma vez todos protos estenderam a tromba e comram os acepipes para eles preparados, com dignidade e graça notáveis. (Richard Carrington, Os Elefantes, 1963)

espelho meu...

para ouvir antes de dormir

Para ouvir debaixo do cobertor

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Intervalo com elefantes

Além do seu emprego como animal de carga, puxador e montada para caçar, o elefante prestou em outros tempos ao homem serviços inesperados. Vimo-lo, por exemplo, em diferentes circunstâncias, servir de carrasco. O amestramento dos elefantes para esse papel era um tanto macabro, pois obrigavam-no a ensaiar diversas vezes com uma vítima imaginária. Começavam dando-lhe ordem para "matar o patife"; então o elefante enrolava a tromba em torno do corpo virtual do malfeitor, depositava-o no chão e lentamente pousava as patas da frente no lugar onde estariam os seus membros. Ao fim de alguns minutos dessa manobra o elefante imobilizava-se, com a tromba erguida acima da cabeça. E quando lhe pediam que terminasse a execução, o animal pousava uma das patas dianteiras sobre o abdomen da imaginária vítima, e a outra sobre a sua cabeça, destruindo assim todo o vestígio de vida. Havia ainda outro costume, que consistia em utilizar dois elefantes para inclinar uma para a outra duas árvores próximas; a vítima era então amarrada às árvores por meio de cordas, um braço e uma perna de cada lado. A um dado sinal os elefantes soltavam as árvores e o criminoso era dividido em 2. (Richard Carrington, Os Elefantes, 1963).

Para ouvir amando...

Para ouvir amando...

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Perazi

O garoto escreve bem. Melhor que eu, na idade dele. Nem se compara. Hoje eles começam cedo. Não há mais espaço para autodidatas. E-mail, telefone, foto, editora. Concordei de tanto insistirem. Bonito, sim. E convencido. Convencido que escreve bem. Que me seduzirá, se não pelo que escreve, pela beleza, pelas carnes firmes. Perguntou a razão de eu ter declarado na revista não gostar dos novos. Eu nem me lembrava. Jornalistas sempre fazem as mesmas perguntas, eu disse. Eu não gosto dos novos porque me irrita narrativa em primeira pessoa. Como se nada mais existisse para contar além do umbiguinho, dos pelinhos, da barriguinha definida e dos pentelhos macios recendendo a tutti-frutti. Como se todos os novos escrevessem em primeira pessoa. Riu. Ele, muito pelo contrário. Como se dissesse: Tiozinho ultrapassado, eu estou aqui para te seduzir em troca de meia dúzia de linhas elogiosas. Escreve em blogs. Meu filho, eu odeio internet. Trouxe Justiça ou Perdão para eu autografar. Edição antiga, ruim, horrorosa. Junto com uma caixa de chocolates caros e uma garrafa de vinho. Depois que se foi eu abri o vinho. Tomei a metade. Folheei o livro. Que diferença do Justiça ou Perdão. Eu quis criar uma atmosfera retrô, ele disse. Citando um Barthes óbvio na folha de rosto. Continhos razoáveis. Uns bons, outros menos. Li tudo. Até de madrugada. Ah, insônia de velho babão. Surpresas. O garoto vai aprender depressa. Realizar o sonho de todos eles: tornar-se um expoente da nova literatura. Não sei se foi o vinho ou as histórias ou os dois - eu me empolguei. Me imaginei comendo o garoto. A bundinha branquinha, lisa, empinada, oferecida. Exatamente como na cena de sexo do último conto.  Li o senhor aos 14 anos. Foi quando decidi ser escritor, ele disse. Gozo de velho mais parece soluço.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

dia a dia mitológico & festivo

cochilar no leito de procusto pode ser fatal para quem tem pernas compridas / ninguém deve roubar as ovelhas do ciclope / pense duas vezes antes de vestir casaquinhos tricotados por dejanira / espelho espelho meu existe alguém mais narciso do que eu? / não se esqueça de convidar as bibinhas teen para a rave no monte olimpo / ganimedes & jacinto & calisto confirmaram presença? / quem convidou a chata da eco? / todo mundo a fim de azarar o coroa barbudo do feixe de raios / por mais linda que seja não diga que seu penteado é mais bonito que o de afrodite / cuidado para não cair na velha cantada da chuva de ouro / abaixe os olhos ao conversar com a górgona / leve preservativos para a orgia das bacantes / drag queens e travecas cuidado com as mênades no melhor da festa / se a festa for em creta é bom levar um novelo

terça-feira, 7 de junho de 2011

Patty

Foto: Yoan Valat no site www.limao.com.br
Na agência disseram que a velha falava inglês. Perguntei: in english? Ela simplesmente me ignorou: Nous parlons le français en France. A japa riu. Velha maluca essa. Primeiro proíbe a gente de usar a cozinha. Depois demora meia hora explicando como ligar e desligar o gás. Não pode abrir a janela. Senão Bridge foge. Bridge é a gata pulguenta da velha. Que fica deitada no sofá. Perfeito para a minha alergia. A velha não deu a chave da porta. A gente tem que chegar até as 10. Não esquecer de desligar o aquecedor. Nunca levar estranhos. Não fumar no quarto. Proibido usar a banheira. Não usar droga. Até o jeito certo de enrolar o absorvente no papel higiênico. Proibido sexo no quarto. Sexo? Só se a japa for lésbica. Ah, esqueci. A japa vai dividir o quarto comigo. Cabelo pintado. Nem tirou os fones de ouvido. A velha não deve ter enxergado os piercings, a tatuagem e a carinha de pervertida da japa. Senão, no mínimo teria recusado. Imagina a velha flagrando a gente pelada se pegando, dentro da banheira proibida? Seguro o riso. Penso em Raskolnikov. Rachar a cabeça da megera com o samovar. Incrível! A velha tem um samovar. A japa tarada perguntou para que servia. Cacilda, como pode uma estudante de literatura não saber o que é um samovar? A velha quase teve um troço. De emoção. Era lembrança do primeiro marido dela. Cinzas guardadas em uma espécie de caneco de chope gigante com duas alças em cima da lareira. Morreu na guerra. Deve ter sido na Guerra do Peloponeso. Eu devia ter batido o pé e ido para o albergue. Ou para o alojamento. Não, filhinha, em casa de família eu fico mais tranquila... Ou aceitava ou desistia da viagem. Se a mãe soubesse do gato, se visse a cara da japa, com certeza me deixava ir para o albergue. Estou morta de cansada. Meus pés estão duas bolas de inchados. Desfazer as malas. Ligar para a mãe. Tomar algum remédio para dormir, para passar o jet-leg. Chamo a japa pra comer na Pizza Hut? À noite eu ligo para a mãe. 4 horas a mais ou a menos?

domingo, 5 de junho de 2011

Pasífae

Contanto que seja anônimo. Eu gostaria de me lembrar. De esquecer. Desligue, por favor, o ar. Minha garganta, minha garganta. Punhais, sim. As lâminas afiadas da memória. As carícias de Ícaro. Como nas histórias. O garoto deitado. O garoto oferecendo-se. Cerejas. Morangos. Blueberries. Madrugada e os cães ladram. Ícaro. Cera derretida e esperma. A brisa do mar na janela. 2º andar. Direto do Estreito de Dardanelos. Meu Ícaro. Dédalus Acompanhantes. Dorme, Ícaro. Acalanto. Devassa, eu. Escrever com tinta vermelha no papel timbrado do hotel. D-E-A-T-H. A bomba de neutrons. No hálito dele. O garoto. Me rasgando toda. Máquina de sexo. Móbile contínuo. Táxi. Os poemas icinerados. A lua sobre a água. Desligue, por favor. Meus óculos. Vaca, eu. Carne. Em baixo, o oráculo. Os corvos. Não, era turvo. Lábios vermelhos úmidos de desejo. O touro branco de Posseidon. Chantagem de Papai Dédalus. Não. Eu ainda não era louca. Ah, os beijos do garoto. O garoto todo dentro de mim. Arcabouço. Vaca intumescida. Cio. Meu Ícaro dorme. Os 500 euros mais bem gastos da viagem. Matem os cães. Fígado. Um cigarro. Mande o garoto embora. Ontem. Desligue, por favor, o gravador. O rei é o único culpado.

sábado, 4 de junho de 2011

3 ou 4 formas de matar elefantes (4)

Nick Brandt, Elephant Drinking,www.artmo.com
"Em breve, perto de uma poça lamacenta, um pouco à nossa frente, descobrimos as pegadas de um macho enorme, que se rolara na lama, salpicando os troncos de várias árvores próximas e aparentemente muito velhas. (...) a alguns metros dali, afastando os ramos espinhosos de uma jujubeira, encontrei-me diante do elefante macho mais alto e maior que ainda tinha visto. O animal apresentava-se de flanco, a mais de uma centena de metros; sua atenção estava sendo atraída por uns cachorros que, despreocupados da sua presença corriam em torno dele, enquanto o velho parecia contemplar surpreendido aquelas singulares criaturas.
Parando o cavalo apontei-lhe a espádua e abati-o no primeiro tiro. A bala atingiu-lhe o alto da omoplata, tornando-lhe a marcha para sempre impossível; e antes mesmo que o tiro ressoasse nos meus ouvidos, vi claramente que o elefante estava entregue. Os cães romperam então a ladrar à volta dele; porém, sentindo-se reduzido à impotência, o velho macho pareceu decidido a não se afadigar, e dirigindo-se a passos lentos, coxeando, para uma árvore próxima, ali se postou quieto a observar os seus perseguidores com ar filosófico e resignado.
Resolvi consagrar um pouco de tempo à contemplação daquele nobre animal, antes de o abater; e tendo desselado os cavalos à sombra de uma árvore, sob a qual iria instalar o meu quartel-general para a noite e o dia seguinte, acendi imediatamente o fogo e pus água a ferver; minutos depois meu café estava pronto. Ali fiquei, sentado na floresta como em minha casa, saboreando calmamente meu café, enquanto um dos mais belos elefantes da África, encostado a uma árvore próxima, esperava o meu alvedrio.
Era, sem dúvida, um espetáculo impressionante; olhando aquele prodigioso veterano da flortesta, eu pensava nos fulvos cervos que gostava de perseguir na minha região natal, achando que se o destino me levara para um caminho mais árduo e perigoso em terra distante eu não perdera na troca, pois agora era dono de florestas imensas, que me ofereciam uma caça infinitamente mais nobre e mais apaixonante.
Tendo por muito tempo admirado o elefante, resolvi fazer experiências sobre os pontos vulneráveis, e acercando-me mais, coloquei-lhe diversas balas em diferentes partes do enorme crânio, que não pareceram absolutamente afetá-lo: apenas respondeu aos tiros recebidos com um movimento da tromba à maneira de saudação, ao msmo tempo que com a ponta desse órgão palpava levemente a ferida, num gesto especial e muito emocionante. Surpreendido e perturbado ao descobrir que apenas lograva torturar o animal e prolongar-lhe os sofrimentos, enquanto ele suportava a provação com tanta calma e dignidade, decidi acabar logo com aquilo. Abri então fogo contra ele, pelo flanco esquerdo, visando atrás do ombro, mas também ali minhas balas não produziram de começo nenhum efeito. Disparei 6 tiros, com minha arma de 2 ranhuras cuos ferimentos deveriam finalmente ser mortais, mas o elefante nem assim deu sinais de prostração; em seguida visei a mesma região com 3 tiros da minha holandesa de 6. Grossas lágrimas lhe escorreram então dos olhos, que fechou e tornou a abrir; sua imensa carcaça foi agitada de tremores convulsos, e caindo sobre o flanco o animal expirou. Suas defesas, de maravilhosa curvatura, eram as mais pesadas que eu ainda vira; pesavam cada uma cerca de 40 quilos. (R. Gordon Cumming - Five years of a Hunter's Life in the far Interior of South Africa - de 1850 - citado em Os Elefantes, Richard Carrington, 1963).

3 ou 4 formas de matar elefantes (3)

Mesmo o caçador menos experiente escassamente deixará de atingir um elefante à distância de 30 metros, considerada normalmente adequada; porém é necessária grande habilidade para alcançar um ponto vital. As obras sobre a caça grossa incluem de um modo geral figuras como as acima, indicando os pontos que o caçador deve visar; constataremos que, apesar do tamanho do animal, as duas regiões principais a atingir são extraordinariamente reduzidas. Para o principiante, o coração é em geral considerado como o alvo mais seguro; porém, à medida que desenvolve as suas aptidões o caçador pode pretender incluir-se na élite (1), abatendo a sua presa com uma bala no cérebro. Quem domina a arte de atingir o cérebro pode estar certo da profunda admiração dos seus camaradas, ao passo que os especialistas da bala no coração têm também seus partidários. Os caçadores menos hábeis cujas balas se pedem, em grande humilhação deles, nos pulmões, nas entranhas, nos órgãos genitais e em outras regiões onde, sem ser mortal de imediato, o ferimento pode causar ao elefante grande sofrimento, ficam definitivamente fora de classe. Infelizmente há muitos caçadores desta categoria. 
O coração é quase sempre visado de flanco, e a região que lhe fica justamente por cima é tão fatal quanto este. Se a bala atinge o alvo, o elefante pode percorrer 200 metros, ou até mais antes de cair. A bala no cérebro atua mais rapidamente, mas o alvo é difícil de alcançar por causa da rede de sinus que comporta o crânio e da massa importante formada pelos maxilares, os dentes e os alvéolos das defesas, que protege a caixa craniana. Pode-se apontar de frente, entre os olhos do elefante, ou de lado, entre o olho e o orifício da orelha. Um tiro direto abate o animal imediatamente, e se é preciso matar os elefantes ( o que é infelizmente necessário para a luta preventiva, sem falar da duvidosa moralidade desse esporte ), se temos de os matar é esse indiscutivelmente o processo mais humano. A carabina mais empregada é a de calibre 37,5 ou 45 mm, porém os caçadores experimentados podem usar armas menores ainda. O famoso caçador de elefantes W. D. M. (Karamojo) Bell matou 15 animais da mesma manada com carabinas de 27,5 e 30,3 mm na caça destinada à luta preventiva, mas para os esportistas isso não é admissível.
(1) em francês, no original
(Richard Carrington, Os Elefantes, 1963).

3 ou 4 formas de matar elefantes (2)

imagem de: http://ryanharebit.tumblr.com/tagged/wtf
"Dois homens inteiramente nus, sem o menor trapo, montam a cavalo. Tomam essa precaução para não serem embaraçados pelos arbustos ou silvados quando fogem de um inimigo vigilante. Um dos cavaleiros, no lombo do cavalo, umas vezes com e outras sem sela, segura com uma das mãos uma chibata ou curta vara, manobrando habilmente as rédeas com a outra; o companheiro instalou-se atrás dele, armado apenas de um sabre... Com a mão esquerda aperta o punho do sabre, cuja lâmina está envolta, aproximadamente, ao longo de 35 centímetros, em corda de chicote. É esta parte que ele segura na mão direita, sem medo de se ferir; e embora a lâmina do sabre, em sua parte inferiro, seja cortante como uma navalha de barba, ele usa a arma sem bainha.
Quando encontra o elefante ocupado a pastar, o cavaleiro aproxima-se dele, o mais perto possível do focinho; ou, se o animal foge, barra-lhe o caminho em todas as direções, gritando: 'Sou eu, fulano de tal, e este é o meu cavalo, que tem tal nome; foi em tal lugar que matei teu pai e em tal outro que matei teu avô; agora vim para te matar a ti, que não passas de um idiota comparado com eles'. O homem supõe realmente que o elefante compreende esse discurso; o animal perseguido, enfurecido pelo barulho que o segue de perto, tenta apanhar o cavaleiro servindo-se da tromba, e, distraído nesse propósito segue por toda a parte o cavalo, fazendo atrás dele cem voltas e reviravoltas, sem cuidar de fugir a direito o que seria a sua única possibilidade de salvação. Depois de o ter assim feito correr uma ou duas vezes atrás do cavalo, o cavaleiro acerca-se o mais possível do elefante, deixa cair em terra o companheiro justamente atrás dele, do lado de fora; e enquanto atrai a atenção do elefante para o cavalo, o homem a pé vibra-lhe por trás um grande golpe de sabre acima do calcanhar, para atingir aquilo a que no homem se chama o tendão de Aquiles. Chega então o momento crítico: o cavaleiro dá imediatamente meia volta, ajuda o companheiro a montar atrás de si e larga a galope em perseguição do resto da manada, caso tenham atacado mais de uma presa; um agageer hábil mata às vezes três do mesmo bando. Se o sabre é bom, e o homem não é medroso, o tendão fica completamente cortado; mas de qualquer maneira fica suficientemente atingido para que o animal quebre a parte restante no esforço que desenvolve. Seja como for, o animal fica incapaz de dar um passo até que o cavaleiro volte, ou o seu companheiro se antecipe a trespassá-lo com azagaias e lanças; o animal então desaba, e não tarda a sucumbir à hemorragia.
... apesar da habilidade dos cavaleiros, o elefante às vezes agarra-os com a tromba, derrubando em seguida o cavalo, e depois calca o homem com as patas e arranca-lhe os membros um a um; muitos caçadores morrem dessa maneira". (James Bruce - cerca de 1770 - em Os Elefantes, Richard Carrington, 1963).

3 ou 4 formas de matar elefantes (1)

"Veldfire" Acrylic on Linen by Fuz Caforio
An elephant leading the herd away from the fire - em http://hedgiesjoy.blogspot.com


"Durante a estação seca, quando as ervas ressequidas, de 3 e 4 metros de altura, são extremamente inflamáveis, uma grande manada de elefantes pode encontrar-se no meio dessas altas ervas sem que ninguém os veja, a não ser que olhe por cima de algum lugar elevado. Se um caçador indígena os descobrir, imediatamente dará alarme em toda a vizinhança e não tarda que toda a população se reúna para organizar a caçada. Para isso os homens formam um vasto círculo, de uns 3 quilômetros de diâmetro, e ao mesmo tempo põem fogo às ervas a fim de cercar todo o centro pelas chamas. O elefante tem medo instintivo do fogo e horror de ouvir crepitar as chamas quando a erva arde. À medida que o círculo de fogo se aperta sobre os animais cercados, estes tentam primeiro bater em retirada enquanto não compreendem que a sua situação não tem saída; porém logo perdem a esperança, desvairam-se, tomam-se de pânico ouvindo a gritaria louca dos milhares de homens que os cercam. Por fim, meio sufocados pela fumaça e aterrados pela aproximação iminente das chamas rugidoras, os pobres animais rompem desesperadamente para o meio do braseiro; queimados, cegos, serão ao cabo mortos brutalmente a lançadas pela turba sanguinária que aguarda essa debandada final. É a matança em grande escala da qual podem ser vítimas até 100 elefantes de uma vez, ou mesmo mais. A carne é então cortada em longas postas e colocada a secar, e cada parte do animal submetida ao fumeiro sobre suportes de lenha verde; os despojos dividem-se entre as aldeias que participaram da caçada. Repartem-se também as defesas, das quais certa parte cabe de direito aos diferentes chefes das aldeias e ao que dirigiu a caçada". (Sir Samuel Baker, em Os Elefantes, Richard Carrington, 1963).

Eduardo Galeano - Sangue Latino

http://vimeo.com/brenocunha/eduardo-galeano

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Iasmine

Melancólica. Desde pequena. Manga comprida para disfarçar as cicatrizes nos pulsos. Até jeitosa: cabelo cor de milho. Olhinhos apagadinhos. Contudo verdes. Peitinhos de pêssego. Virgem. De signo e opção. Não que fosse tímida. Bastava-se. Os estudos. A faculdade. Ah, e chope na praça de alimentação do shopping. Com as colegas. Às sextas-feiras. Por causa de um diagnóstico equivocado na adolescência, as psicólogas. Tinha perdido a conta. Biodança; gestalt; jung; freudiana; terapia grupal; florais; vidas passadas; reich; bioenergética; fora a biblioteca de autoajuda. Agora, psicanálise. Da lista dos credenciados do convênio. De 15 em 15 dias. Em um prédio velho. Perto do trabalho. Das divisórias de eucatex ouvia narrativas alheias. Interessantes. Porém, quase sempre indesejáveis. Divã? Uma longchaise fedida a cachorro molhado. Doutora, não. Só Márcia. Jeito de lésbica. Cada uma na sua. O assunto nunca engatava. Muito silêncio durante os 40 minutos da sessão. Não era de todo ruim. Compromisso no horário do almoço. Às quartas. Para fugir da rotina. Molesquine para anotar os sonhos. Mas não sonhava. Mentiu para não parecer uma anormal. Não se lembrava dos sonhos ao acordar. Márcia sugeriu listas. O que mais gostava de fazer. O mais importante da vida. O que não desejava nem para o pior inimigo. Possibilidades futuras. Desejos. Desejos? Travou. Bloqueou. Como assim? Duas semanas de páginas brancas. Márcia insistiu. Ato falho. Confilto. Ego, id, superego. Facilitou: 10 bobagens que a tirassem do sério. Escrevesse quantas quisesse. Mas riscasse, eliminasse, selecionasse. Até sobrarem 10. Nem mais nem menos. Quinta. Sexta. Sábado. O domingo todo inquieta. Abrindo e fechando o molesquine. Tampando e destampando a caneta. Caminhada no parque. Almoço, sorvete, Faustão, Fantástico, nada. Na madrugada, folha novinha. Com letra caprichada. 1: Gente que faz aspas com os dedos. 2: Gente que atende o celular no cinema. 3: Gente com sotaque de carioca; 4: Gente que fura fila. 5: Gente que não presta atenção. 6: Gente boazinha demais. 7: Gente mentirosa. 8: Gente que deixa cabelo grudado no sabonete. 9: Gente que conversa tirando um cisco do seu casaco, ajeitando a gola, abotoando o último botão da sua blusa; 10. gente que conversa sem olhar nos olhos. Nada demais. Nada horrível. Nada que não pudesse ser contornado. Nada que não circulasse na net, Clarice, Fernando Pessoa, Saramago, Veríssimo, o diabo. Completada a lista, às 5 da manhã, dormiu. Apagou. Literalmente. Sonhou? Nem acordou com o despertador. Às 11 ligou para Márcia. Podia? À 1 da tarde avisou o chefe. Atestado. 3 dias. Diarreia. Não, a médica não tinha anotado o CID. Depois pediu sushi no delivery. Para comemorar. Não, ela não era uma anormal.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Intervalo com elefantes

Ao mesmo tempo que a dor ou a loucura lhes emprestam audácia, os elefantes solitários não tardam a encher-se de desprezo pelo gênero humano. Perdem a timidez e a prudência naturais e fazem atrevidas incursões nas terras cultivadas. Abatem cercas, até mesmo casas com uma desenvoltura maligna, e atacam sem hesitar qualquer ser humano que encontrem no caminho. Vejamos por exemplo uma das suas tropelias neste relato de Tennent: em pleno dia, perto de Ambogommoa, um elefante solitário observava um grupo de trabalhadores ocupados na colheita do arroz; atrevidamente avançou para o meio dos homens, apoderou-se de um feixe de e retirou-se tranquilamente para o mato com sua presa. O temor que inspiram esses solitários faz com que passem muitas vezes por comedores de homens. Assim, um elefante que pouco depois de 1870 manteve em terror toda a região de Mandla, perto de Jubbulpore, nas províncias centrais da Índia, teria, como era voz corrente, devorado pedaços das suas inumeráveis vítimas. Isto decerto não passa de lenda, pois os elefantes são exclusivamente vegetarianos, mas a superstição nasceu talvez do fato de o animal brincar com os membros dos indígenas despedaçados, que segurava na boca. Este elefante foi morto, afinal, por oficiais europeus.(Richard Carrington, Os Elefantes, 1963)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

A Continuação da Peça (do Livro dos Cacos)

Galerias repletas no teatro. Monóculos a postos, os rapazes, doidos de ópio e absinto, fumam cigarrilhas nos camarotes e flertam-se entre si e com as moçoilas do entreato. A Menina Loura sobe ao palco e dança o primeiro número. Stockhausen. Satie. Ou Chopin. Desce pela escada lateral e senta no colo do Pai, na primeira fileira da plateia. O Pai abraça a menina. Sufoca-a contra si. A Mãe da Menina, vestida de vermelho e dourado, loura como a filha, olhos sombreados de azul, contornados por cílios postiços longuíssimos, aguarda na coxia. Entra em cena segurando um punhal apontado para a plateia. Finca o punhal no peito. Grita. E morre. Fecham as cortinas. Somente o tempo de retirarem o corpo e mudarem os cenários para o número dos espelhos. Que rangem por trás do ciclorama. Presos a cordas de aço, descem pelas traquitanas uma Virgem de Guadalupe de isopor, em tamanho natural e trinta e dois atores-anjos, nus, duplicados pelos espelhos. A Virgem de Guadalupe ao mesmo tempo esconjura os demônios na plateia e acena na direção do camarote da Matriarca Grávida. O Pai, sentado na primeira fila da plateia, com a Menina Loura ao colo, tem um ataque epiléptico. Do canto da boca do Pai escorre uma baba branca que a Menina Loura enxuga com lencinhos Kleenex. A Menina Loura sobe novamente ao palco e ajoelha-se aos pés da Virgem de Guadalupe. Os 32 atores-anjos em carne e osso e os 32 reflexos dos atores-anjos nos espelhos despem-se em movimentos lentos. Totalmente nus, os 64 atores-anjos voltam-se, simultaneamente, para a Menina Loura. O movimento brusco e a ereção visível dos 64 atores-anjos provoca suspiros e rebuliço entre as moçoilas e na maioria dos rapazes da plateia. As senhoras casadas remexem-se nas cadeiras de palhinha. Os respectivos maridos levantam-se indignados e puxam suas esposas na direção da saída. Uma moçoila ensandecida, vestida apenas com o espartilho, sobe ao palco. Atira-se aos braços do primeiro ator-anjo da fila. Outras moçoilas e a maioria dos rapazes apagam as cigarrilhas e seguem o exemplo da desvairada. Instala-se o caos orgíaco. A Virgem de Guadalupe é içada da cena. A Menina Loura ajoelhada diante da Virgem de Guadalupe levanta-se. Pisa com cuidado sobre os corpos engendrados dos 32 atores-anjos de carne e da quantidade indefinível de moçoilas e rapazes da plateia na orgia. A Menina Loura volta para o lugar do Pai, na primeira fileira da plateia. O pano cai . Fim do primeiro ato e o intervalo. A plateia se levanta para se refrescar no saguão e/ou tomar café expresso com água gasosa na bombonière. Menos o Pai. O Pai dorme e ronca com o libreto sobre a barriga. A cigarra toca a primeira, a segunda e a terceira vez. A plateia acomoda-se para assistir ao segundo ato. Que começa com som estereofônico de guitarra elétrica que estoura as caixas de som e os ouvidos dos casais respeitáveis que não  saíram antes do fim do primeiro ato. Apagam-se as luzes do lustre de cristal. Depois do barulho da guitarra elétrica faz-se silêncio. Tão grande que ouve-se o bater das asas das mariposas no vidro das lâmpadas do lustre de cristal. Um grito vindo do camarote da Matriarca Grávida quebra o silêncio. O grito dura o tempo do abrir das cortinas. A bolsa do líquido amniótico da Matriarca Grávida rompe-se. A Matriarca Grávida entra em trabalho de parto. O Médico de Plantão acorre ao camarote e salva o Prematuro. O Prematuro nasce todo roxo. O Prematuro é tirado das entranhas da Matriarca Grávida a fórceps. Depois de muitos tapas na bundinha o Prematuro chora. O Pai acorda assustado com o choro do Prematuro. “Pena que não existam leões”, a Menina Loura murmura. O Pai não compreende o sentido da fala da Menina Loura. "Leões para devorar o Prematuro", a menina explica. O papel do Prematuro é interpretado por um ator-anão de grandes dotes. artísticos. O Prematuro pede a bênção da Matriarca Grávida que já não estava mais grávida. O Prematuro desce do camarote. O prematuro caminha na direção da Menina Loura pela mão. Puxa a Menina Loura pelas escadas de veludo do saguão do teatro até o último andar. Que era uma espécie de torre com terraço. O Pai tenta resgatar a Menina Loura das mãos do Prematuro. O Pai tropeça e parte a perna antes de alcançar o Prematuro e a Menina Loura. O Prematuro segura a Menina Loura com uma chave de braço. O Prematuro ameaça empurrar a Menina Loura do parapeito do terraço no alto da torre. A altura aproximada do parapeito do terraço ao chão é de pelo menos 50 metros. A Menina Loura vê a cidade descortinada e os automóveis estacionados, como uma maquete. O Prematuro empurra a Menina Loura. O Pai aproxima-se mancando. Mas é tarde demais. É só o tempo do Pai ver o vôo no vazio da Menina Loura. E ouvir o som oco do corpo da Menina Loura espatifar-se. Depois de 50 metros de queda livre. O Pai trucida o Prematuro e joga o corpo do parapeito. O corpo do Prematuro cai por sobre o corpo da Menina Loura. Enquanto isso, no palco, anjos, moçoilas e a maioria dos rapazes gozam orgasmos múltiplos. Os contrarregras trazem de novo a Virgem de Guadalupe para o centro do palco. É o sinal para o fim próximo do segundo ato. As moçoilas e a maioria dos rapazes limpam-se com lencinhos Kleenex. O gozo dos atores-anjos, da maioria dos rapazes e das moçoilas afoitas escorre pelo linóleo. O pano cai definitivamente. O público remanescente aplaude sem entusiasmo. As moçoilas afoitas e a maioria dos rapazes passam pela fenda entre as cortinas e descem do palco. As cortinas abrem-se novamente para os agradecimentos dos atores-anjos. Tomado de pânico súbito, a plateia remanescente atropela-se e se debate-se à porta da saída. Um velho morre pisoteado. Outro, alheio ao movimento, toma glóbulos homeopáticos apertando a bula ao monóculo. Fora do teatro chove chuva tropical. A chuva tropical lava o sangue da Menina Loura e do Prematuro estendidos na calçada. O rosto da Menina Loura está lívido, porém sereno. Como o rosto de uma santa-mártir. O rosto do Prematuro continua roxo. O público remanescente abre os guarda-chuvas. Pisa os corpos da Menina Loura e do Prematuro atravessados entre a saída do teatro e os tílburis e demais veículos estacionados. Fim de ato.

Errata

O link do post de 28.05 - (Do Livro dos Cacos - ode assimétrica) - direcionava para somente uma parte do texto. Só hoje consegui corrigir. Agora, finalmente, o leitor pode clicar aqui para acessar a versão completa do poema.