Galerias repletas no teatro. Monóculos a postos, os rapazes, doidos de ópio e absinto, fumam cigarrilhas nos camarotes e flertam-se entre si e com as moçoilas do entreato. A Menina Loura sobe ao palco e dança o primeiro número. Stockhausen. Satie. Ou Chopin. Desce pela escada lateral e senta no colo do Pai, na primeira fileira da plateia. O Pai abraça a menina. Sufoca-a contra si. A Mãe da Menina, vestida de vermelho e dourado, loura como a filha, olhos sombreados de azul, contornados por cílios postiços longuíssimos, aguarda na coxia. Entra em cena segurando um punhal apontado para a plateia. Finca o punhal no peito. Grita. E morre. Fecham as cortinas. Somente o tempo de retirarem o corpo e mudarem os cenários para o número dos espelhos. Que rangem por trás do ciclorama. Presos a cordas de aço, descem pelas traquitanas uma Virgem de Guadalupe de isopor, em tamanho natural e trinta e dois atores-anjos, nus, duplicados pelos espelhos. A Virgem de Guadalupe ao mesmo tempo esconjura os demônios na plateia e acena na direção do camarote da Matriarca Grávida. O Pai, sentado na primeira fila da plateia, com a Menina Loura ao colo, tem um ataque epiléptico. Do canto da boca do Pai escorre uma baba branca que a Menina Loura enxuga com lencinhos Kleenex. A Menina Loura sobe novamente ao palco e ajoelha-se aos pés da Virgem de Guadalupe. Os 32 atores-anjos em carne e osso e os 32 reflexos dos atores-anjos nos espelhos despem-se em movimentos lentos. Totalmente nus, os 64 atores-anjos voltam-se, simultaneamente, para a Menina Loura. O movimento brusco e a ereção visível dos 64 atores-anjos provoca suspiros e rebuliço entre as moçoilas e na maioria dos rapazes da plateia. As senhoras casadas remexem-se nas cadeiras de palhinha. Os respectivos maridos levantam-se indignados e puxam suas esposas na direção da saída. Uma moçoila ensandecida, vestida apenas com o espartilho, sobe ao palco. Atira-se aos braços do primeiro ator-anjo da fila. Outras moçoilas e a maioria dos rapazes apagam as cigarrilhas e seguem o exemplo da desvairada. Instala-se o caos orgíaco. A Virgem de Guadalupe é içada da cena. A Menina Loura ajoelhada diante da Virgem de Guadalupe levanta-se. Pisa com cuidado sobre os corpos engendrados dos 32 atores-anjos de carne e da quantidade indefinível de moçoilas e rapazes da plateia na orgia. A Menina Loura volta para o lugar do Pai, na primeira fileira da plateia. O pano cai . Fim do primeiro ato e o intervalo. A plateia se levanta para se refrescar no saguão e/ou tomar café expresso com água gasosa na bombonière. Menos o Pai. O Pai dorme e ronca com o libreto sobre a barriga. A cigarra toca a primeira, a segunda e a terceira vez. A plateia acomoda-se para assistir ao segundo ato. Que começa com som estereofônico de guitarra elétrica que estoura as caixas de som e os ouvidos dos casais respeitáveis que não saíram antes do fim do primeiro ato. Apagam-se as luzes do lustre de cristal. Depois do barulho da guitarra elétrica faz-se silêncio. Tão grande que ouve-se o bater das asas das mariposas no vidro das lâmpadas do lustre de cristal. Um grito vindo do camarote da Matriarca Grávida quebra o silêncio. O grito dura o tempo do abrir das cortinas. A bolsa do líquido amniótico da Matriarca Grávida rompe-se. A Matriarca Grávida entra em trabalho de parto. O Médico de Plantão acorre ao camarote e salva o Prematuro. O Prematuro nasce todo roxo. O Prematuro é tirado das entranhas da Matriarca Grávida a fórceps. Depois de muitos tapas na bundinha o Prematuro chora. O Pai acorda assustado com o choro do Prematuro. “Pena que não existam leões”, a Menina Loura murmura. O Pai não compreende o sentido da fala da Menina Loura. "Leões para devorar o Prematuro", a menina explica. O papel do Prematuro é interpretado por um ator-anão de grandes dotes. artísticos. O Prematuro pede a bênção da Matriarca Grávida que já não estava mais grávida. O Prematuro desce do camarote. O prematuro caminha na direção da Menina Loura pela mão. Puxa a Menina Loura pelas escadas de veludo do saguão do teatro até o último andar. Que era uma espécie de torre com terraço. O Pai tenta resgatar a Menina Loura das mãos do Prematuro. O Pai tropeça e parte a perna antes de alcançar o Prematuro e a Menina Loura. O Prematuro segura a Menina Loura com uma chave de braço. O Prematuro ameaça empurrar a Menina Loura do parapeito do terraço no alto da torre. A altura aproximada do parapeito do terraço ao chão é de pelo menos 50 metros. A Menina Loura vê a cidade descortinada e os automóveis estacionados, como uma maquete. O Prematuro empurra a Menina Loura. O Pai aproxima-se mancando. Mas é tarde demais. É só o tempo do Pai ver o vôo no vazio da Menina Loura. E ouvir o som oco do corpo da Menina Loura espatifar-se. Depois de 50 metros de queda livre. O Pai trucida o Prematuro e joga o corpo do parapeito. O corpo do Prematuro cai por sobre o corpo da Menina Loura. Enquanto isso, no palco, anjos, moçoilas e a maioria dos rapazes gozam orgasmos múltiplos. Os contrarregras trazem de novo a Virgem de Guadalupe para o centro do palco. É o sinal para o fim próximo do segundo ato. As moçoilas e a maioria dos rapazes limpam-se com lencinhos Kleenex. O gozo dos atores-anjos, da maioria dos rapazes e das moçoilas afoitas escorre pelo linóleo. O pano cai definitivamente. O público remanescente aplaude sem entusiasmo. As moçoilas afoitas e a maioria dos rapazes passam pela fenda entre as cortinas e descem do palco. As cortinas abrem-se novamente para os agradecimentos dos atores-anjos. Tomado de pânico súbito, a plateia remanescente atropela-se e se debate-se à porta da saída. Um velho morre pisoteado. Outro, alheio ao movimento, toma glóbulos homeopáticos apertando a bula ao monóculo. Fora do teatro chove chuva tropical. A chuva tropical lava o sangue da Menina Loura e do Prematuro estendidos na calçada. O rosto da Menina Loura está lívido, porém sereno. Como o rosto de uma santa-mártir. O rosto do Prematuro continua roxo. O público remanescente abre os guarda-chuvas. Pisa os corpos da Menina Loura e do Prematuro atravessados entre a saída do teatro e os tílburis e demais veículos estacionados. Fim de ato.
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