segunda-feira, 27 de junho de 2011

Górgona

Em pouco mais que meia hora ela despejou a amargura acumulada por 50 anos. Os olhos vermelhos, secos, furiosos e ao mesmo tempo desamparados. Ouvi calado. Entre o fascínio e o horror. O tom de voz exaltado beirava ao teatral. Um teatro empoeirado, teias de aranha, lâmpadas queimadas, morcegos, traças no cordame, baratas nas frestas e pulgas nos veludos das cadeiras. Tanto tempo longe, eu não me lembrava mais do ódio concentrado que havia ali. Fascínio: aquilo dava um romance. Pelo menos 700 páginas atravessando 4 ou 5 gerações; dezenas de personagens medíocres; cenários de horror e sofrimento; traições; maledicência; acusações. A matemática inexata da dor. Horror por conhecer o lado podre de gente viva, dos mortos, de gente próxima, distante, gente que eu nunca mais tinha ouvido falar. Mágoa fermentada. Aumentada pelos anos. Eu não permiti que aquilo me respingasse. Eu não me permiti ser contagiado pela amargura. Só fiquei triste. Mas com esperança. De que ao falar ela tenha se esvaziado. Tenha se aliviado de carga tão turva. Esperança que o mesmo tempo que se encarregou de petrificar o passado dela - que o mesmo tempo sirva para apagar, clarear, suavizar tantas recordações da casa dos mortos.