sexta-feira, 3 de junho de 2011

Iasmine

Melancólica. Desde pequena. Manga comprida para disfarçar as cicatrizes nos pulsos. Até jeitosa: cabelo cor de milho. Olhinhos apagadinhos. Contudo verdes. Peitinhos de pêssego. Virgem. De signo e opção. Não que fosse tímida. Bastava-se. Os estudos. A faculdade. Ah, e chope na praça de alimentação do shopping. Com as colegas. Às sextas-feiras. Por causa de um diagnóstico equivocado na adolescência, as psicólogas. Tinha perdido a conta. Biodança; gestalt; jung; freudiana; terapia grupal; florais; vidas passadas; reich; bioenergética; fora a biblioteca de autoajuda. Agora, psicanálise. Da lista dos credenciados do convênio. De 15 em 15 dias. Em um prédio velho. Perto do trabalho. Das divisórias de eucatex ouvia narrativas alheias. Interessantes. Porém, quase sempre indesejáveis. Divã? Uma longchaise fedida a cachorro molhado. Doutora, não. Só Márcia. Jeito de lésbica. Cada uma na sua. O assunto nunca engatava. Muito silêncio durante os 40 minutos da sessão. Não era de todo ruim. Compromisso no horário do almoço. Às quartas. Para fugir da rotina. Molesquine para anotar os sonhos. Mas não sonhava. Mentiu para não parecer uma anormal. Não se lembrava dos sonhos ao acordar. Márcia sugeriu listas. O que mais gostava de fazer. O mais importante da vida. O que não desejava nem para o pior inimigo. Possibilidades futuras. Desejos. Desejos? Travou. Bloqueou. Como assim? Duas semanas de páginas brancas. Márcia insistiu. Ato falho. Confilto. Ego, id, superego. Facilitou: 10 bobagens que a tirassem do sério. Escrevesse quantas quisesse. Mas riscasse, eliminasse, selecionasse. Até sobrarem 10. Nem mais nem menos. Quinta. Sexta. Sábado. O domingo todo inquieta. Abrindo e fechando o molesquine. Tampando e destampando a caneta. Caminhada no parque. Almoço, sorvete, Faustão, Fantástico, nada. Na madrugada, folha novinha. Com letra caprichada. 1: Gente que faz aspas com os dedos. 2: Gente que atende o celular no cinema. 3: Gente com sotaque de carioca; 4: Gente que fura fila. 5: Gente que não presta atenção. 6: Gente boazinha demais. 7: Gente mentirosa. 8: Gente que deixa cabelo grudado no sabonete. 9: Gente que conversa tirando um cisco do seu casaco, ajeitando a gola, abotoando o último botão da sua blusa; 10. gente que conversa sem olhar nos olhos. Nada demais. Nada horrível. Nada que não pudesse ser contornado. Nada que não circulasse na net, Clarice, Fernando Pessoa, Saramago, Veríssimo, o diabo. Completada a lista, às 5 da manhã, dormiu. Apagou. Literalmente. Sonhou? Nem acordou com o despertador. Às 11 ligou para Márcia. Podia? À 1 da tarde avisou o chefe. Atestado. 3 dias. Diarreia. Não, a médica não tinha anotado o CID. Depois pediu sushi no delivery. Para comemorar. Não, ela não era uma anormal.

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