segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Marlene

Ele mostrou o estúdio. Prédio inteligente. Sacada. 22 metros quadrados. Depois comeram pães de queijo e chocolate quente no café debaixo do prédio. Para ele explicar o financiamento. Até a chuva diminuir.

A conversa estendeu-se. Como se não houvesse compromissos. O oftalmologista. Os clientes. Entendiam-se perfeitamente. Como se não houvesse 20 anos entre eles. Como se se conhecessem de outras encarnações. “A senhora se parece muito com uma pessoa que...” “Senhora”?

“Foi maravilhoso”, ela disse. Ele sorriu.

Alvoroçada. Dentro do táxi tirou o celular da bolsa. Quase apertou o recall. Para agradecer a tarde inusitada e agradabilíssima. Um corretor? Ah, os superlativos, as diferenças, as palavras fora de moda. Ligava? Não. Pediu ao motorista a gentileza de abaixar a música.

Nem telejornal. Nem revista. Nem o romance que a amiga de Barcelona indicou. Nem sono. Ligaria. No final da semana.

O perigo era deixar-se levar. Pelas circunstâncias. Pela falta de sentido. Pelo vulto que aquilo poderia tomar. Gracinha. Cara de pitbull. Jeito de dog alemão. Alma de poodle. Assim tão rápido? Ela, um gato persa. Não era nenhuma menina.

Dali em diante procrastinou tudo o que não fosse ele. A matrícula do curso de culinária espanhola. A aplicação com a gerente do banco. A amiga no skype. Tudo em função de olhar apartamentos. Novos. Velhos. Alugados. Imperdíveis. Na justiça. Desocupados. Perfeitos. Detonados. Na planta. Unidades mobiliadas. Oportunidades. Para investimento.

Ele ligava: “Acabei de receber as chaves”. “Do jeito que a senhora quer”. Ela atendia: até a piada: "o corretor vem de brinde"?

Ele todo amabilidades. “Qualquer dúvida, ligue”.  Amor? Censurava-se. “Não seja ridícula”. “Só um corretor”.

Os cafés após as visitas escasseavam-se. E duravam o estritamente necessário. Ela estranhava. Ele se afastava-se ou era impressão? "Não seja tão ansiosa".

“Lá pelo décimo apartamento ele recusou. “Infelizmente não. Dois clientes agendados”.

Ela morreu por dentro. Ligou uma. Duas. Várias vezes. Dúvidas, desculpas. Ele deixou de atender. “Anote, por favor. O número do despachante”. “Precisamos marcar outro café”. Ele ocupadíssimo. “Qualquer hora dessas”. Ela insistiu. Ele: “Amanhã às 14 então”. “Para colocar os pingos nos is". "Naquele lugar”.

Ele ligou. Às 13h45. “Cliente imprevisto”. Ela controlada: “Tudo bem”. “Fica para a próxima”.

Cega. Obcecada. "Eu pago à vista". Evitava a amiga. “Não percebe o jogo?” Ela percebia. Mas era inevitável.

Até fechar o negócio. Ele infelizmente sempre ocupado. Sempre o despachante. Ela soluçou “Não esqueci o nosso café”. Golpe de misericórdia dele: “Qualquer hora dessas..." "A gente se cruza”. “Dona Marlene, você fez um excelente negócio”.

2 da tarde, sol quente, ela parada, perdida, atônita na porta do cartório, envelope com a escritura na bolsa, nem se lembrou de colocar os óculos escuros, ouvindo o eco da voz dele na kit do coração vazio.

2 comentários:

Carolina Vianna disse...

Ótimo!!!!

Gladstone disse...

Inspirado nas suas narrativas. E incrementado após o café de agora pouco rsrs.