quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Menas - O certo do errado, o errado do certo (Para EG)
Foi A quem mandou. "Menas", filme exibido na exposição do Museu da Língua Portuguesa. Pra EG ver e ouvir.
À greve, companheiros!
Dear Madame,
Como já deve saber, estou em greve. Você também sabe, sou trabalhador consciente, responsável, semipolitizado – frequento as assembleias, voto contra ou a favor, sigo as decisões da maioria – mas de forma pouco ortodoxa. Sem falsos escrúpulos aproveito o período livre para colocar em dia os assuntos paralelos.
Assuntos paralelos hoje significa – produção das Histórias Desagradáveis. Madame sabe, produção independente é um trabalho dos infernos. Ontem, por exemplo, além de resolver questões pessoais (levar cão no veterinário, organizar a papelada empilhada na escrivaninha, buscar cartão no banco – em greve!), consegui lançar o livro em Recife, fui convidado para a Feira do Livro de Brasília, mandei e-mail pra Leda Nagle (já pensou falar no Sem Censura?), pedi espaço na Leonardo da Vinci no Rio de Janeiro.
Hoje a lista de atividades não é menor. Comprar os remédios receitados pelo veterinário, levar o terno de trabalho pra lavanderia, comprar roupinhas pra academia serão as atividades pessoais; doar livros, agendar evento no Açougue Cultural e verificar a venda, oferecer consignações nas livrarias serão os literários. Assim segue a vida de grevista e autor organizado no mesmo invólucro.
Imortalidade frustrada
imagem do blog http://limoeirodonorte.blogspot.com |
Em post recente falei da minha empolgação pelo convite para Membro Correspondente da Academia Limoeirense de Letras. Tirei as medidas pra mandar fazer o fardão, abri uma poupança pra guardar o dinheiro do coquetel da posse, rascunhei o discurso, reservei passagens na Webjet. Qual não foi minha surpresa ao receber e-mail do amigo AR, arrasado por cancelar o convite. Os regulamentos da ALL são implacáveis. Só entra cearense. Perguntei: não pode ser cearense de coração? Não. Mais arrasado que AR, penso em uma forma de me naturalizar. Sentar no trono de um imortal, quiçá ao lado de José de Alencar, de Rachel, nem que tenha que convencer os acadêmicos limoeirenses a fazer greve para mudar o estatuto será minha plataforma de candidato.
Dona Norma, mea culpa
Domingo teve almoço de despedida do filho. Maravilhoso cozidão feito pelo competente, onipotente, onisciente e onipresente EG. Além de pai do homenageado, minha função restringiu-se a assessorar o chef. Assim me entreguei sem culpa ao prazer de Baco e energéticos. Mesmo tendo, ao final do dia, quase esgotado o conteúdo da ânfora, fui o único que não tombou. Às 9 da noite, inteiraço, enxuguei a louça e passei pano na cozinha, sem dizer a total ausência de ressaca no dia seguinte. Mas o post não é pra falar de bebedeira e comilança. A certa altura surgiu discussão sobre Norma Culta. Segundo EG, as Histórias Desagradáveis pecam por desacordo àquela Senhora. Justificou-se: não se tratava (!) de crítica. Citou Marcos Bagno. Contra-argumentei: hoje dona Norma anda mais liberal. Contracitei Houaiss. Ok, o papo de bebum acabou. Mas ficou a pulga atrás da orelha. Admito, conheço razoavelmente Dona Norma. Porém tenho dificuldades em lidar com algumas das suas regras, no mínimo arbitrárias. Pra resolver isso existe revisora. O primeiro impulso foi culpar a própria, mesmo tendo a coitada lido pelo menos 50 vezes os textos. Depois autoflagelei-me (!) por ter colado tanto nas provas de D. Zélia, professora de Língua Pátria do 2o. grau. Resolvi rever os textos. A primeira história nem é preciso dizer, é a fala de um garoto de 7 anos que ainda não aprendeu próclise, ênclise e mesóclise. As outras ainda não sei, ainda não cheguei lá. Tomara que sejam só erros de digitação. Se EG estiver certo, se as Histórias Desagradáveis assassinaram a gramática, nem pensarei duas vezes antes de queimar tudo.
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
Deadly Friday
Depois de uma semana pra lá de hard, fabrico o momento light ouvindo música aleatória do I-tunes, tomando uísque em copo chiquérrimo tirado dos guardados de mammy e escrevendo o post. Pretensões literárias: apesar do cão deitado aos pés do computador não ser o Ulisses de Clarice, é a companhia mais que humana no embriagamento dos sentidos.
O tarô de quarta-feira passada aconselhou listar as coisas que gosto. Foi difícil. Primeiro porque tirei a carta durante o expediente de trabalho e a maioria dos itens relacionava-se justamente ao não-trabalho: ler, escrever, viajar, divagar, cachoeira, trilha, ouvir música dirigindo, assim por diante. Parei antes de me jogar da janela do décimo segundo ou pingar duas gotas de cianureto no café ao invés de adoçante. Tentando uma terapia de choque, inventei de listar aquilo que não gostava: bardana, enterro, engarrafamento, funk, etc. Nem precisa dizer o resultado. Piorou.
Hoje, sexta-feira, 22 horas, terceira dose no copo chique, solitário, sem paciência com skype, facebook, msn, agradeço aos deuses por ter sobrevivido. Para não alugar os olhos, os ouvidos do leitor com desabafo, chorumela, reclamação, posto só a imagem antiga. E bye bye, good afternoon, good evening, good night, hasta luego.
terça-feira, 21 de setembro de 2010
O dinamismo é algo muito bom, mas é melhor ainda quando vem acompanhado de um senso de estratégia
Era uma vez W. W vivia sozinho. O namorado de W tinha ido embora para sempre. Esta história aconteceu por volta das seis da manhã. W sonhava com planilhas excel, estagiários desnudos e ramais intermitentes. Tinha dormido ansioso aguardando Wlória, a nova faxineira, que, por telefone, no dia anterior, avisou que chegaria muito cedo.
A campainha tocou. W acordou sobressaltado. Levantou-se como uma mola. Vestiu a cueca, W dormia pelado. Correu a atender a porta. Feliz pela possibilidade de contratar uma profissional tão adiantada.
Mas ao invés de Wlória, era um rapaz. Conhecido, de vista. Andava pela quadra, entre o boteco com sinuca e a oficina de lanternagem. Era sempre visto acompanhado pelo mecânico com cara de ator pornô.
Pois, às seis da manhã de uma quinta-feira de verão, W abriu a porta da casa e ao invés de encontrar Wlória, a faxineira, viu o tal gajo, o amigo do mecânico. W tomou um susto. Pensou que podia ser continuação do sonho. Não beliscou o braço, pois achava ridículo, isso (beliscar o braço, príncipe encantado bater à porta) só acontecia em filme. Confirmou a realidade quando o rapaz falou:
"Estava voltando pra casa, pensei em você. Não quer companhia?"
Inocentemente W se perguntou: Como ele adivinhou? Como o rapaz soube que companhia era a necessidade mais básica de W naquelas primeiras semanas pós-divórcio? sim, W admitiu, W queria companhia. Não sabia porque, mas veio à mente de W a frase bíblica: quem nunca se sentiu sozinho às seis da manhã de uma quinta-feira que atirasse a primeira pedra.
Porém, mesmo com toda carência, àquela hora da madrugada W queria mesmo era aproveitar os próximos 30 minutos de sono.
Antes de qualquer atitude ou palavra proferida, W deveria ter raciocinado: a pessoa que está “voltando para casa” às seis da manhã de uma quinta-feira devia ter tido uma noite no mínimo pauleira.
Mas W era muito lerdo. Boi, no horóscopo chinês. O cérebro de W precisava esquentar antes de concatenar uma idéia com a outra. Enquanto fantasiava a história (mandar o rapaz entrar, dar uns amassos, etc, e dispensá-lo antes de Wlória chegar) W permaneceu parado na porta de casa, perplexo, de cueca, diante da visita inesperada. Que esboçou um tipo de reverência japonesa (juntar as palmas das mãos à altura do peito e inclinar levemente a cabeça) e escafedeu-se quase da mesma forma como tinha surgido.
W fechou a porta. Mas continuou perplexo, parado, a mão esquecida segurando a maçaneta. Afinal de contas, tal acontecimento contradizia todas as fórmulas ditas e repetidas em todas as consultas aos psicólogos, mães-de-santo, amigos conselheiros, manuais de auto-ajuda - de que só nos contos de fadas os candidatos a príncipes consortes batiam à porta dos necessitados. Não que o rapaz que tocou a campainha da casa de W fosse um príncipe. Pelo contrário, tinha cara normal: baixinho e careca.
Alem do mais, havia o conselho da carta do tarô, o nono arcano, Cavaleiro de copas, para espanar a poeira, colocar a bola pra frente, atirar-se na direção de caminhos que lhe conduzirão, W, à novidade, os encontros, as novas aventuras. A carta mandava W “imprimir movimento à existência”, tudo a ver. Teria W deixado obedecer o conselho da carta? Esfregou os olhos (não tinha sido mesmo sonho), balançou a cabeça pra espantar a dúvida e caiu na real.
Fez um longo xixi meditativo. Depois fez as abluções matinais e alimentou Billie, a cocker. Mas a incerteza por não ter feito a coisa certa bimbalhava, blimblava, badalava, não permitindo a W concentrar-se nos preparativos para o trabalho. Ainda era muito cedo (6h:15min). W foi comprar pão. Respirar o ar frio da madrugada faria bem. Aproveitaria para passear com Billie.
E não é que lá estava ele, o rapaz, de novo, com cara de desamparado, debaixo de uma marquise, no bloco seguinte ao da casa de W? Quando o rapaz avistou W, de longe, repetiu a reverência japonesa. W aproximou-se. Explicou: era muito cedo; ia comprar pão; se ele quisesse, tomavam café juntos. O rapaz aceitou o convite. Repetiu a história de não chegar na casa dele àquela hora.
W comprou 2 pães. Billie fez as necessidades. No caminho de volta o rapaz estava na porta da casa esperando W. W convidou-o a entrar. Só então sentiu o cheiro de álcool e de acetona do bafo dele. Bingo! a noitada dele tinha sido mesmo hardcore: uísque, provavelmente nacional e muuuito pó.
O rapaz entrou. Balbuciou explicações, negando o tom sedutor da fala inicial (o papo da companhia). Foi mais honesto:
"estava numa farra com a galera. Sou fraco pra essas coisas. Moro com a família. Não queria chegar em casa desse jeito."
W compreendeu. O rapaz não queria compartilhar carinho, fazer companhia para o carente. Queria guarita até passar a lombra. W foi maquiavélico. Lembrou do dito popular: "** de bêbado não tem dono". Seria só sexual o desejo oculto de W? Controlou a libido. Foi educado. Explicou:
“Não vai dar pra você ficar. Estou esperando a Wlória, a faxineira. Hoje será o primeiro dia dela aqui. Saio pra trabalhar daqui a pouco”.
Ofereceu café (W sempre acreditou na cafeína como santo remédio para a maioria dos males). O rapaz recusou. Disse que precisava ir embora. W perguntou-lhe o nome: O rapaz grunhiu um som incompreensível, terminado em -ão. Marcão? Betão? Zezão? Aarão? Jedeão? W nunca descobria.
A negativa do rapaz tranquilizou W. Ele tinha feito direitinho o dever de casa existencial – estar aberto às oportunidades que o acaso oferecia. Para sorte de W (a eminência da chegada de Wlória, não atrasar-se para o trabalho), o próprio acaso tinha se encarregado de encontrar saída digna para a história.
W ainda pensou naquelas fábulas religiosas e místicas – Sidarta, os santos ou o próprio Jesus disfarçados em mendigo, leproso ou peregrino bater na porta da casa do pecador pedindo abrigo, pão ou curativos. Duvidou: será que Buda, Jesus ou qualquer outro santo se prestaria ao papel de se fantasiar de drogado para testar a capacidade de aceitação de uma pobre biba carente às seis da manhã de um dia útil?
Apesar da lentidão W não tinha se saído mal. Se fosse Jesus disfarçado, ele devia ter anotado no caderninho que W havia revisto seus conceitos (ao reencontrar o rapaz depois de deixá-lo ir e convidá-lo para tomar café) e certamente perdoou as malévolas segundas intenções de W (a fruição erótica, a sacanagem pensada).
Se não fosse Jesus, Sidarta ou outro santo qualquer a atitude de W também poderia ser justificada no Juízo Final, no Nirvana, no Paraíso. W tinha dado oportunidade ao doidão para se retratar. Respeitou o brio de macho dele, fingindo nem ter ouvido a oferta inicial (quer companhia = quer transar?).
Ão desapareceu nos meandros da rua. voltará?
Às sete em ponto Wlória chegou. Tinha cara de pombagira. W mostrou a casa, apontou os serviços. Depois de ter passado por tudo aquilo, era fichinha deixar a casa por conta dela, uma desconhecida. Wlória ficou feliz com os R$ 60 por dia de faxina, uma vez por semana. Que os deuses protegessem e guardassem o lar de W.
domingo, 19 de setembro de 2010
sábado, 18 de setembro de 2010
Pra que se desgastar? Sente-se e aguarde o momento propício
Era uma vez uma galinha chamada A. Uma galinha não. Uma perua. Solteira. Uma perua com quase 50. Apesar de viver no mesmo terreiro do galo O, ela não chegou a conhecê-lo. No tempo de A, além de falar os bichos ainda sabiam ler e escrever. A chegou ao terreiro ainda criança, junto com um peruzote destinado a ser seu esposo e perpetuador da espécie. Porém o destino foi diverso. O gavião pegou o peruzote. O peruzote gostou. Foram viver juntos. Deixando a perua ainda adolescente a ver navios.
A não se desesperou. Não se tornou uma perua-galinha. Não deu pra todo mundo. Não virou lésbica, freira, carola ou evangélica feia. Canalizou a libido para o intelecto. Dedicou-se aos estudos. Aos 19, estava formada e concursada de ministério. Aos 30, abandonou o interminável mestrado. Aos 40, contratava frangos de frete duas vezes ao ano. Aos 50 aposentava-se, no cargo de secretária do chefe do departamento de pessoal.
Aconteceu na festinha de despedida. Enquanto o chefe discursava, antes dos salgadinhos, da salada de frutas, dos refrigerantes, da torta e das latas de cerveja guardadas na geladeira da copa, para serem liberadas após o encerramento do expediente.
Enquanto o chefe elogiava a irrepreensível carreira de A, A notou o estagiário. Novinho, gostosinho, penugem arrepiada, carinha de bebê. A sentiu vontade de pegar o gansinho no colo, tão fofinho ele era. Levar pra casa, colocar pra dormir, dar de mamar, fazer sopinha de noite, andar de roda gigante no parque. Como assim? Tinha despertado o tardio sentimento materno? Qual mãe que nada, era a fúria contida da libido que despertava e queria se libertar. Queria mesmo era afogar o gansinho em seu seio, sentir o gansinho inteiro dentro dela. A estranhou-se. Perdeu o fio da meada do discurso do chefe e só despertou do devaneio com os aplausos, os colegas em coro exigindo: dis-cur-soo! dis-cur-soo!
O discurso saiu. Duas lágrimas. Abraços, piadas, lista com os telefones e os e-mails dos colegas – não se esqueça da gente! Presente: semi-jóia, bijuteria sofisticada, ah, que lindo, era isso mesmo que eu queria. Não tirava os olhos do gansinho-estagiário.
Ou pegava o gansinho ou se jogava dali mesmo, do terceiro andar. 18 horas, cerveja liberada. A tomou o primeiro copo, o segundo. Nem beliscou o sanduíche de metro. No terceiro copo, alegrinha, passou a beber na própria lata, achava sexy o barulho de abrir – ptssssssh! – ainda imitou, seguido da gargalhada que os colegas nunca tinham ouvido.
O estagiário cantarolou Miss Suéter em homenagem à aposentada. Os colegas fizeram coro: “na boca dois pivôs tão graciosos entre jóias naturais e olhos tais minúsculos aquários de peixinhos tropicais”. A só pensou em avançar. O raciocínio da perua embotado pela quarta, quinta lata de cerveja, estômago vazio. O senso de ridículo tinha ido para o espaço, que se danassem, era seu último dia.
Ofereceu o primeiro pedaço da Martha Rocha adivinhem a quem? Ao gansinho. Oh!, murmuraram os colegas, misto de reprovação e de quem queria ver o circo pegar fogo. A foi rápida: para saudar o sangue mais novo, o futuro da repartição. Todos aplaudiram. Depois A não desgrudou os olhos dele, o gansinho amado. Esperou o melhor momento e crau! cantou o gansinho. Ali mesmo, na frente de todo mundo, sentada na mesa do chefe, danem-se de novo. Mas a cantada foi tão sutil, tão poética, tão literária que o gansinho não entendeu. Ou fingiu não entender. Aquela perua bêbada com idade para ser mãe, quiçá avó dele.
Nem precisa dizer que A foi pra casa sozinha, de táxi, bêbada como uma perua de véspera. Despiu-se e se deitou, sem tomar banho, nuinha, nem tirou os sapatos vermelhos. Sonhou com o gansinho.
No dia seguinte A nem se lembrou da dor de cabeça, o gosto de guarda-chuva, a sede eterna da ressaca. Foi direto para o tarô da internet. A leu o texto do 6 de espadas – afastar-se da rotina, permitir-se conhecer pessoas, opiniões e lugares novos, arejar a mente; e do 9 de paus – economizar as forças, evitar desgastes, esperar sentada a tormenta passar. Procurou o nome do gansinho na lista dos e-mails, dos telefones dos colegas que veio junto com o cartão do presente. Ligou. Caiu na caixa postal. Deixou recado: olá, querido, preciso falar com você, me liga quando puder. A esperou até de noite. O gansinho ligou? Nem eu. A angustiou-se. Na dúvida em ligar de novo. Então tormenta era aquilo? Não seria a própria tormenta que A tinha esperado por tanto tempo, e agora, que vinha, tinha que esperar passar? Depois de muitos anos, A lembrou-se do peruzote da adolescência. Aquele que tinha fugido com o gavião. A sentiu inveja, o peruzote que não esperou. Que se entregou de corpo e alma ao sentir na cara o primeiro pingo da tormenta. Então ligou de novo. O estagiário atendeu. Combinaram tomar sorvete no shopping. Depois de desligar, A viveu feliz para sempre.
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
Farda, fardão, camisola de dormir
Recebi convite inusitado de AR. Tornar-me Membro Correspondente da Academia Limoeirense de Letras - ALL. Com passagem e hospedagem para a posse, grátis! A única despesa, segundo AR, será a do coquetel da posse! Em tempo: Limoeiro do Norte, 55 mil habitantes, pleno sertão cearense. AR mora lá. Professor de artes. Publicou um livro sobre a arquitetura religiosa da região. Há alguns anos fui visitá-lo. Foi engraçado: à tarde assistimos a um encontro promovido pela Associação de Apoio aos Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transgêneros (AAGLBTT), para discutir a recente promulgação da Lei Municipal 1.334, de 2007 que regula os direitos dos gays, lésbicas, travestis, transsexuais, transgêneros, etc, etc, da região. À noite, sessão solene na ALL. Ambas assembléias lotadas. Calor infernal. A primeira era conduzida por um travesti chiquérrimo. Vários homenageados vivos e mortos, militantes, praticantes, simpatizantes. Ao final, não podia faltar I will survive e balões coloridos. A mulher do prefeito subiu ao palco pra dançar. A segunda reunião, da ALL, foi mais circunspecta. Mesmo à noite o calor dos infernos não deu trégua. A ALL funciona em uma casa, de frente para a praça. O salão lotado, discurso do Acadêmico Benemérito, pós-doutor na França, professor de renomada universidade, e filho da terra. Discurso comprido. (Será que terei que discursar na posse? Dizer o quê?) Não fiquei para o coquetel - a farra das bichas politizadas da terra de Rachel e Iracema na praça era muito mais animada.
De novo o peixe, sua boca e sua barriga
Leio em casa de E entrevista de Jamie Olivier, renomado chef inglês. Ele reformulou, há algum tempo atrás, o sistema do lanche escolar no Reino Unido, conseguiu reduzir a obesidade dos pimpolhos-súditos. Ganhou até prêmio de importância social. Suas dicas: cozinhar é persistir. Tem a ver com experimentar no dia a dia. Se errar, repita até dar certo. A inovação surge daí. O chef acha os franceses perfeitos mas rígidos demais. Inspirado nele, preparei o almoço do domingão: frango com gengibre, açafrão e espinafre. Divino.
Em busca de si mesmo
Aproveito as benesses do novo bairro. Levar Duda (a golden retriever de T) e Pandora (minha amada labrador) para nadar no lago. Assistimos passar os veleiros, as acrobacias dos kitessurfistas. Aí aconteceu a história, digna do blog de C: Ventava à beira d’água. Duda detesta vento. Escarafunchou-se em um buraco entre as pedras. Quem disse que conseguia sair? Retiro as pedras, guincho Duda, que, mal é envolvida por outra lufada de vento, volta a se embarafustar na loca. De repente o que vejo no fundo da água? um aparelho celular. Chamo MR: olha só o que eu achei! um celular igualzinho ao meu! Pasmem, até o chip era o mesmo da minha prestadora. MR tenta ligar o aparelho para localizar o proprietário. Não ligava. Levamos pra casa, deixamos no sol. Quando MR conseguiu ligar, adivinhe a quem pertencia o dito? Acertou quem respondeu: deste que vos escreve. Ao tentar retirar Duda do buraco o celular caiu do bolso da bermuda na água e eu não vi. Ridículo, metafísico ou psicanalítico. eu tentando me achar...
O peixe que não morrerá pela boca
Depois de ver as fotos da viagem da semana passada, decidi radicalizar. Perder pelo menos 2/3 da pança. Iogurte, uma fatia de pão integral e fruta no café da manhã: barra de cereal ou abacaxi ou manga ou mamão de 3 em 3 horas. Carne do almoço abolida, no máximo peito de frango grelhado. À noite, depois da maromba ou da natação, só 1 tigela de sopa do Greens, sem queijo ralado. Cerveja nem pra remédio. Nem pizza. 1 dose de uísque por noite (só no final de semana). Afinal ninguém é de ferro.
Sexta-feira passada G me convidou para almoçar. Feijoada no Ki-Filé. Meu projeto Gianecchini ameaçado. Resisti ao copo de cerveja, aos torresmos do tira-gosto. Quando veio a tigela, fumegante, coberta por suculentas fatias de linguiça, quase caí na tentação, complacência versus determinação. Resisti bravamente. Afastei as linguiças, a costelinha, a língua, o rabo, a orelha por baixo da linguiça e só me servi de caldo de feijão. Com muita couve, laranja e 1 (mentira, 2) colheres de arroz. Farofa? espargida sobre o prato, só pra satisfazer o diabo.
Rei de Copas
Deixei para tirar o tarô só hoje, segunda-feira. Descansar o leitor no final de semana. Saiu de novo o Rei de Copas. Bonita a roupa dele, chapelão esquisito compondo com a coroa. Sentado em seu troninho desconfortável, copaço de vinho na mão e cara entediada. Deu preguiça de escrever a história do dia. Mas sabe-se lá os desígnios secretos do além, reforçar a mensagem da carta. Pelo sim pelo não, transcrevo acima trechos do e-mail diário para M.
sábado, 11 de setembro de 2010
A história de O
Aconteceu no tempo em que os bichos falavam. O era o galo do terreiro. Sarado, charmoso, inteligente, olhos verdes e bico sensual, arrasava os corações e as moelas não só da galinhama, mas também das pombas-rolas, das peruas, das patas-chocas e das andorinhas-sinhás, casadas, solteiras ou tico-tico-no-fubá que frequentavam o terreiro. Bem jovem O apaixonara-se e se casara com uma galinhazinha índia, da mesma idade que ele. Era uma esposa muito trabalhadeira, fiel e tão apaixonada que fazia vista grossa à sem-vergonhice de O. Em pleno sétimo setênio de vida, pronta para desfrutar a vida, a galinhazinha índia descobriu um câncer em estágio avançado e morreu. O não era dado a prolongar os sofrimentos. Seu lema era viver o dia presente. Mal passado o luto, voltou a desfrutar a vida. Comeu todas e mais algumas, nenhuma emplumada passou impune. Até a avestruz O experimentou. Pois bem, O viveu seu oitavo, nono e décimo setênio na farra. Torrou as economias com a galinhada, colocou centenas de pintos com seu sangue no mundo. Quando tudo parecia perdido, para surpresa de todos, ao iniciar o seu décimo primeiro setênio, O decidiu casar-se.
Foi um bafafá. Os frangos mais velhos, filhos legítimos de O foram contra: invocaram sem efeito a memória da galinha índia, o direito filial, a improbidade administrativa. Era pura safadeza, absurdo o velho galo desdentado (como se eles também não o fossem) inventar de casar. Ao invés da busca da espiritualidade característica do setênio, o velho galo mergulhava cada vez mais nos prazeres da matéria. A opinião geral era: o velho galo, que não servia nem mais pra canja, estava esclerosado.
O persistiu no intento, nunca dava ouvidos à opinião alheia. Vencidas as resistências, O apresentou a pretendente. Foi outro furdunço. Uma franguinha mal saída do segundo setênio! O tinha idade para avô, quiçá bisavô da franguinha! Os frangos herdeiros romperam relações com O. Proibiram os pintos-netos e as galinhas-noras de falarem com O, de sequer tocarem no nome de O durante o jantar. Nem aí com o desprezo da família, sorrindo de crista a crista, O retirou-se para o exílio da casinhola do Itamaracá, seu último bem material, acompanhado de sua franguinha-teen, ao que tudo indica satisfeitíssima com o maridão.
O e a franguinha passaram alguns anos de inenarrável felicidade. Ao invés da degeneração natural da idade, O parecia rejuvenescer: as penas embranquiçadas enegreceram de novo, as rugas da crista esticaram-se como por passe de mágica, o barrigão desapareceu como se tivesse sido extirpado por um exímio cirurgião plástico, ah, os milagres do amor!, ah, os milagres da ciência!
A franguinha entrou em seu terceiro setênio, o dos novos e amplos horizontes: a graduação em psicologia, o mestrado, o professor do mestrado, pelo menos três setênios mais novo que O. Aí pouco adiantaram os milagres do amor ou da ciência. A franguinha trocou O pelo mestrado, pelo professor do mestrado. Divórcio litigioso. A franguinha universitária ainda arrancou os dois últimos bens que restavam a O: o milagre da juventude tardia e a casinha do Itamaracá.
O retornou ao convívio familiar, o velho galinheiro. Só, rejeitado, incompreendido. Do alto dos seus doze setênios, finalmente O via o efeito do tempo desfilar diante de seus olhos: as penas embranqueceram de novo da noite para o dia. A crista murchou, e nem com reza brava conseguia ser reerguida. As rugas, os pés-de-galinha alastraram-se. Para piorar, ainda descobriu uma doença respiratória crônica, cuja tosse, durante as longas madrugadas, transformaram seu portentoso canto matinal num cacarejar medíocre, pobre O. E ainda morria de saudades da franguinha. A decadência instalou-se.
Os frangos-herdeiros notaram: O estava ficando caduco. Talvez com intenções de reconquistar a franguinha recém-pós-graduada, passava horas anotando em seus caderninhos – uma revolucionária notação musical; uma gramática da língua falada; os planos de uma volta ao mundo em um veleiro construído com garrafas pet.
Os frangos herdeiros, as galinhas-noras, os netos-pintos balançavam a cabeça, desolados, pobre vovô O! Internaram num galinheiro de repouso. Naquela idade, diziam, nem para ração de cães ele servia mais. O até gostou do asilo. Tinha seu próprio poleiro, uma enfermeira gostosa para enfiar o termômetro debaixo da asa despenada. De vez em quando, quando a tosse amainava, até ensaiava o co-co-ro-có matinal, sempre aplaudido pelas outras aves velhas. Morreu dormindo. Sem culpa, sem rancor, sem raiva de ninguém. Tinha aproveitado todas as oportunidades que a vida na fazenda se lhe ofereceram previstas pelo mago, tinha-se deixado levar por todas as mudanças, os altos e baixos da roda da fortuna.
Depois disso acabou-se o tempo dos bichos falarem.
Nota: a linda imagem foi pirateada de http://ultradownloads.uol.com.br.
Aproveitar o período dinâmico
Hoje saiu o Mago, o primeiro arcano. Conselho: aproveitar o período dinâmico. Com as seguintes atitudes: a) quebrar a rotina; b) experimentar ideias novas; c) renovar, fazer diferente (em itálico!); d) tentar outro curso de ação; e) preparar-me para encontros inesperados e conversas libertadoras; f) espanar a poeira; g) abrir-me ao novo; h) bater um papo com pessoas que surgem do nada; i) libertar-me de uma forma antiga e superada de abordagem das situações. Cada alínea daria uma história. Que, por sua vez renderiam sub-histórias. Um post infinito, como em Borges.
Restringi as possibilidades. Comecei uma história sobre transformação. Antes da história foi necessário explanar sobre os setênios da antroposofia. A explicação estendeu-se e a história mais ainda. Se publicasse tudo junto, na certa M reclamaria: aff! você é tão prolixo! Por isso dividi em duas partes: hoje as noções holísticas e em breve oportunidade a historieta propriamente dita:
De acordo com a antroposofia, a vida humana é dividida em estágios de desenvolvimento que ocorrem de sete em sete anos. Esses estágios ou ciclos são chamados setênios. Ao final de cada setênio encerram-se processos transformadores fundamentais no indivíduo e iniciam-se outros.
A infância e adolescência estão compreendidas nos três primeiros, também conhecidos como os setênios do corpo: De 0 a 7 anos, nós estamos abertos ao mundo; nossa confiança é ilimitada; não somos capazes de julgar; não compreendemos o pensamento dos adultos; aprendemos por imitação. Dos 7 aos 14, a nossa anima desenvolve-se; nosso corpo emancipa-se; interagimos aos estímulos externos de maneira sistemática; interessamo-nos e admiramos as coisas do mundo; iniciamo-nos na área dos sentimentos; entramos na puberdade; e preparamo-nos para a iniciação sexual. Dos 14 aos 21, as forças anímicas liberam-se; enxergamos mundo de forma lógica, analítica e sintética; ansiamos por explicações conceituais e intelectuais; ansiamos sermos compreendidos; ansiamos a verdade; e estamos prontinhos para perpetuar a espécie.
Os três setênios seguintes, também denominados setênios da alma, compreendem a idade madura: De 21 a 28 anos nós completamos a formação moral, profissional, ética; transamos com todo mundo; pensamos que somos os donos no mundo. Dos 28 aos 35 nós já passamos por todas as experiências básicas da vida; é a hora de casar, ter filho, família, sogros, cachorro, papagaio; terminamos o mestrado; compramos casa financiada, carrinho básico; pensamos em escrever o primeiro livro; preparamo-nos para desfrutar as nossas realizações. Dos 35 aos 42 rolam alguns ajustes, as experiências profundas, as grandes responsabilidades do cidadão, a concretização do livro, o divórcio, etc. A partir dos 42 é a fase do usufruto pleno das conquistas.
Dos 49 em diante é a hora da espiritualidade. É quando querendo-se ou não, começa o declínio da matéria. É a corrida contra o tempo, e salve-se quem puder.
Pois bem. Meu sétimo setênio está chegando ao fim. Em breve adentrarei o oitavo. Vaidoso que sou, paranóico, pessimista, realista – já percebo os efeitos da passagem do tempo, a derrocada do corpinho, a irremediável idade provecta. Ainda não sei se o oitavo setênio será bom ou ruim. Enquanto descubro, contarei a história de O. O sempre seguiu os conselhos do Mago. Sua vida era o próprio momento dinâmico, e O aproveitava todos. O trecho a seguir narra a passagem do décimo setênio de O. Quando ele pintou os cabelos de preto, comprou um fusca vermelho e casou-se com uma franguinha de 18 anos.
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Necessidade de se abrir ao diálogo
O conselho de hoje do dois de copas, vigésimo quarto arcano, foi compreender o outro é o primeiro ato para atrair compreensão para si mesmo. O desenho é um dos mais bonitos do tarô. Pensei de manhã: o que escrever sobre isso, sem M achar chato? deixei para depois do almoço; com barriga cheia a história pessoal viria. Não veio. Então me lembrei de uma antiga, do tempo em que eu vivia tão sozinho e carente que chorava quando via beijo na novela, conversava com o espelho da porta do armário e acreditava no poder do pensamento positivo. Pode até não ter a ver com o conselho, ou ter a ver com o anterior, da roda da fortuna, ou ser uma mistura dos dois, não importa, vale pelo insólito da situação:
Era uma vez G. Nem precisa dizer que G era eu. G vivia um período de extrema solidão. Agravado por sobressaltado com a morte. Uma irritação de garganta, um torcicolo e G já pensava o pior: câncer nos gânglios linfáticos, na próstata, gripe suína ou coisa terrificante que o valesse.
G tentava amenizar a dor da solitude. Visitava os amigos, frequentava reuniões de colegas de trabalho, ia à missa, aos bares, fazia terapia 4 vezes por semana, telefonava dia sim dia não para a mãe, e nada de passar. Por fim, uma alma caridosa sugeriu fazer iôga. X. estranhou, pois na adolescência todo mundo pronunciava a palavra com a vogal aberta, ióga. Bobagem, questão fonética, a essência devia ser a mesma. Comprou roupas brancas, largas, folgadas, de fibras vegetais e matriculou-se. G precisava investir em si mesmo (o dois de ouros do tarô anterior), G precisava abrir-se ao diálogo.
Enquanto duraram a primeira e segunda aulas - posturas básicas, respiração, meditação ao final, G tranquilizou-se, só mesmo a pronúncia tinha mudado. Porém, na terceira aula, antes das posturas, a professora gordinha começou com uma digressão histórica e filosófica do sistema da iôga. Descreveu as esferas alimentares (os minerais, os vegetais, os animais). Os minerais estavam mais longe de nós e os animais mais próximos. No meio estavam os vegetais. Se G comesse um mineral, o máximo que lhe aconteceria era ele (o mineral) sentir-se comido, mas isso não teria problema, ninguém leva a sério os sentimentos dos minerais, isso não alteraria nada a existência eterna de G, o karma. Se G comesse um vegetal, o vegetal não apenas se sentiria comido mas reagiria. G imaginou: como seria uma beterraba esperneando ao ser refogada? uma cenoura implorando clemência diante do ralador?
Mas o horrível, o péssimo, o imperdoável era comer animal. Os animais possuem sangue, alma coletiva. Eles habitam um círculo evolutivo muito próximo do humano. Cada prato de moqueca, de galinha caipira, cada torresmo, orelha, costeleta de feijoada não-vegetariana comida por G equivaleria a 50 anos de atraso evolutivo. A professora gordinha concluiu a primeira parte da aula afirmando que ela, por exemplo, já tinha superado os grãos (o subestágio mais primitivo dos vegetais) e entrava nos tubérculos, o segundo. Falou sobre iogues tão elevados que somente se alimentam dos nutrientes suspensos no ar que respiramos, chamado de prana. Por fim, ensinou uma energização da água: encher o copo com água do filtro, de manhã, estender o copo na direção do sol, tomar um gole, bochechar, cuspir; tomar outro gole, gargarejar, cuspir; tomar o resto e engolir. Se tivesse à mão caneta e um caderninho, G teria anotado.
A segunda parte da explanação era sobre as quatro esferas do amor - o amor físico, animal, inferior, sexual (que só acontecia entre homem e mulher), o amor emocional, ainda humano, saído do coração, e que gerava os sentimentos (exemplificou: o ciúme, a posse, a paixão), o amor mental (óbvio, da mente) – que podia ser controlado, canalizado e utilizado como escada para a quarta, e inacessível esfera amorosa a nós, reles mortais - o amor espiritual (que apenas os iluminados alcançam: poder amar indistintamente o amigo e o inimigo, as coisas boas e as coisas ruins, etc).
Aí G fez os exercícios, as posturas. Depois a meditação. Quem disse que G relaxou? Pensava que sua entrada no nirvana estava definitiva e triplamente bloqueada: a) quantas reencarnações ainda teria que viver até recuperar o atraso do karma provocado pelas centenas de porcos, galinhas, perus e vacas, além dos caranguejos, das piabas, das lulas, dos salmões grelhados, dos camarões que já tinha comido? b) como poderia energizar o copo d’água matutino, sendo impossível vislumbrar o sol nascente das janelas da casa onde morava, de frente para a kit da loura cinquentona? e c) como poderia fazer ser aceita nas esferas superiores a modalidade amorosa que praticava, amar outro do mesmo sexo, que não se enquadrava nem no primeiro nível evolutivo?
Logo G que nunca tinha pensado sobre o assunto, queria só mesmo conhecer gente nova, esquecer a tristeza, passar o tempo, adquirir mais flexibilidade das articulações... Nem precisava dizer que depois daquele dia G não voltou. Deu as roupas brancas pra faxineira. Desistiu. Evoluir era difícil pra caramba. Decidiu fazer natação. Mesmo com a garganta ardente, o pescoço dolorido, os gânglios, o câncer, a hipoglicemia. Na água clorada e despranada G tinha esperança de parar de pensar sobre o ridículo que era sobreviver.
terça-feira, 7 de setembro de 2010
Arcanos do feriado
A carta do sábado foi o ás de ouros, sexagésimo sexto arcano. Falava sobre dinheiro, maneiras de ganhá-lo, de investir em si mesmo. Tenho dificuldades com o assunto, não sei administrar o tal vil metal, na minha idade era pra estar podre de rico, deve ser karma, burrice, desleixo. Por isso deixarei o tema pra depois. Domingo e segunda-feira não acessei a internet (férias!), por isso, nada de carta. Agora pouco tirei a Roda da Fortuna, o décimo arcano, escreverei amanhã sobre ela. Pra relaxar, algumas fotos do passeio a Pirenópolis.
sábado, 4 de setembro de 2010
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Mantenha seu nível de exigência alto, não se contente com pouco
1. Em Paraty eu comecei a escrever um conto de casamento. Narrado por um adolescente tetraplégico, que observa, da janela do apartamento em frente, os movimentos de um casal, desde o momento em que se mudam até a hora em que a polícia leva um dos parceiros, acusado anonimamente (pelo adolescente, óbvio), de assassinato do outro. O roteiro é banal, meloso, hitchcock fraco, pulp-fiction. Pode até parecer plágio a Santiago (o adolescente narrador), dane-se, a história é boa, os personagens. Começa com o mar de rosas e termina com a enxurrada de lama, o destino fatal da maioria dos casamentos.
2. Pelo menos uma vez por semana ouço reclamações matrimoniais de A2: incompatibilidade de interesses, rancores remoídos, insatisfações mútuas, choque de autoridade. A2 gosta de lasanha, a companheira de salada; A2 adora viajar por lugares desconhecidos, a companheira de cozinhar para os amigos. A2 só fala de corrida de carros, a companheira ama futebol; A2 gosta de mandar, a companheira também, esse tipo de bobagem. Antes eu opinava, conselhos de auto-ajuda: tem que ceder, tem que manter o equilíbrio, tem que dialogar, tem que parar de beber, tem que estar aberto para as proposições do outro, por mais absurdas que pareçam. Outro dia encontrei o casal em uma pizzaria. Cara feliz, família feliz, a própria foto de cartão de dia-dos-namorados. Não cabia nela o discurso choroso semanal de A2.
3. A carta tirada hoje foi a rainha de copas, o quadragésimo nono arcano. Conselho: manter-se fiel aos próprios ideais. O texto é confuso. Primeiro fala que eu não devo me contentar com pouco. Coincidência, M ontem falou que, caso publique a nova produção, ao contrário de mim, não se contentará com a produção editorial local – buscará as grandes editoras. Depois o oráculo me manda avaliar e cortar pela raiz as relações, as pessoas e as situações que não servem mais, sobretudo – e mais uma vez óbvio – as que pararam de render dividendos. Em seguida previne que eu tenho que me preparar para situações adversas, “eventuais sofrimentos”, situações difíceis. Por fim, manda aconselhar-me com uma mulher mais velha, que tenha vivido situações semelhantes. Mesmo sem saber, eu tenho feito o que o tarô sugere: conversar com mulher mais velha (vide o item 4 a seguir e o post anterior); deletar relações vampiras (M pode comprovar pelas nossas conversas sobre a possibilidade da “desapresentação”). Só não me sinto preparado para as adversidades, os possíveis sofrimentos do porvir, a gente nunca está. Tomar banho de pétalas de rosa, espargir sal grosso nos cantos, acender defumador, tomar um ebó pode não resolver, mas ameniza. E esperar, o mar de rosas do item 1 tem também as suas ressacas, os seus estuários de lama, as suas praias poluídas, as suas tartarugas geneticamente modificadas.
4. Ia escrever sobre as desventuras de S. Uma das mulheres mais velhas, uma das rainhas de copas com quem preciso conversar. S. está sempre de astral elevado. Há um tempo atrás me convenceu a fazermos juntos uma lipo-light, extirpar os pneuzinhos, a pança. Depois do calvário pós-operatório – cintas, gaze, esparadrapo microporo, carboxiterapia (agulhinhas injetoras de gás carbônico debaixo da pele, doloridíssimas!), confesso, foram os dias mais felizes da minha vida. A cinturinha de pilão, o abdome definido, a valorização do tórax, ah, a vã vaidade da matéria. Voltando a S.: S. está sempre comprando algo, investindo: sala comercial, kit, carro novo. Por isso, além de amiga, virou consultora imobiliária. Apesar de eu nunca ter dinheiro pra concretizar os negócios da china que S. sugere. Vou parar de escrever este post, que já está comprido demais. Vou conversar com S. E cumprir a determinação do tarô de hoje.
Nota de rodapé sobre "O Instinto de Desapresentação": “Quantas vezes desejei que houvesse, assim como somos apresentados a pessoas, o instituto da desapresentação. Um chegaria para o outro e diria: De hoje em diante estaremos poupados sequer de acenar a cabeça em caso de encontro acidental (redundante, talvez, mas necessário reafirmar). Não nos conhecemos mais, e assim nos comportaremos, como quaisquer na multidão. Com um adicional: ninguém nos reapresentará, pois não somos desconhecidos comuns, mas do tipo que deseja permanecer desconhecido.” - De Francisco Daudt da Veiga, “O Amor Companheiro (enviado por M).
2. Pelo menos uma vez por semana ouço reclamações matrimoniais de A2: incompatibilidade de interesses, rancores remoídos, insatisfações mútuas, choque de autoridade. A2 gosta de lasanha, a companheira de salada; A2 adora viajar por lugares desconhecidos, a companheira de cozinhar para os amigos. A2 só fala de corrida de carros, a companheira ama futebol; A2 gosta de mandar, a companheira também, esse tipo de bobagem. Antes eu opinava, conselhos de auto-ajuda: tem que ceder, tem que manter o equilíbrio, tem que dialogar, tem que parar de beber, tem que estar aberto para as proposições do outro, por mais absurdas que pareçam. Outro dia encontrei o casal em uma pizzaria. Cara feliz, família feliz, a própria foto de cartão de dia-dos-namorados. Não cabia nela o discurso choroso semanal de A2.
3. A carta tirada hoje foi a rainha de copas, o quadragésimo nono arcano. Conselho: manter-se fiel aos próprios ideais. O texto é confuso. Primeiro fala que eu não devo me contentar com pouco. Coincidência, M ontem falou que, caso publique a nova produção, ao contrário de mim, não se contentará com a produção editorial local – buscará as grandes editoras. Depois o oráculo me manda avaliar e cortar pela raiz as relações, as pessoas e as situações que não servem mais, sobretudo – e mais uma vez óbvio – as que pararam de render dividendos. Em seguida previne que eu tenho que me preparar para situações adversas, “eventuais sofrimentos”, situações difíceis. Por fim, manda aconselhar-me com uma mulher mais velha, que tenha vivido situações semelhantes. Mesmo sem saber, eu tenho feito o que o tarô sugere: conversar com mulher mais velha (vide o item 4 a seguir e o post anterior); deletar relações vampiras (M pode comprovar pelas nossas conversas sobre a possibilidade da “desapresentação”). Só não me sinto preparado para as adversidades, os possíveis sofrimentos do porvir, a gente nunca está. Tomar banho de pétalas de rosa, espargir sal grosso nos cantos, acender defumador, tomar um ebó pode não resolver, mas ameniza. E esperar, o mar de rosas do item 1 tem também as suas ressacas, os seus estuários de lama, as suas praias poluídas, as suas tartarugas geneticamente modificadas.
4. Ia escrever sobre as desventuras de S. Uma das mulheres mais velhas, uma das rainhas de copas com quem preciso conversar. S. está sempre de astral elevado. Há um tempo atrás me convenceu a fazermos juntos uma lipo-light, extirpar os pneuzinhos, a pança. Depois do calvário pós-operatório – cintas, gaze, esparadrapo microporo, carboxiterapia (agulhinhas injetoras de gás carbônico debaixo da pele, doloridíssimas!), confesso, foram os dias mais felizes da minha vida. A cinturinha de pilão, o abdome definido, a valorização do tórax, ah, a vã vaidade da matéria. Voltando a S.: S. está sempre comprando algo, investindo: sala comercial, kit, carro novo. Por isso, além de amiga, virou consultora imobiliária. Apesar de eu nunca ter dinheiro pra concretizar os negócios da china que S. sugere. Vou parar de escrever este post, que já está comprido demais. Vou conversar com S. E cumprir a determinação do tarô de hoje.
Nota de rodapé sobre "O Instinto de Desapresentação": “Quantas vezes desejei que houvesse, assim como somos apresentados a pessoas, o instituto da desapresentação. Um chegaria para o outro e diria: De hoje em diante estaremos poupados sequer de acenar a cabeça em caso de encontro acidental (redundante, talvez, mas necessário reafirmar). Não nos conhecemos mais, e assim nos comportaremos, como quaisquer na multidão. Com um adicional: ninguém nos reapresentará, pois não somos desconhecidos comuns, mas do tipo que deseja permanecer desconhecido.” - De Francisco Daudt da Veiga, “O Amor Companheiro (enviado por M).
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
Auxilie os outros em seus sofrimentos
Ela senta no banco do carro e desata a falar. As mesmas histórias, o mesmo tom enfático, dramatizado. Eu, plateia silenciosa de seus esquetes, começo a entender a origem da minha verve teatral, de contador de histórias. Ela interpreta, reproduz os diálogos, cria vozes para os personagens – o cobrador de ônibus impertinente, a vizinha neurótica, o neto inteligente, a sogra implicante, ela mesma furiosa. Ela rememora e atualiza, com sua entonação dulcinesca, os fatos, os rancores vividos há 20, 30, 40 anos, como se tivessem ocorrido ontem. Eu me incomodo porque me vejo nela, reflexo invertido. Anticênico, anti-ela, o meu monólogo é para ninguém. Para a minha plateia interior. Além disso, eu também não escrevo coisas passadas há 20, 30, 40 anos?
Ontem foi sobre a amiga rica: Era uma vez uma amiga rica que morava em um palacete cuja sala era maior que a toda a casa dela. A amiga rica tinha uma irmã, que amava mais que tudo no mundo, mais que o próprio marido, mais que o palacete onde morava. A amiga rica amava tanto a irmã que a trouxe para morar com ela. A irmã da amiga rica não soube retribuir o amor. Seduziu o cunhado ou foi seduzida, não se sabe ao certo. O certo é que o cunhado, o marido da amiga rica, alugou apartamento para a cunhada-amante. Um belo dia o marido disse que ia viajar. Sentindo-se sozinha na enorme sala do palacete, a amiga rica, a esposa ainda sem saber-se traída, foi chorar as mágoas, os sofrimentos, com a irmã amada, no apartamento recém-alugado pelo marido. A amiga rica tocou a campainha, e adivinhe quem abriu a porta? o traidor. Ainda levou uma bronca por ter ido sem avisar. Depois disso, frágil que era, desarrumou-se de vez.
Hoje foi sobre a vizinha. As idades próximas. Sozinha como ela: Há muitos anos atrás havia uma vizinha muito pobre e muito egoísta. A vizinha vinha visitá-la só para tomar café, comer uns biscoitos, uma fatia de queijo. Certa vez a vizinha plantou mamoeiros rentes à cerca que dividia os lotes. Quando frutificaram, a vizinha não ofereceu sequer um mamão bichado para ela. Mamões que tinham sido regados e adubados com a água e o adubo dela. A vizinha ainda praguejou, que ela estava com inveja dos mamoeiros. Por castigo, à noite caiu uma tempestade. Os mamoeiros desabaram sobre o telhado da vizinha, deixando-a ao relento. Boa como era, ela acolheu a vizinha ensopada e tiritante. Mal amanheceu, juntas, as duas recolheram dos escombros os mamões aproveitáveis, e viveram em relativa harmonia até o passamento da vizinha. Que descanse em paz.
O Rei de Copas, trigésimo sexto arcano do tarô, aconselha para o dia de hoje: "auxilie os outros em seus sofrimentos". Inclusive simula intimidade: "procure ouvir as pessoas mais velhas e experientes, Gladstone." Sugere ainda "ver o lado do outro, abdicando da perspectiva egoística". Eu tenho ouvido. Tenho me esforçado em enxergar o lado dela. Mesmo com o incômodo (uma espécie de arrepio interno, aperto, trava) de escutar, às sete da manhã, pela terceira, quarta, décima vez onde mora a amiga rica, onde foram plantados os mamoeiros. Eu me sinto no dever de amenizar a solidão dela. E provavelmente ela a minha.
Ontem foi sobre a amiga rica: Era uma vez uma amiga rica que morava em um palacete cuja sala era maior que a toda a casa dela. A amiga rica tinha uma irmã, que amava mais que tudo no mundo, mais que o próprio marido, mais que o palacete onde morava. A amiga rica amava tanto a irmã que a trouxe para morar com ela. A irmã da amiga rica não soube retribuir o amor. Seduziu o cunhado ou foi seduzida, não se sabe ao certo. O certo é que o cunhado, o marido da amiga rica, alugou apartamento para a cunhada-amante. Um belo dia o marido disse que ia viajar. Sentindo-se sozinha na enorme sala do palacete, a amiga rica, a esposa ainda sem saber-se traída, foi chorar as mágoas, os sofrimentos, com a irmã amada, no apartamento recém-alugado pelo marido. A amiga rica tocou a campainha, e adivinhe quem abriu a porta? o traidor. Ainda levou uma bronca por ter ido sem avisar. Depois disso, frágil que era, desarrumou-se de vez.
Hoje foi sobre a vizinha. As idades próximas. Sozinha como ela: Há muitos anos atrás havia uma vizinha muito pobre e muito egoísta. A vizinha vinha visitá-la só para tomar café, comer uns biscoitos, uma fatia de queijo. Certa vez a vizinha plantou mamoeiros rentes à cerca que dividia os lotes. Quando frutificaram, a vizinha não ofereceu sequer um mamão bichado para ela. Mamões que tinham sido regados e adubados com a água e o adubo dela. A vizinha ainda praguejou, que ela estava com inveja dos mamoeiros. Por castigo, à noite caiu uma tempestade. Os mamoeiros desabaram sobre o telhado da vizinha, deixando-a ao relento. Boa como era, ela acolheu a vizinha ensopada e tiritante. Mal amanheceu, juntas, as duas recolheram dos escombros os mamões aproveitáveis, e viveram em relativa harmonia até o passamento da vizinha. Que descanse em paz.
O Rei de Copas, trigésimo sexto arcano do tarô, aconselha para o dia de hoje: "auxilie os outros em seus sofrimentos". Inclusive simula intimidade: "procure ouvir as pessoas mais velhas e experientes, Gladstone." Sugere ainda "ver o lado do outro, abdicando da perspectiva egoística". Eu tenho ouvido. Tenho me esforçado em enxergar o lado dela. Mesmo com o incômodo (uma espécie de arrepio interno, aperto, trava) de escutar, às sete da manhã, pela terceira, quarta, décima vez onde mora a amiga rica, onde foram plantados os mamoeiros. Eu me sinto no dever de amenizar a solidão dela. E provavelmente ela a minha.
Nova cara
Mandei hoje a M texto novo. Na dúvida de publicá-lo no blog, por ser “excessivamente pessoal”. M respondeu que achava o blog chato, parecido com portfólio, curriculum, recomendações: “o que li, o que fiz, o que gostei, o que ouvi”. Que isso a concorrência já faz, e melhor. Que eu devia deixar de ser besta e investir no "excessivamente pessoal". Então decidir seguir o conselho de M, mudar a cara do blog. Publicarei mini-histórias, sem periodicidade estabelecida. Como epígrafe à nova fase, reproduzo a frase-sabedoria-do-dia, por Madame Astê:
ABRA A MÃO E O CORAÇÃO. SOLTE, DESAPEGUE, LARGUE PARA QUE O NOVO POSSA CHEGAR!
Obs: a imagem e a consulta ao tarô da primeira história foram obtidas do site www.personare.com.br
ABRA A MÃO E O CORAÇÃO. SOLTE, DESAPEGUE, LARGUE PARA QUE O NOVO POSSA CHEGAR!
Obs: a imagem e a consulta ao tarô da primeira história foram obtidas do site www.personare.com.br
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