Ela senta no banco do carro e desata a falar. As mesmas histórias, o mesmo tom enfático, dramatizado. Eu, plateia silenciosa de seus esquetes, começo a entender a origem da minha verve teatral, de contador de histórias. Ela interpreta, reproduz os diálogos, cria vozes para os personagens – o cobrador de ônibus impertinente, a vizinha neurótica, o neto inteligente, a sogra implicante, ela mesma furiosa. Ela rememora e atualiza, com sua entonação dulcinesca, os fatos, os rancores vividos há 20, 30, 40 anos, como se tivessem ocorrido ontem. Eu me incomodo porque me vejo nela, reflexo invertido. Anticênico, anti-ela, o meu monólogo é para ninguém. Para a minha plateia interior. Além disso, eu também não escrevo coisas passadas há 20, 30, 40 anos?
Ontem foi sobre a amiga rica: Era uma vez uma amiga rica que morava em um palacete cuja sala era maior que a toda a casa dela. A amiga rica tinha uma irmã, que amava mais que tudo no mundo, mais que o próprio marido, mais que o palacete onde morava. A amiga rica amava tanto a irmã que a trouxe para morar com ela. A irmã da amiga rica não soube retribuir o amor. Seduziu o cunhado ou foi seduzida, não se sabe ao certo. O certo é que o cunhado, o marido da amiga rica, alugou apartamento para a cunhada-amante. Um belo dia o marido disse que ia viajar. Sentindo-se sozinha na enorme sala do palacete, a amiga rica, a esposa ainda sem saber-se traída, foi chorar as mágoas, os sofrimentos, com a irmã amada, no apartamento recém-alugado pelo marido. A amiga rica tocou a campainha, e adivinhe quem abriu a porta? o traidor. Ainda levou uma bronca por ter ido sem avisar. Depois disso, frágil que era, desarrumou-se de vez.
Hoje foi sobre a vizinha. As idades próximas. Sozinha como ela: Há muitos anos atrás havia uma vizinha muito pobre e muito egoísta. A vizinha vinha visitá-la só para tomar café, comer uns biscoitos, uma fatia de queijo. Certa vez a vizinha plantou mamoeiros rentes à cerca que dividia os lotes. Quando frutificaram, a vizinha não ofereceu sequer um mamão bichado para ela. Mamões que tinham sido regados e adubados com a água e o adubo dela. A vizinha ainda praguejou, que ela estava com inveja dos mamoeiros. Por castigo, à noite caiu uma tempestade. Os mamoeiros desabaram sobre o telhado da vizinha, deixando-a ao relento. Boa como era, ela acolheu a vizinha ensopada e tiritante. Mal amanheceu, juntas, as duas recolheram dos escombros os mamões aproveitáveis, e viveram em relativa harmonia até o passamento da vizinha. Que descanse em paz.
O Rei de Copas, trigésimo sexto arcano do tarô, aconselha para o dia de hoje: "auxilie os outros em seus sofrimentos". Inclusive simula intimidade: "procure ouvir as pessoas mais velhas e experientes, Gladstone." Sugere ainda "ver o lado do outro, abdicando da perspectiva egoística". Eu tenho ouvido. Tenho me esforçado em enxergar o lado dela. Mesmo com o incômodo (uma espécie de arrepio interno, aperto, trava) de escutar, às sete da manhã, pela terceira, quarta, décima vez onde mora a amiga rica, onde foram plantados os mamoeiros. Eu me sinto no dever de amenizar a solidão dela. E provavelmente ela a minha.
Um comentário:
Às vezes, e que fique bem clara minha medida restritiva, em alguns momentos a realidade é mais bonita que a ficção. Tenho de contar isto a Deus...
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